Felipe Betim
Marielle segue presente. No último domingo, o Rio de Janeiro elegeu para a Câmara dos Deputados e para a Assembleia Legislativa do Estado (ALERJ) quatro mulheres negras e oriundas da periferia que, além de novatas na linha de frente da política institucional, eram próximas da vereadora executada em março deste ano —quase sete meses depois, ainda não se sabe por quem— no centro do Rio de Janeiro. Renata Souza, Mônica Francisco e Daniela Monteiro foram eleitas deputadas estaduais pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que terá uma bancada de cinco parlamentares no legislativo estadual. Mas antes foram assessoras de Marielle Franco e trabalharam com ela lado a lado. Já Talíria Petrone, também próxima à vereadora, teve sua estreia eleitoral em 2016, ao se eleger para a Câmara de Niterói. Em 2019 engrossará a bancada do partido na Câmara federal —que saltou de cinco para dez parlamentares.
Petrone, que tem 33 anos, é uma professora de História niteroiense do bairro de Fonseca, na zona norte da cidade, que é vizinha ao Rio. Dava aula num cursinho pré-vestibular e numa escola pública do Complexo de Favelas da Maré, onde Marielle nasceu e cresceu. Foram lá que se conheceram e passaram a militar juntas. Uma vez dentro do PSOL, a amizade se reforçou quando se lançaram candidatas a vereadora, em 2016. “Éramos as únicas mulheres do PSOL com perfis muito semelhantes com mandato. Decidimos nossa candidatura no mesmo momento”, recorda Petrone. Munida com 107.317 votos, quer levar para a Câmara dos Deputados não apenas a temática da educação —o principal eixo de sua militância— e da segurança pública. Diante do avanço ultraconservador materializado no país pelo candidato a presidente Jair Bolsonaro, pretende formar uma “frente antifascista” com os demais partidos, sejam eles de esquerda, de centro ou de centro-direita, “para derrotar o ódio e a violência e garantir a democracia”. “Nossa tarefa principal é fazer a maior articulação possível”, explica.
Foi no Complexo da Maré, uma das maiores favelas do Rio e onde nasceu Marielle, que Renata Souza, de 36 anos, a conheceu. Também oriunda de lá, Souza estudou com a vereadora no cursinho pré-vestibular da ONG Redes da Maré há 18 anos. Depois, enquanto estudava jornalismo na PUC-Rio, uma universidade privada onde tinha bolsa de estudos, Marielle fazia Ciências Sociais na mesma instituição. Pouco depois, em 2006, ambas ajudaram a fazer a campanha na Maré do deputado estadual Marcelo Freixo —o segundo mais votado para a Câmara dos Deputados neste ano, também pelo PSOL. As duas acabaram então sendo escolhidas para trabalhar no gabinete do parlamentar e lá ficaram durante 10 anos.
“Eu fazia a assessoria de comunicação inteira, desde newsletter até os relatórios da Comissão de Direitos Humanos. Marielle coordenou a comissão, e eu acompanhava todos temas”, explica. Durante a campanha da amiga para a Câmara de Vereadores, foi sua coordenadora de comunicação. Depois, foi nomeada chefe de gabinete. “O trabalho era feito de forma muito horizontal com toda a equipe” explica. Sua candidatura surgiu depois da brutal execução de Marielle e de Anderson Gomes no dia 14 de março deste ano. “Não passava pela minha cabeça [me candidatar], ainda que não tenham faltado oportunidades nesse período de construção do partido, desde 2006. Meu trabalho era de bastidor, era fazer Marielle brilhar”, conta. Com a perspectiva de que Freixo deixaria a ALERJ, Souza foi então apontada como sua sucessora. Pretende dar continuidade ao seu trabalho, sobretudo na Comissão de Direitos Humanos. “Foi um trabalho que construímos juntos nesses 10 anos. É conhecer todos os trâmites, fazer com que a ALERJ seja menos burocrática no atendimento ao público. Foi um trabalho que eu ajudei a gestar”, explica.
