Candidaturas coletivas: política do “nós” em superação ao “eu” enfrentam obstáculos dos sistemas político e de Justiça

Eleições 2020 marcam recorde de candidaturas coletivas no Brasil, que têm seus registros questionados por órgãos eleitorais

Por Paulo Victor Melo*

Fortaleza, capital do Ceará, quinto maior contingente populacional do país. Ouricuri, sertão de Pernambuco, pouco mais de 64 mil habitantes. Geografias, culturas e economias distintas também marcam as diferenças entre esses dois locais. Mas nas eleições de 2020 um mesmo fato as coloca em convergência: nas duas cidades, órgãos eleitorais apresentaram restrições a candidaturas coletivas às Câmaras de Vereadores/as.

Em Fortaleza, o Ministério Público Estadual da 117ª Zona Eleitoral entrou com pedido de impugnação da candidatura coletiva Nossa Cara, do Partido Socialismo e Liberdade (Psol). Na ação, a promotora Ana Maria Gonçalves Basto de Alencer argumentou, dentre outras coisas, que um banner de campanha induzia os eleitores ao erro de votar em três candidatas, o que, como consta em seu parecer, é uma “situação não permitida em nosso sistema eleitoral, no qual as candidaturas são individualizadas”.

Formada por “três mulheres, negras, periféricas, ativistas”, como se autoafirmam no site oficial, a candidatura inicialmente inscrita com o nome “Nossa Cara” precisou, após interposição de recurso, ser registrada para o nome na urna como “Adriana do Nossa Cara”, uma espécie de empréstimo do nome de Adriana Gerônimo, assistente social que integra o coletivo junto com Louise Santana e Lila M. Salu. Conforme consta no site do Tribunal Superior Eleitoral, porém, há ainda recurso a ser julgado em instância superior.

Já em Ouricuri a situção revela-se ainda mais embaraçosa. Integrada por “mulheres sertanejas, trabalhadoras do campo e militantes do Fórum de Mulheres do Araripe”, como se caracterizam, a Coletivas Elas – uma candidatura coletiva também do Psol – foi impedida pelo Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco de fazer qualquer menção ou referência ao seu caráter coletivo. Com recurso impetrado ao TSE, o registro de nome na urna está, por ora, como “Adevania”, uma das integrantes da candidatura.

Essas decisões conflitam com o que pensam, por exemplo, a promotora de justiça Ana Laura Bandeira Lunardelli, assessora eleitoral do Ministério Público de São Paulo, e Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, procurador regional da República e ex-procurador regional eleitoral de São Paulo. Em artigo recente, publicado no site Consultor Jurídico, eles pontuam que “não havendo restrição legal, não convém retirar do processo eleitoral esse experimento social que busca facilitar a participação de setores da sociedade normalmente excluídos. A ideia de ampliação da representatividade da legislatura deve ser prestigiada na interpretação e aplicação da lei eleitoral, pois garante a pluralidade de visões e melhora a qualidade do debate democrático ao dar voz a sujeitos pouco visíveis dentro do atual modelo”.

Embora o pedido do MP do Ceará e a definição do TRE de Pernambuco baseiem-se no fato de não haver previsão legal desse formato de candidatura – questão que a PEC 379/17, em tramitação no Congresso Nacional, visa solucionar -, as tentativas de impedimento extrapolam o universo jurídico e dizem respeito a aspectos sobre participação, representatividade e democracia. Afinal, eleição após eleição as candidaturas coletivas crescem em termos quantitativos e espalham-se por todas as partes do país.

De acordo com levantamento feito pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e o coletivo científico Common.Data, 328 candidaturas coletivas às Câmaras de Vereadores/as e cinco às Prefeituras foram registradas nas eleições desse ano. Chama a atenção também o fato de que apenas 32% das candidaturas coletivas identificadas nas eleições do próximo 15 de novembro são em capitais, o que sinaliza um movimento de interiorização dessa modalidade de candidatura.

Superar a sub-representação

Para Carmela Zigoni, doutora em Antropologia Social e Assessora do Inesc, as candidaturas coletivas “representam uma tentativa de fazer a política de forma menos individual, de pensar construções coletivas e projetos que tenham base em colaboração, e não em uma pessoa individualmente, e sinalizam para a possibilidade de dividir o poder de decisão e os processos políticos de interesse público”.

A avaliação de Zigoni é compartilhada por Débora Rezende de Almeida, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB), para quem a ampliação das candidaturas coletivas expressa uma inovação no sistema político brasileiro, “especialmente no que tange ao baixo acesso aos espaços de poder de grupos sistematicamente excluídos devido à desigualdade de recursos e capitais políticos e culturais”.

Um dos grupos excluídos que Almeida faz referência é o das mulheres. Enquanto a participação feminina no Congresso Nacional é de 15%, as mulheres representam mais de 51% das pessoas com o nome na urna em candidaturas coletivas nas eleições desse ano, de acordo com os dados coletados pelo Inesc e Common.Data.

