As 100 organizações que juntas estão mudando a sub-representação nas eleições

Por Carmela Zigoni, Inesc + Maria Mello, Intervozes + Naiara Leite, Odara – Instituto da Mulher Negra

Publicado originalmente no Blog do Fundo Pulsante

O Brasil é um país com desigualdades históricas que têm raízes na colonização e que ainda não foram superadas. A intersecção do racismo, do machismo e da concentração de riquezas conformam o tripé que sustenta a exclusão da maioria e a reprodução de privilégios de uma minoria. Na política, estas desigualdades se expressam, por exemplo, em um Congresso Nacional onde menos de 12% das representantes são mulheres, menos de 5% são negros e conta com somente uma indígena, Joenia Wapichana, em seus quadros. Em contrapartida, metade da população é composta por mulheres, 52% são negros e cerca de 1 milhão são indígenas, pertencentes a 305 diferentes etnias.

Desde 2004, a Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político tem como uma de suas principais pautas a superação da sub-representação na política, por meio dos eixos Democracia – representativa, participativa e direita; bem como no debate sobre democratização do judiciário e dos meios de comunicação. Em 2020, este coletivo, composto por mais de 100 organizações da sociedade civil organizada, apresentou um projeto ao Fundo Pulsante, da Fundação Avina, para ampliar o debate sobre o tema durante as eleições. Assim nasceu a campanha Quero me ver no poder, coordenada por 18 organizações da Plataforma[1].

As Eleições 2020 – que elegeram prefeitos e vereadores para os 5. 570 municípios – ocorreram em meio a pandemia da Covid-19, em novembro (e não outubro como normalmente acontece), quando no Brasil se celebra o mês da Consciência Negra. Além disso, foram as primeiras eleições após a vitória da extrema-direita para a presidência da república, o que tornou as análises bastante incertas e o processo alvo de muitas expectativas.

Nossa aposta foi dar visibilidade e contribuir para mudança de imaginário sobre as vozes e rostos que não estão no poder: mulheres negras, indígenas, quilombolas, grupos de matriz africana (candomblé, por exemplo), LGBTIQ+ e juventudes. Estes grupos, que representam apenas uma parte da imensa diversidade brasileira, foram convidados a construir a campanha desde dentro, trazendo seus pontos de vista sobre política e comunicação.

Uma campanha feita com muitas e diversas mãos

Buscando trazer a temática da representatividade para o processo de construção da campanha, o time foi composto de cineastas, designers e comunicadores negros, indígenas e LGBTIQ+ –, e também foram feitas parcerias com movimentos sociais e influenciadores digitais.  O objetivo era criar um ambiente de diálogo plural entre ativistas durante a ação, fortalecendo alianças e ampliando o debate antirracista para dentro da Plataforma; e  trazer o lugar de fala destes ativistas para as narrativas da campanha, buscando contemplar a linguagem e as pautas políticas essenciais para os movimentos sociais[2].

O conceito da campanha considerou (1) a sub-representação de grupos discriminados – negros, indígenas, LGBTI, povos tradicionais de matriz africana e quilombolas, e as mulheres e juventudes destes grupos; mas também (2) temas associados que impedem a realização plena da representatividade destes grupos em processos eleitorais, como a desinformação (fake news) e a violência política. Neste sentido, a perspectiva do espelho presente no mote – Quero me ver no poder – foi trazida para a identidade visual e logo da campanha: um olho, atento, que busca compreender a distribuição de poder na sociedade a partir de seu lugar de fala, sua identidade e suas demandas por direitos. Este olhar diverso tensiona uma política tradicionalmente ocupada por homens, brancos, que se apresentam como heterossexuais, das classes sociais mais altas da sociedade.

Resistir para existir: o contexto violento e as vozes ressonantes

O percurso da campanha Quero me ver no poder foi permeado por violências decorrentes do contexto adverso do país, mas também pela produção de estratégias de resistência. Em 14 de outubro, antecipando o quadro a ser enfrentado, a Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político lançou um manifesto denunciando a propagação do “sentimento antipolítica” nas eleições presidenciais em 2018 – resultando na baixa representatividade e vitória do candidato conservador Jair Bolsonaro -, e chamando a sociedade a atuar em defesa da democracia no pleito de 2020.

A campanha foi lançada em 16 de outubro, por meio de um vídeo que convidava a população a eleger “pessoas diversas que respeitem as pessoas”, “pessoas que compreendam as necessidades das comunidades”, afirmando que “é possível mudar a cara do poder” através do voto. Ao longo do mês, outros vídeos, cards e textos foram divulgados diariamente no âmbito da campanha, materiais de comunicação capazes de fortalecer e de incidir nas disputas de narrativas durante o contexto das eleições. Potencializamos as experiências, os desafios e as agendas dos grupos sub-representados.

Em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, data em que lançaríamos pela campanha o mini-documentário sobre história das mulheres negras na política brasileira, fomos literalmente atingidos pela notícia do assassinato de João Alberto Silveira Freitas, na noite do dia anteior, em uma loja do supermercado Carrefour. Beto, como era conhecido, um homem negro de 40 anos, foi espancado e asfixiado por funcionários do estabelecimento[3]. Com isso, o vídeo foi lançado sob o signo do luto do povo negro brasileiro, e a equipe ficou muito impactada emocionalmente. Registramos nossa solidariedade por meio das redes da Plataforma, e seguimos apoiando ações nas ruas e nas redes[4].

