A linguagem do governo Bolsonaro como dano coletivo à democracia e às mulheres

Juliana Romão*

Uma vitória simbólica de grande porte. A Justiça Federal em São Paulo determinou que o Governo Bolsonaro repare a população brasileira por danos morais coletivos provocados por declarações feitas em diversas ocasiões, combinadas com a omissão do dever institucional da promoção da igualdade de gênero. Em resumo, a trajetória discursiva desta gestão presidencial corporifica uma política de violação dos direitos das mulheres e dos interesses da coletividade, com deturpação do conceito de liberdade de expressão e graves prejuízos à democracia. O que o presidente FALA é nocivo ao país. Esta sentença é uma grande conquista do ponto de vista linguístico, político, jurídico, social e democrático.

Por meio de sistemáticas falas depreciativas e preconceituosas, proferidas em momentos de visível satisfação e demonstração de poder, o presidente e sua equipe agravam a situação de violência de gênero e as desigualdades como um todo, afundando a noção de cidadania. São manifestações que constituem abuso da liberdade de expressão no desempenho do poder e, pelo conjunto da obra, seu governo foi condenado.

Ajuizada pelo Ministério Público Federal, a ação cita nominalmente o presidente Jair Bolsonaro, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, o ministro da Economia, Paulo Guedes. Comprovada a responsabilização, a sentença estabeleceu como medida reparadora a destinação de recursos à publicidade oficial que sejam, enfim, compatíveis com a defesa das garantias constitucionais.

O Governo Federal terá que desembolsar uma multa de R$ 5 milhões e investir outros R$ 10 milhões em campanhas educativas – baseada em estudos e pesquisas científicas- sobre as violências que atingem as mulheres no Brasil: violências física, moral, política, verbal, sexual, econômica, etc. O dinheiro da multa será destinado ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos.

Ainda cabe recurso, mas isso não é o mais importante, nem mesmo os valores estipulados como indenização, ou a necessária campanha de conscientização. A relevância da condenação está no reconhecimento da fala como equivalente da ação – falar é fazer – e na compreensão (confirmação) da existência de um continuado abuso de poder linguístico promovido pelo Governo Federal, gerador de graves prejuízos coletivos, da ordem do simbólico (o imaginário, a cultura, os estereótipos) e do concreto, que é a reprodução das violências cotidianas contra as mulheres, incentivadas e legitimadas pelo “exemplo” das autoridades. 

São falas amplamente divulgadas que perpetuam desigualdades e naturalizam violações de direitos das mulheres diretamente, e contra a democracia, de maneira geral. Na medida em que o presidente agride a imprensa (preferencialmente as jornalistas), se nega a responder perguntas, persegue verbal e criminalmente as vozes contraditórias e oculta informações, ele fere a democracia e impõe um regime de censura e autoritarismo.

O ato de falar é um instrumento para realizar ações. Ao estabelecer em suas narrativas públicas uma postura agressiva, jocosa e transgressora dos valores constitucionais quando se relaciona com a imprensa, nas redes sociais e nas performances das agendas oficiais, Bolsonaro executa a violência ao mesmo tempo em que a verbaliza.

O lugar da palavra presidencial torna as manifestações ainda mais delituosas. O poder linguístico emoldura a concentração das forças econômica, midiática, política e cultural, que Bourdieu chama de poder simbólico. Um poder quase mágico, oculto, capaz de “fazer ver e fazer crer”, não apenas pela palavra ou gramática em si, mas pelo reconhecimento de legitimidade conferido à pessoa que fala. A voz de autoridade é reconhecida como tal, reafirmando continuamente a força simbólica da pessoa falante (e de seu grupo).  

Chega a ser inacreditável, destaca a sentença da juíza Ana Lúcia Petri Betto, da 6.ª Vara Cível Federal de SP, que ocupantes de altos cargos do Poder Executivo e do Poder Legislativo, “a quem compete institucionalmente o estabelecimento de políticas públicas para a promoção da igualdade, da isonomia, da harmonia e da paz entre os cidadãos, façam uso de seus cargos para investir contra parcelas da população historicamente inseridas em situação de hipossuficiência social”.

União rebate 

Em contestação à sentença, a União tentou eximir-se da responsabilização alegando não haver relação entre a atuação estatal e o dano invocado, pois a narrativa em destaque estaria amparada em atos pessoais, descolados da coisa pública, e inseridos no arcabouço do direito constitucional à liberdade de expressão. Sem sustentação jurídica, a contestação foi amplamente desconstruída e provada inconsistente na decisão de Ana Lúcia.  

O contra-argumento da juíza destaca que a própria Constituição estabelece que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos respondem sim pelos danos que seus agentes causarem a terceiros, no caso, às mulheres e à população. Atesta ainda que a liberdade de expressão não é um direito absoluto e o texto constitucional prevê limitações ao seu exercício, entre elas a de não admitir, como núcleo essencial deste direito, manifestações de intolerância e de incitação à discriminação e ao ódio, sob pena de desvirtuamento dos princípios da República. Ou seja, as falas proferidas na condição de agente governamental que incitam a intolerância e à desumanização não podem jamais ser compreendidas ou acobertadas pelo direito da liberdade de expressão ou de pensamento.

