“O lampejo da transformação radical virá das bordas. Os habitantes das bordas veem as coisas primeiro, que quem está no centro não vê”. A afirmação da jornalista, escritora e professora universitária Rosane Borges (clique para assistir) no primeiro dia do Encontro Nacional da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político inspirou os debates entre as e os mais de cem integrantes de organizações, coletivos, movimentos e núcleos de pesquisas que participaram da atividade, realizada de forma virtual nas últimas quinta e sexta-feira (25 e 26/02).
Convidada pela Plataforma para a leitura compartilhada de cenário político do Encontro, Rosane destacou que, desde que o campo produtivo foi deslocado para as mãos do capitalismo financeiro, que mantém 1% da população, acumulando riqueza, crescem os debates sobre a configuração e os rumos do Brasil no cenário mundial. Para ela, se na década de 1990, a burguesia brasileira renunciou a um projeto de desenvolvimento e, em 2016, ela abriu mão da civilização, em maio de 1888, ela abriu mão da maioria da população. “Fundar uma nação que excluiu a maioria de sua população é uma nação que nunca poderá ser republicana. Se não recuarmos casas históricas, não teremos aptidão para pensar no futuro”, alertou. Para Borges, o enfrentamento do Estado neoliberal suicidário exige que a sociedade civil pense mudanças estruturais e comportamentais. “Precisamos desenhar a política pela dramaticidade do racismo e do sexismo pelo mundo. Até as pessoas não negras experimentarão o que é ser negro, como diz Achille Mbembe. Temos de caminhar em direção a quem foi triplamente destituído. Para isso, cabe disputar imaginários apontando que a base da nossa tragédia está na extinção das raças não hegemônicas e na escravização de corpos”, apontou.
Representando o Grupo de Referência da Plataforma (GR) na abertura da atividade, a pastora Romi Bencke (Conic) (clique para ver o vídeo) sublinhou que transformar o sistema político é, além de pensar a construção de novas institucionalidades e espaços de tomadas de decisão não institucionais, é “falar também do reconhecimento de novos sujeitos políticos e de como se equalizam, entre estes sujeitos, do ponto de vista democrático, as disputas políticas e econômicas”. Bencke elencou uma série de ações desenvolvidas pela Plataforma no último período, que “transformaram e transformam o luto em luta”: os debates constantes feitos em lives e no grupo de WhatsApp, o enfrentamento ao racismo, ao patriarcado e ao capitalismo, a campanha pela cassação da chapa Bolsonaro-Mourão e a campanha #QueroMeVerNoPoder, que visa sensibilizar a população para o enfrentamento da sub-representação nos espaços de poder. “Nas eleições municipais fomos enfáticos e enfáticas na defesa da participação política das mulheres, chamamos a atenção e apoiamos as candidaturas dos grupos subrepresentados. A campanha foi o rosto da nossa compreensão de que não há democracia sem a representação das pessoas que estão nas periferias”.
A integrante da Comissão Europeia no Brasil responsável pelo acompanhamento do projeto que contribuiu para o fortalecimento de ações da Plataforma, Denise Verdade, parabenizou a iniciativa do Encontro e apontou a importância do trabalho das organizações da sociedade civil no sentido de diálogo com o Estado e para a conquista de transformações. Para ela, nesse momento delicado de pandemia e crise que o Brasil enfrenta, “o slogan ‘não deixar ninguém para trás’ nunca fez tanto sentido”, saudou.
As relações entre a leitura mais ampla de conjuntura, o sistema político que queremos e temas considerados fundamentais para a Plataforma para que ele se concretize (como o feminismo, o antirracismo, a economia, a laicidade, a questão urbana, o enfrentamento à LGBTQIfobia e os direitos dos povos originários) foram destacadas em intervenções de integrantes da Plataforma que buscaram contribuir para a convergência desses temas nos debates propostos para o segundo dia de Encontro.
Por onde, com quem e como transformar radicalmente o sistema político?
Na tarde de sexta-feira, tendo como ponto de partida a reflexão sobre a Versão III da Plataforma (que é a síntese do acúmulo de nossos diálogos e convergências políticas de 2016 até agora, junto com os debates que serão feitos nos encontros regionais e temáticos em 2021 e outras atividades), apresentada pelo representante da Abong, Franklin Felix, as e os participantes se reuniram em grupos para debater, à luz da leitura de que a Plataforma – que se caracteriza como um grupo plural, diverso, horizontal e solidário – já não defende mais a mera “reforma” do sistema político, mas sua integral e profunda transformação, sobre como essa transformação pode se dar de maneira articulada com o enfrentamento ao racismo, ao patriarcado e a lesbohomotransfobia no interior da Plataforma, e com qual organicidade.
As sínteses dos debates foram apresentadas em plenário e serão sistematizadas nos próximos dias pelo Grupo de Referência com o objetivo de contribuir com a definição de ações da Plataforma que coadunem com a estratégia da articulação para o próximo período.
José Antonio Moroni, que encerrou o Encontro pelo GR, lembrou que a dinâmica histórica da Plataforma envolve acolher tudo o que é apontado pelas organizações e falou sobre as dificuldades que precisaremos enfrentar, conjuntamente, em mais um momento trágico da vida brasileira. “Fizemos um grande Encontro, com todos os desafios postos para nós, mas estamos entrando num momento muito difícil da pandemia e nosso lema de vida deve ser nos cuidarmos para podermos cuidar de quem a gente ama e podermos derrubar o bolsonarismo. Somos teimosas e teimosos e ali na frente nos encontraremos e nos abraçaremos muito”.