No entendimento da pesquisadora do Ipol/UnB, que qualifica a sub-representação das mulheres nos espaços de poder como “assombrosa” e avalia como insuficiente a política de cotas partidárias, muitas das candidaturas coletivas surgem para “superar as barreiras de entrada não seguindo estritamente as suas regras, e estão diretamente relacionadas às lutas e bandeiras dos movimentos sociais para aumentar a representação”.

Zigoni, do Inesc, afirma que “essas candidaturas são muito mais representativas dos grupos populacionais e acabam sendo mais inclusivas neste sentido. Enquanto no geral os homens são maioria, e as candidaturas de homens brancos mais viáveis (pelo recurso maior, principalmente), 52% das candidaturas coletivas são encabeçadas por mulheres e 50% por pessoas negras, sinalizando que é possível fazer política com representatividade, e que estando em coletivo podem tentar romper com as dificuldades impostas pelas desigualdades do próprios sistema eleitoral”.

“Empurrar a porta” e enfrentar o autoritarismo

Socióloga e ex-Ouvidora Geral da Defensoria Pública da Bahia, Vilma Reis compreende as candidaturas coletivas como um “esforço de transformar a política em algo possível para a nossa existência, porque, como me disse Andreia de Jesus [advogada e atualmente Deputada Estadual em Minas Gerais] nosso sonho é transformar a política em uma política feita por nós e para nós, fazer dela uma política do nosso povo”.

Mas para que essa transformação aconteça, diz Reis, são necessários sucessivos atos de “empurrar a porta”.  “Temos que continuar empurrando a porta do Parlamento para que a agenda política das mulheres negras, dos povos indígenas, das comunidades quilombolas, das pescadoras artesanais e outros segmentos sejam discutidas no Legislativo”, defende.

Analisando o processo eleitoral no contexto mais amplo da democracia, Renata Rolim, professora do Departamento de Direito da Universidade Federal da Paraíba, reconhece ser um avanço a maior participação das mulheres em candidaturas eletivas, mas ressalta que “a participação política das mulheres não deveria ser medida pela ocupação de postos institucionais, mas pela organização combativa das próprias mulheres”. “Como estamos na defesa de nossos direitos democráticos que estão sob o ataque da extrema direita?”, questiona Rolim, ao frisar que “a luta política consiste, entre outras questões, em demarcar um terreno de opiniões e projetos”.

Nesse sentido, a professora da UFPB acredita que as tentativas de inviabilização das candidaturas coletivas são apenas uma face da mesma concepção judicial que se alinhou aos processos antidemocráticos em curso desde 2016. “O Sistema de Justiça – Poder Judiciário, Ministério Público, Polícias etc. – participaram ativamente do golpe de 2016 e, posteriormente, de sua consolidação, com a prisão do ex-Presidente Lula. Se uma pessoa com a popularidade de Lula sofreu um processo judicial absolutamente ilegal, ninguém mais está seguro nesse país, em especial os políticos da esquerda”.

Como saída para este cenário de aprofundamento autoritário, Rolim aposta numa “mobilização de amplas massas”. “E temos que fazer isso o quanto antes”, alerta.

Uma breve história das candidaturas e mandatos coletivos no Brasil

Não se pode falar necessariamente em consenso sobre o início das candidaturas e mandatos coletivos no Brasil. Alguns estudos colocam como marco inaugural o mandato de João Yuji, eleito vereador pelo antigo PTN (atual Podemos) em Alto Paraíso de Goiás, nas eleições de 2016, integrante de uma coalizão com outras quatro pessoas.

Já segundo pesquisa da Rede Política de Ação pela Sustentabilidade (Raps) essas experiências existem no Brasil desde 1995 e foram sendo ampliadas a cada processo eleitoral. Coordenada por Leonardo Secchi, professor de Políticas Públicas da Universidade do Estado de Santa Catarina, a pesquisa mapeou 110 iniciativas de candidaturas coletivas ou compartilhadas entre as eleições de 1994 e 2018 para cargos em Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas, Câmara dos Deputados e Senado.

Ainda de acordo com o levantamento, essas candidaturas aconteceram em 50 municípios de 17 estados do país, com representação em 22 partidos polítcos e atingiram, juntas, mais de 1 milhão e 200 mil votos.

A Pesquisa da Raps localiza a situação brasileira dentro de um contexto internacional de profusão de movimentos que propõem a coletivização das tomadas de decisão legislativa, citando experiências de outros países, como Suécia, Austrália, Itália, Islândia, Argentina e Espanha. “Em diferentes culturas e locais do globo, há um movimento semelhante que visa incluir os cidadãos no processo decisório de forma compartilhada, buscando inovar a partir das oportunidades surgidas da crise da democracia e da revolução tecnológica, com potencial para revitalizar a relação entre representantes e representados em distintos continentes”, aponta trecho do estudo.