Os delitos nos atos de fala

A simples reprodução das declarações evidencia o seu conteúdo esdrúxulo e transgressor, como lista a sentença: 

Violações ditas pelo presidente Jair Bolsonaro:

Declaração a jornalistas em 25.04.2019: “O Brasil não poder ser o paraíso do turismo gay. Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade. Agora, não pode ficar conhecido como paraíso do mundo gay aqui dentro.”

Declaração a jornalistas em 25.04.2019: “O Brasil não poder ser o paraíso do turismo gay. Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade. Agora, não pode ficar conhecido como paraíso do mundo gay aqui dentro.”

Pronunciamento público em frente ao Palácio da Alvorada em 18.02.2020: “O depoimento do River (…) Hans River, foi no final de 2018 para o Ministério Público, ele diz o assédio da jornalista em cima dele. Ela queria um furo. Ela queria dar o furo! a qualquer preço contra mim (…).”

Violações ditas por Paulo Guedes:

Palestra realizada em 05.09.2019: “Eu estou vendo progresso em várias frentes, mas a preocupação é: xingaram a Bachelet, xingaram a mulher do Macron, chamaram a mulher de feia. ‘Ah, o Macron falou que estão botando fogo na floresta brasileira, o presidente devolveu. Falou que a mulher dele é feia’. Tudo bem, é divertido. Não tem problema nenhum, é tudo verdade, o presidente falou mesmo. E é verdade mesmo, a mulher é feia mesmo.”

Violações ditas por Damares Alves:

Audiência da Comissão de Defesa dos Direitos e da Mulher na Câmara dos Deputados em 16.04.2019: “A mulher deve ser submissa. Dentro da doutrina cristã, sim. Dentro da doutrina cristã, lá dentro da igreja, nós entendemos que um casamento entre homem e mulher, o homem é o líder do casamento. Então essa é uma percepção lá dentro da minha igreja, dentro da minha fé. […] Que deputada linda. Só o fato de você estar no parlamento. Não precisava nem abrir a boca. Só o fato de você estar aqui, já diz pra jovens lá fora, elas também podem chegar aqui.”

Pronunciamento sobre índices de estupro na Ilha de Marajó (PA) em 24.07.2019: ““Por que os pais exploram? É por causa da fome? Vamos levar empreendimentos para a ilha do Marajó, vamos atender as necessidades daquele povo. Uns especialistas chegaram a falar para nós aqui no gabinete que as meninas lá são exploradas porque não têm calcinha. Não usam calcinha, são muito pobres. E perguntaram ‘por que o ministério não faz uma campanha para levar calcinhas para lá?’. Nós conseguimos um monte. Mas por que levar calcinha? Essa calcinha vai acabar. Nós temos que levar uma fábrica de calcinhas para a ilha do Marajó, gerar emprego lá, e as calcinhas saírem baratinhas para as meninas.”

Os exemplos evidenciam que os/as representantes do Governo Federal não se pronunciaram na condição de cidadãos e cidadãs. Valeram-se da função pública ocupada, dos contextos em que se encontravam e, particularmente no caso dos pronunciamentos do Presidente da República, “da ênfase em expressões inadequadas e polêmicas, em evidente expectativa de proveito político da repercussão deflagrada”. Esse tipo de fala compõe a performance estratégica, conceitual e ideológica do presidente. É sua “persona” político-eleitoral.

No Discurso e Poder Teun A Van Djik explica que dominar as narrativas sociais é também, ainda que indiretamente, controlar o que as pessoas querem e fazem, de forma a persuadir, seduzir e doutrinar, sem a necessidade de coerção. Assim, olhando com atenção e uma certa dose de otimismo, esta sentença é também uma reação, um passo acertado e firme no enfrentamento ao abuso linguístico, ponta de lança para todas as outras opressões.

A indenização

Além da multa, a sentença determina a imediata realização de campanhas publicitárias com duração mínima de um ano para a conscientização social sobre:

·         Violência e assédios moral, físico e sexual e de desigualdade em relação às mulheres, nos vários segmentos sociais;

·         Turismo sexual, tráfico de pessoas, acesso à renda, emprego, salários e remunerações, cargos políticos e de direção (cúpula) nos setores público e privados;

·         Divulgação dos direitos das vítimas mulheres de violência a serem atendidas por profissionais de segurança pública, de saúde e de unidades públicas de referência de assistência social, que tenham formação e capacitação em escuta ativa e atendimento humanizado sobre violência de gênero, sobre a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) e a Lei que prevê o atendimento no SUS das vítimas de violência sexual (Lei 12.845/2013);

·         Divulgação de outras políticas públicas que estão sendo efetivamente implementadas para alcançar a igualdade de gênero, de acordo com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS5), tanto para acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas e também para eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas das esferas públicas e privadas).

Difícil imaginar que estejam em funcionamento políticas públicas focadas em alcançar a igualdade de gênero e enfrentar as desigualdades de raça e classe; igualmente forçoso é acreditar que esta campanha se concretize. Nesta perspectiva, o importante mesmo é depositar no reconhecimento judicial do dano coletivo provocado pela violência linguística desta gestão federal a maior conquista simbólica da sentença, com potencial para nos levar a novas arenas, em que a democracia, mesmo ferida, receba alimento para se reerguer.

E o fará, literalmente, na medida em que dizemos que sim.

Juliana Romão é mestra em comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), estuda a inclusão de gênero na linguagem e a presença da mulher na política, é membra da PartidA e co-fundadora do projeto-ação Meu Voto Será Feminista. Email: [email protected]