Nas últimas eleições dos Estados Unidos e da Colômbia, os votos negros foram decisivos, e no Brasil, Votos Negros Importam!?

Por Angela Figueiredo*

A divulgação da pesquisa sobre as intenções de voto realizada pelo Datafolha mostra uma evidente rejeição das eleitoras ao atual presidente – já que apenas 27% do eleitorado feminino manifestam intenção de voto – e o apoio significativo dos eleitores evangélicos a ele (43%). Na direção contrária, situa-se a candidatura de Lula, com maior apoio das eleitoras mulheres (46%) e rejeição dos eleitores evangélicos (35%). Entre os eleitores que ganham até dois salários mínimos, Lula lidera com folga, com 54% das intenções de voto, contra 23% de Bolsonaro. Já a avaliação do atual presidente é classificada como ruim ou péssima para 53% dos que ganham até um salário mínimo, exatamente onde se situa uma parte significativa do eleitorado negro. Com relação à raça/cor, a pesquisa mostra uma predileção pelo candidato Lula em todas as categorias, 58% dos declarados negros manifestam intenção de voto em Lula, contra 20% do candidato Bolsonaro; entre os pardos, 41% declaram intenção de voto no ex-presidente Lula e 30% em Bolsonaro; entre os brancos, a diferença diminui, já que 41% intenciona votar em Lula e 33% no atual presidente.

As campanhas dos dois candidatos estão criando estratégias para superar as dificuldades e reduzir as desvantagens entre as mulheres e os evangélicos. Mas o que ocorre quanto aos votos dos negros? Por que não somos sequer mencionados/as nas estratégias para aumentar o número de eleitores dos candidatos? Será que a categoria renda, como indicativo de classe, faz subsumir a cor/raça? Ou será que, por maior que seja o protagonismo negro, continuamos a ser ignorados/as? A questão central deste texto é refletir sobre o silêncio de todos os candidatos, bem como da impressa sobre a importância dos eleitores/as negros/as. Dito de outro modo, buscaremos entender se os votos negros importam.

Nos últimos anos temos presenciado o crescimento do debate e o tensionamento das questões relativas às desigualdades raciais, ao racismo e ao sexismo no Brasil, assim como percebemos a ampliação do ativismo negro, principalmente do Feminismo Negro. Isso tem levado à consciência da importância da disputa na arena política partidária/representativa, trazendo como consequência o crescimento do número de candidaturas negras, principalmente de mulheres negras (cis e trans) comprometidas com as pautas antissexista e antirracista, e focando na educação e na justiça social.

O movimento Vidas Negras Importam, intensificado após o assassinato de George Floyd, em 25 de maio de 2020, estimulou diferentes mobilizações antirracistas no mundo, inclusive no Brasil, e isso reforçou uma prática histórica entre nós, que diz respeito à comparação entre o Brasil e os Estados Unidos. Nesse sentido, é importante lembrar que os afro-estadunidenses são cerca de 13% da população, enquanto nós somos 56% aqui no país, e lá o voto não é obrigatório, mesmo assim, em diferentes momentos o voto negro foi considerado decisivo para a eleição presidencial nos Estados Unidos. Quando os negros bateram recorde de comparecimento, em 2012, garantiram a reeleição de Barack Obama. Quando tiveram a menor participação em 20 anos, em 2016, a ausência contribuiu para derrota de Hillary Clinton.  Na última eleição, John Biden teve 87% dos votos dos eleitores negros.

Na contramão desses dados, estima que 2,23 milhões de norte-americanos que já saíram da prisão continuam sem direito de votar. Incluindo pessoas que ainda cumprem pena, o universo dos eleitores estadunidenses excluídos sobe para 5,2 milhões. O Sentencing Project estima que 6,2% dos adultos negros do país estão impedidos de votar em razão da restrição. No restante da população, o percentual é de 1,7%.

O Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, são 919.951 pessoas em situação de cárcere, sendo 867 mil homens e 49 mil mulheres. Os dados apontam um índice de 434 presos para cada 100 mil habitantes.  De acordo com a Gazeta Mercantil, “apenas 5% dos presos que poderiam votar foram às urnas em 2018. Isso ocorre porque, de acordo com a Constituição Federal, somente os presos sem possibilidade de recurso têm os direitos políticos suspensos”. O que ocorre de fato é que temos um significativo número de pessoas que não exercem o direito do voto.

Digressão à parte, o fato é que não há interesse de nenhum dos candidatos a uma ação intencional voltada para a conquista do eleitorado negro, exatamente porque não há nenhum interesse real na transformação radical no quadro das desigualdades raciais no Brasil. Quais as razões dessa invisibilização e indiferença? Como e por que isso ocorre? Qual o papel das pesquisas e dos analistas políticos nesse processo?  Para responder a essas perguntas é preciso destacar a importância do discurso sobre a democracia racial no país, que perdeu importância enquanto mito fundador de nossa sociedade nos últimos anos – devido aos questionamentos e ações políticas dos movimentos negros realizados desde o final dos anos de 1970 – mas que permanece vivo em sua capacidade de provocar e manter a cegueira racial.

De fato, isso é ignorar as condições de vida da população negra hoje no Brasil, majoritariamente pobre. Sabemos que atualmente 33 milhões de pessoas não têm o que comer e 70% delas são negras. Assim como é negra a maioria da população encarcerada no país. Tudo isso leva à constatação de uma estratégia cujo alvo é desrracializar a pobreza e a fome e não nomear a riqueza e os privilégios. Assim como quase não temos informações sobre os eleitores jovens, grupo tão importante para a vitória na Colômbia de Gustavo Petro e Francia Márquez – uma mulher negra e ex-trabalhadora doméstica, que afirma que a força do eleitorado feminino, jovem e negro é a prova de que os dias do patriarcado branco na política estão acabando.

Provavelmente, o Brasil tem o maior número de trabalhadoras doméstica do mundo, são cerca de 6,2 milhões, sendo 92% de mulheres e 68% (3,9 milhões) de mulheres negras. O trabalho doméstico é a porta de entrada do mercado de trabalho de mulheres negras com baixa escolaridade, elas têm as maiores taxas de desemprego, recebem 44% da renda de um homem branco e formam o grupo que apresentou a maior taxa de pobreza no ano de 2020.

É preciso ressaltar também as significativas mudanças na configuração das identidades: se a luta do Movimento Negro Unificado (MNU), no final dos anos de 1970, era para mostrar o fosso que constituía as desigualdades raciais e fazer ruir o mito da democracia racial no país, mostrando que em termos de indicadores objetivos de renda e escolaridade estávamos divididos entre negros e brancos, as gerações atuais têm produzido significativas mudanças na intersecção das categorias de gênero, raça e sexualidade, que configuram as identidades, reposicionando os sujeitos e sujeitas negras que hoje elaboram questões e interpelam certezas antes inquestionadas na democracia; o que é expresso na frase “Igualdade de direitos para quem?” ou “Sem paridade racial e de gênero não há democracia”; e no confrontamento ao modelo hegemônico de representação política baseado no indivíduo abstrato, mas que de fato representa o indivíduo masculino, branco e heterossexual. Em contrapartida, as candidaturas coletivas estão rompendo com esse modelo individualista neoliberal de representação política na sociedade brasileira.

Recusar olhar para a condição de pobreza e marginalidade em que vive a população negra num momento político como este é manter intacta as estruturas racistas que reproduzem o privilégio da brancura em nossa sociedade. Os candidatos que nos desconsideram precisam saber que os votos negros podem ser decisivos no Brasil, como o são nos Estados Unidos e como foram importantes para a vitória de Francia Márquez na Colômbia. Mas nós, negros e negras, precisamos ter consciência disso, fazendo a nossa escolha por candidaturas que representem uma ruptura radical com o modelo individualista, racista e sexista que impera em nossa sociedade, fazendo com que a frase “Votos negros importam!” seja mais do que um sonho, mas um projeto político de acesso a direitos e à cidadania plena.

* Professora, pesquisadora, feminista negra, integrante do Coletivo Angela Davis e do Fórum Nacional Marielles.