O caso da Coletiva Elas como simbólico dos óbices enfrentados pelas candidaturas coletivas

Como dito no início dessa reportagem, a Coletiva Elas (formada por Adevania Coelho, Rozy Silva e Jane Lopes) solicitou, no processo de registro de candidatura, que em seu nome de urna constasse apenas “Coletiva Elas” ou, subsidiariamente, “Adevania do Coletiva Elas”, inserindo o nome da titular da candidatura, mas garantindo menção ao projeto coletivo. O Juiz Eleitoral de Ouricuri-PE rejeitou os pedidos, deferindo sua candidatura apenas com o nome “Adevania”.

Frente a essa decisão, o escritório Lavor, Novaes e Leandro, que representa as candidaturas do PSOL em Pernambuco (incluindo 20 candidaturas coletivas), interpôs recurso ao Tribunal Regional Eleitoral e apresentou sustentação oral defendendo os pedidos. Intimado, o Ministério Público Eleitoral se manifestou favorável ao pedido constante no recurso (inserção do termo ‘”Coletiva Elas” no nome de registro). O Desembargador Relator do pedido, Des. Ruy Trezena Patu, votou pelo provimento parcial dos pedidos – ou seja, pela manutenção do nome subsidiário “Adevania da Coletiva Elas” e foi seguido pelo Des. Edilson Pereira Nobre.

Contudo, os outros cinco desembargadores do TRE/PE apresentaram dissidência e votaram contra os pedidos e favoráveis à manutenção da sentença do 1º grau, logo pela manutenção do nome “Adevania”.

Vale ressaltar que um dos votos contrários foi proferido pelo Presidente do TRE/PE, Desembargador Frederico Neves, que embora tenha afirmado ter “simpatia” com as candidaturas coletivas já havia se posicionado publicamente defendendo a inexistência de previsão legal desses projetos, conforme declaração concedida ao jornal Diário de Pernambuco, em 30 de setembro deste ano.

A partir do caso da Coletiva Elas, na última segunda-feira, 26, o TRE/PE aprovou uma Orientação Normativa, estabelecendo que, para constar na urna eletrônica, o nome “não poderá conter qualquer expressão que, ainda que aliada ao prenome, sobrenome, cognome, nome abreviado, apelido ou nome pelo qual é mais conhecido o candidato, sugira ao eleitor que o mandato será exercido coletivamente”.

Ao interpor recurso junto ao TSE, o advogado da Coletiva Elas, Roberto Leandro, salienta que os pedidos apresentados pela Coletiva Elas não descumprem qualquer instrumento da legislação eleitoral. “A resolução 23.609/2019 do TSE, que trata do Registro de Candidatura, em seu Artigo 25, apresenta as exigências legais dos nomes para urna: ter até 30 caracteres; não estabelecer dúvida sobre identidade; não atentar contra o pudor, ser “ridículo ou irreverente”. Coletiva Elas e Adevania da Coletiva Elas nitidamente não afrontam nenhum dos dispositivos citados”, argumenta.

Para o advogado, a impugnação de candidaturas coletivas é, em verdade, “uma resposta institucional à estratégia de grupos sociais historicamente excluídos, que não detêm a devida representação nos espaços institucionais”, já que nas eleições de 2018 o TRE/PE deferiu registros de candidaturas com nomes para urna como “Biu da Macaxeira”, “Alberi dos Caminhoneiros”, “GG do Gás”, “Inaldo do Raio-X”, “Tony da Igreja”, “Jane de Bocão”, “Jacó do Povo”, dentre outros.

Uma das componentes da Coletiva Elas, Jane Lopes afirma que essa decisão judicial “só reforça a cultura machista de que o lugar da mulher não é na política”, sendo o propósito da candidatura “justamente ocupar esse espaço e mostrar que a política é lugar de todas as pessoas que votam e podem ser votadas”.

Ao sublinhar que esse é um direito constitucional, Lopes lamenta ao dizer que “quando vamos para a prática temos vários empecilhos e esse julgamento é mais uma prova que esses empecilhos estão cada vez mais evidentes fortalecidos”.

O que se passa com a candidatura coletiva de Ouricuri chama ainda mais atenção pelo fato da Assembleia Legislativa de Pernambuco ter, desde janeiro de 2019, uma das suas cadeiras ocupada pelas Juntas, mandato coletivo que reúne cinco mulheres de diferentes segmentos sociais e recebeu mais de 39 mil votos nas eleições de 2018.

Em Manifesto publicado esse mês e entregue ao presidente do TRE/PE, as Juntas se posicionaram em defesa da legalidade das candidaturas coletivas e reivindicaram o amparo da Justiça Eleitoral e dos partidos a essas experiências compartilhadas. “Importante ressaltar que além de um novo jeito de organizar um mandato, as candidaturas coletivas reestruturam toda lógica político-partidária brasileira. Elas carregam em sua gênese princípios como coletividade na construção de decisões, horizontalidade e despersonalização da política”, citam em uma passagem do documento.

Paulo Victor Melo, jornalista. Reportagem produzida para a campanha #QueroMeVerNoPoder, da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político

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