DPRJ traça perfil de mulheres criminalizadas pela prática do aborto

 

Negra, mãe, pobre e sem antecedentes criminais. Este é o perfil das mulheres que respondem a processo criminal pela prática de aborto, conforme levantamento realizado pela Diretoria de Pesquisa e Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. O grupo analisado é pequeno se comparado ao universo estimado em cerca de meio milhão de brasileiras submetidas anualmente a abortos clandestinos. São 42 mulheres que respondem criminalmente por terem abortado, sozinhas ou com ajuda de terceiros, no estado. Para elas, porém, os desdobramentos são ainda mais perversos, pois acrescentam o desgaste da criminalização aos riscos à saúde e à vida impostos pelas clínicas de fundo de quintal ou pelo procedimento feito no banheiro de casa.

(DPRJ, 30/11/2017 – acesse no site de origem)

Todas foram enquadradas no art. 124 do Código Penal (“provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”), que prevê pena de detenção de um a três anos. Em pouco mais de 30% dos casos, a investigação policial que deu origem ao processo judicial foi fruto da denúncia de hospitais em que a mulher foi atendida por conta de intervenção mal feita. Ou ainda de apelo de familiares que não sabiam como socorrê-la.

Além de expostas a agressões, de sofrerem risco à saúde e de passarem pelo constrangimento de serem rés em processo criminal, há outras características comuns a essas 42 mulheres. Metade delas é negra, mãe e pobre (mais de 50% são representadas por defensores públicos). A maioria tem entre 22 e 25 anos e mora no município do Rio de Janeiro.

Além disso, nenhuma das mulheres processadas possuía antecedentes criminais na data da instauração do inquérito, o que lhes garantiu o alívio de, ao menos, poderem responder ao processo em liberdade e não serem submetidas a julgamento pelo Tribunal do Júri, uma vez que o Ministério Público propôs a suspensão do processo mediante a observância de algumas condições. Cumpridas tais condições, o processo será extinto.

— A situação dessas mulheres é de extrema vulnerabilidade, pois em geral procuram atendimento médico porque se sentiram muito mal em casa, vindo a abortar, muitas vezes, no hospital público para o qual são levadas já em situação crítica. É comum que a mulher demore a decidir pelo aborto por medo de ser descoberta, realizando o procedimento com a gravidez já em estágio avançado, sofrendo de forma mais drástica os efeitos do procedimento de interrupção da gestação. Muitas acabam de abortar no banheiro do hospital e são hostilizadas pelos médicos e enfermeiros, cujo papel seria justamente auxiliá-las num momento tão difícil — explica a diretora de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Rio, Carolina Haber.

A pedido da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria, Carolina e equipe fizeram levantamento de todos os processos em tramitação no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro relativos a aborto, no período entre 2005 a 2017.  A ideia era traçar o perfil das mulheres criminalizadas pela conduta. Dados sobre tudo o que cerca o aborto são, quase sempre, extraoficiais. Calcula-se que, no Brasil, a cada minuto, uma mulher interrompe voluntariamente a gravidez. Todos os anos, pelo menos 155 mil delas são hospitalizadas na rede pública por complicações de intervenções temerárias.

— A realização da pesquisa é muito importante, no momento em que se discute no país a questão da criminalização do aborto. É preciso evidenciar que a criminalização incide sobre  um grupo bem específico: mulheres negras e pobres, moradoras da periferia, a quem os mais diversos direitos são cotidianamente  negados, provocando discriminação social inaceitável e inconstitucional —, ressalta Arlanza Rebello, coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria. Ela destaca, ainda, que essa parcela da sociedade sobrevive a uma superposição de vulnerabilidades e discriminação interseccional inaceitável, inconstitucional e que as leva à morte. “Está mais do que na hora de enfrentarmos a discussão: a quem atende a criminalização do aborto? Quem em nossa sociedade exerce o poder de determinar a vida e a morte de nós, mulheres?”, questiona.

Universo pesquisado

No Tribunal de Justiça do Rio, correm 78 ações penais de crime doloso contra a vida por motivo de aborto, que podem ser levadas, inclusive, ao Tribunal do Júri. Alguns desses processos ainda em curso foram abertos há mais de dez anos. Para os fins da pesquisa da Defensoria, foram analisados 55 dessas ações:  em 42 delas, as mulheres são rés.  As demais ações são contra pessoas que as teriam obrigado ao aborto — companheiros, familiares ou ainda médicos negligentes no atendimento à gestante.

— Dividimos em dois grupos os 42 casos das mulheres rés. No primeiro estão vinte mulheres que praticaram aborto sozinhas, em casa, ou contaram com a ajuda de uma terceira pessoa para tal, quase sempre alguém do seu círculo familiar ou com quem teve relacionamento sexual. O outro grupo é composto pelos processos em que ocorreu investigação policial de clínicas de aborto. Nesse caso, além dos funcionários envolvidos, algumas mulheres que estavam realizando ou tinham acabado de realizar procedimento para encerrar a gravidez também foram processadas — explica a coordenadora da pesquisa.