Para o segundo turno, restaram 57 cidades para definir a prefeitura e a campanha Quero me ver no poder continuou pautando o debate, apresentando dados e análises dos resultados do primeiro turno. Infelizmente, somente uma mulher foi eleita prefeita entre as 27 capitais do país, ainda que a proporção de mulheres eleitas no primeiro turno para todos os cargos tenha sido de 15,7%, um aumento de 2,3% em relação ao primeiro turno de 2016. Alguns dados positivos foram alcançados, como a eleição de 199 indígenas, 31 mulheres; metade das casas legislativas ocupadas por negros e negras; a primeira mulher trans e mais votada a vereadora da maior cidade do país, São Paulo, Erika Hilton, além de 80 pessoas assumidamente LGBTIQ+ eleitas.

Presente e futuro de Quero me ver no poder

A campanha gerou engajamento nas redes sociais, matérias na mídia hegemônica e contra-hegemônica e repercutiu no grupo de Whatsapp da Plataforma. Algumas delas produziram espontaneamente uma camiseta com o logotipo da campanha para usar no dia da votação. Os conteúdos que geraram maior pico de audiência foram o mini documentário sobre as mulheres negras na política (4,2 mil visualizações únicas); a reportagem Multiplicando Vozes, de uma das jovens da Chamada Pública (59.637 pessoas alcançadas); e a reportagem Violência política contra mulheres negras na internet opera para silenciar vozes, também de uma das jovens da Chamada Pública (52.908 pessoas alcançadas)[5].

Vale destacar que a chamada pública direcionada para 10 jovens comunicadores do Brasil produzida pela campanha refletiu e revelou lugares, pertencimentos, sonhos e reflexões levando em consideração as vozes, ecos, trajetórias e narrativas de grupos historicamente invisibilizados pela mídia hegemônica.  Foi uma produção baseada no desejo de compreender e reconhecer o papel crucial que esses grupos têm para o fortalecimento de um projeto de sociedade verdadeiramente democrático.

Infelizmente, a violência política dominou a arena pública após a eleição de mulheres negras e trans: diversos casos foram registrados desde o fim do primeiro turno até a redação deste artigo[6]. A situação da violência política foi reportada pela campanha por meio da live de avaliação, onde algumas propostas para enfrentamento do problema foram colocadas pelos movimentos sociais, a exemplo da responsabilização dos partidos políticos e da justiça. Também publicamos a matéria Sementes de Marielle sobre o enfrentamento à violência política, feito pelas mulheres negras. A partir da avaliação da campanha Quero me ver no poder feita com as organizações da Plataforma, compreendemos que o debate colocado segue no centro das pautas: os corpos considerados inadequados aos espaços de poder estão sob ataque e, por outro lado, estas pessoas eleitas têm a tarefa de transformar os espaços de poder, agora a partir da institucionalidade, para que sejam verdadeiramente democráticos. E assim, começamos 2021 dando continuidade à ação. Em janeiro, lançamos o E-book #QueroMeVerNoPoder na live Eleições 2020 e as disputas de narrativas dos grupos sub-representados.

Em fevereiro, para contar e debater as experiências vivenciadas por candidaturas periféricas em seus diversos contextos, realizamos a  live Candidaturas periféricas e os desafios da disputa pelos espaços de poder.

O apoio do Fundo Pulsante foi fundamental para a realização da campanha Quero me ver no poder e o desafio, a partir de agora, é seguir promovendo este debate na sociedade, na luta por uma democracia verdadeiramente representativa.  A Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político continuará atuando ativamente no sentido de gerar transformações na política, para que o poder seja de fato compartilhado e ocupado por todos os grupos da sociedade brasileira.

Queremos nos ver no poder!

[1] Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc, Odara – Instituto de Mulher Negra, Intervozes, Movimento Nacional de Combate à Corrupção Eleitoral – MCCE, Associação Brasileira de ONGs – Abong, Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil – CONIC, Rede Afro LGBT, Fórum Permanente de Igualdade Racial – FOPIR, Coletivo Cordel, Iser Assessoria, Fórum da Amazônia Oriental – FAOR, Central de Movimentos Populares – CMP Rio de Janeiro, Fórum Brasileiro de Economia Solidária – FBES, Articulação Nacional de Jovens Negras Feministas  – ANJF, SOS Corpo, Pastoral da Juventude do Meio Popular – PJMP, Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira – CENARAB, Articulação Justiça e Direitos Humanos – JusDH.

[2] Contamos com a colaboração de Miguel Oliveira (Rede Afro LGBT), Priscila Tapajoara (cineasta e integrante do coletivo Mídia Índia); Poliana Silva (designer negra); Larissa Fulana de Tal (cineasta e membro da APAN – Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro) e Elisângela Araújo (designer gráfico ativista do grupo Mães pela Diversidade). Contribuíram, ainda, o professor Onésio Munduruku, que traduziu materiais para a língua indígena Munduruku, e o jornalista Paulo Victor Melo, do Setorial Dandara do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, que realizou as reportagens sobre candidaturas coletivas e sobre violência política.

Por fim, participaram da campanha as influenciadoras Preta Rara (@pretararaoficial), rapper, historiadora, escritora; Winnie Bueno (@winniebueno), criadora do Tinder dos Livros, empreendedora; Gabriela Loran (@gabrielaloran), transfeminista e psicóloga; Kae Guajajara (@kaeguajajara), cantora, compositora, arte-educadora e escritora, fundadora da @azuruhu, loja online de arte indígena e Nailah Veleci (@pretaijimú), cientista política e jovem embaixadora da ONU.

[3] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/12/ministerio-publico-denuncia-seis-pessoas-por-morte-de-beto-freitas-no-carrefour.shtml

[4] https://www.facebook.com/plataformareformapolitica/videos/2133307283459636/

[5] Dados de novembro de 2020.

[6] https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/eleicoes/2020/noticia/2020/11/18/primeira-vereadora-negra-eleita-em-joinville-e-vitima-de-racismo-e-ameacas.ghtml

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