Ao longo da campanha, Souza foi apresentada como a candidata do Freixo. Mas a referência com Marielle, reconhece, é muito forte. “Não tem como apagar da minha história. De trabalho, de construção juntas. Fizemos o primeiro congresso do PSOL na Maré. Ir para a linha de frente agora é muita responsabilidade, mas é o amadurecimento de um trabalho que começou há 12 anos”, explica ela, que conquistou 63.937 votos. “Mas costumo dizer que o legado da Marielle não é o legado de uma pessoa, seria injusto com a história dela. É universal, é para a humanidade”.
Se a candidatura de Souza surgiu depois da execução de Marielle, a de Mônica Francisco já estava sendo gestada pela própria vereadora, a quem conheceu durante seu trabalho com Freixo na Comissão de Direitos Humanos. “Ela entendia que minha candidatura era uma necessidade neste momento de construção do partido. E eu meio que dava uns perdidos, desconversava, porque estávamos empenhadas em fortalecer e construir a Marielle. A decisão mesmo veio depois de sua morte”, explica.
Nascida no morro do Borel, na zona norte do Rio, Francisco, 48 anos, é também pastora evangélica e cientista social. Há 30 anos é ativista dos direitos humanos e, uma vez que se juntou ao gabinete da vereadora, fez parte da equipe de favelas e liderava os trabalhos da frente parlamentar da economia solidária, uma de suas especialidades. Agora, após ter conquistado 40.631 votos, pretende levar suas pautas adiante e continuar aproximando o campo progressista do eleitorado evangélico. “Existe uma frente de evangélicas pela legalização do aborto, assim como uma frente cristã antifascista. A cristandade católica e evangélica não é homogênea. Precisamos ampliar o olhar e fazer a disputa dentro desse campo”, argumenta. “A Bíblia não é antagônica com a justiça social. É organizar o povo, é fraternidade, solidariedade, justiça… A deturpação de sua mensagem é tendenciosa e deliberada”.
Diante de uma maioria ultraconservadora que também estará presente na ALERJ a partir do ano que vem, promete levar “a defesa incondicional dos processos democráticos” e fazer uma oposição responsável, tentando até o último momento dialogar e “fazer pontes”, ao mesmo tempo entendendo “as diferenças ideológicas muito grandes”, explica. “Isso eu levo da minha experiência da vida, do papo reto. O papo reto na favela é sobreviver. É a capacidade de diálogo firme e muito coerente”.
A caçula da turma se chama Daniela —ou só Dani— Monteiro. Com apenas 27 anos, está muito vinculada ao movimento estudantil da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), onde começou a estudar Ciências Sociais em 2010. “Foi quando comecei a militar, por causa da dificuldade de permanecer na universidade, que não contempla o jovem negro que entra por cotas. Elas são importantes, mas a falta de assistência dificulta a permanência”, explica ela, nascida e criada no Morro São Carlos, no centro do Rio. Foi por causa dessa dificuldade que trancou o curso, a partir de 2011, para poder trabalhar. Voltou em 2015 quando passou a ser permitido acumular a bolsa permanência com a bolsa de iniciação científica, que somadas dão quase um salário mínimo. Nesse período fora, contudo, sua vida como ativista continuou. Coincidiu com as manifestações de junho de 2013, a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 —e as desapropriações que ocorreram por causa dela. “Em 2012, com a campanha do Freixo para a prefeitura, me aproximei das lutas do PSOL, me filiei e participei da construção dos núcleos de base, de território”, conta.
Com a eleição de Marielle em 2016, passou a construir com ela políticas públicas para a juventude, principalmente a negra e sem perspectiva, que visavam sobretudo a geração de renda e emprego. Foi também quando começou a pensar em voo próprio e se candidatar. Com seus 27.982 votos, a partir do ano que vem levará essas mesmas temáticas da juventude para o debate estadual. “Marielle sempre lidou com mães de vítimas de violência do Estado, que perderam seus filhos ou viram serem encarcerados. E isso também cai nessa questão da juventude”. Conciliará esta nova etapa com o término de seus estudos, previsto para o final de 2019. Por fazer parte, junto com seus irmãos, da primeira geração de sua família que teve acesso ao ensino superior, sua formatura é também de enorme importância.