A análise de perfil das duas dezenas de mulheres inseridas no primeiro grupo mostra, com clareza, a situação de risco a que são obrigadas a se expor. “Apenas três delas indicaram gestação abaixo de doze semanas ou três meses, período considerado mais seguro para realização de aborto. A análise dos processos penais contra as mulheres desse primeiro grupo aponta também que metade das induções ocorreram em casa ou até no ambiente de trabalho. Na outra metade, a expulsão do feto se deu na unidade hospitalar em que a mulher foi socorrida, já passando mal. O método mais frequente foram medicamentos (Citotec foi o mais citado) e chás abortivos.

Chás abortivos

“Mulheres que tomam remédios e chás abortivos demoram a buscar ajuda quando o aborto está acontecendo e sofrem, solitárias, com o processo de expulsão do feto. Sabendo que sua conduta é ilícita, adiam ao máximo a decisão, o que agrava o risco de aborto em estágio avançado de gravidez”, diz o relatório da pesquisa. “Duas mulheres tomaram chás abortivos, começaram a sentir dores e sofreram todo o processo de expulsão do feto isoladas, no banheiro de casa, sem nenhum apoio, sem ninguém do lado.  Ambas estavam na segunda metade de gravidez e relataram terem tido a sensação de parir sozinhas”.

A situação do outro grupo de mulheres, formado por 22 gestantes que recorreram a clínicas, difere, em vários aspectos, das circunstâncias em que abortam aquelas do primeiro grupo, em especial quanto ao tempo de gestação.

“Em todos os casos que se tem informação, a gestação estava abaixo de doze semanas, o que indica que a mulher em condições de pagar pelo procedimento consegue tomar a decisão com mais rapidez. Apesar do risco a que estão expostas, de terem que se apresentar desacompanhadas e sem celular, estão em melhor situação por contarem com a presença de um médico e por poderem interromper a gestação ainda em fase inicial.’

O relatório destaca que em somente quatro dos processos abertos a partir de batidas policiais em clínicas há acompanhantes também denunciados à justiça: três homens e uma amiga.

“Praticamente todas as clinicas investigadas realizam outros procedimentos ginecológicos (apenas uma tinha como fachada uma clínica de estética) e contavam com médicos para realizar os procedimentos de interrupção da gravidez. Apenas uma delas era realmente o que se pode chamar de clandestina, pois as responsáveis não tinham formação médica e realizaram o aborto de forma muito rudimentar, sem nenhum cuidado com a vítima, que faleceu”, ressalva a pesquisa.

Investigação de clínicas

Um terceiro grupo analisado pela pesquisa da Defensoria Pública é o único em que as mulheres não são rés, mas apenas vítimas. Nele estão pessoas que as obrigaram ao aborto, seja forçando-as a ir até uma clínica, seja forçando-as a tomar remédio abortivo.  “Há também casos em que os réus foram acusados de praticar aborto sem o consentimento da gestante, mas que levaram a vítima a óbito ou a vítima não era maior de quatorze anos”, prossegue o relatório.

Familiares, namorados e abusadores denunciados nesses processos subjugaram a gestantes, pelo menos uma delas com treze anos de idade, para que ingerissem remédios, tivessem objetos introduzidos no corpo para provocar expulsão do feto ou ainda fizeram uso de socos, chutes e pontapés com o propósito de levar a mulher ao aborto.

“Dois processos cuidam de médicos que teriam sido negligentes no tratamento dado às pacientes. Um deles teria retirado o útero da vítima em razão de um mioma, sem notar sua gravidez, e outro foi omisso no acompanhamento do trabalho de parto, levando à morte do bebê”, detalha a pesquisa.

A pena prevista para a conduta de provocar aborto sem o consentimento da gestante é de três a dez anos; com consentimento, de um a quatro anos de detenção (art. 125 e 126 do Código Penal, respectivamente).

“Em um deles, o réu não aceitou a gravidez da mulher com quem tinha um relacionamento amoroso e a sufocou até que abrisse a boca e ingerisse quatro comprimidos de Citotec, contra a sua vontade. Há dois casos de aborto provocado em gestantes de quatorze anos. Um pelo próprio pai, que abusava sexualmente da vítima desde que ela tinha oito anos, e outro pelo homem com quem a vítima mantinha relacionamento amoroso, mas que não aceitou a gravidez, pois estava noivo de outra mulher, ameaçando matar a vítima se ela não fosse com ele numa clínica fazer o procedimento”, menciona Carolina Haber.

— Esses são exemplos do nível de violência, física ou psicológica sofrida pela mulher que aborta —, resume a diretora de pesquisa.

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