“Após 2 anos de cortes nos recursos destinados às políticas para as mulheres, o orçamento 2020 garante quase 400 milhões para o Ministério de Damares Alves. PPA, declarações e medidas já adotadas pelo governo levam a crer que montante será utilizado em políticas orientadas pelo fundamentalismo religioso”.
Por Carmela Zigoni, assessora política do Inesc
Muito se tem publicado sobre os cortes orçamentários de políticas para as mulheres. O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) tem monitorado a alocação de recursos para esta política desde o início do período de austeridade fiscal, intensificado com o Teto de Gastos. Em comparação com o recurso autorizado em 2015, a política de mulheres sofreu redução de 82% em 2018.
Em 2019, o recurso foi recomposto, tendo sido autorizados quase 300 milhões para o Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência. No entanto, a execução foi baixíssima, menos de 10%, sendo cerca de 28 milhões em recursos pagos e 46 milhões de restos a pagar, ou seja, recursos comprometidos com contratos de anos anteriores pagos em 2019. O Gráfico 1 demonstra a evolução do recurso do Programa 2016 em 8 anos:
Em 2020, o recurso autorizado para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) foi de R$394 milhões: deste recurso, R$96 milhões é alocado especificamente para as mulheres (24,43% do total). O que isso significa, na prática, para as brasileiras? O Plano Plurianual (PPA) de Bolsonaro e declarações e medidas adotadas pela ministra Damares Alves tem nos dado algumas pistas.
O novo PPA
O novo Plano PluriAnual 2020-2023, elaborado pelo Governo do presidente Jair Bolsonaro, excluiu o Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência, e criou o Programa 5034: Proteção à Vida, Fortalecimento da Família, Promoção e Defesa dos Direitos Humanos para Todos. Se o Programa 2016 era destinado somente às mulheres, o novo Programa 5034 é um guarda-chuva para execução de políticas do Ministério, hoje chefiado por Damares Alves, destinadas às mulheres, aos idosos, e pessoas com deficiência.
O PPA é o instrumento de planejamento e organização da ação pública e expressa as escolhas de um governo. Não é coincidência o fato de as palavras racismo, negros e quilombolas terem sido excluídas deste documento em sua versão bolsonarista, adotando uma visão “direitos humanos para humanos direitos”, tão difundida pelo grupo político da extrema direita. Enterram-se três décadas de construção das políticas de igualdade racial e promoção dos direitos dos povos e comunidades tradicionais.
Em relação às mulheres, a construção do novo PPA ignorou o II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), construído por meio de quatro conferências nacionais, com participação de mais de 2 mil mulheres em cada edição. Não é possível visualizar as prioridades do II PNPM no PPA 2020-2023, e este tampouco apresenta metas e indicadores para monitorar o alcance dos resultados.
No PPA 2020-2023, o Programa 5034 tem o seguinte objetivo: “Objetivo: 1179 – Ampliar o acesso e o alcance das políticas de direitos, com foco no fortalecimento da família, por meio da melhoria da qualidade dos serviços de promoção e proteção da vida, desde a concepção, da mulher, da família e dos direitos humanos para todos”.
Chama a atenção a exclusão da questão da violência contra as mulheres, por um lado, e a inclusão da “proteção da vida desde a concepção”, por outro. O recado é bastante claro em relação ao tipo de política para as mulheres que será colocado em curso até 2022. Ao retirar a violência do documento que planeja a política pública para as mulheres, focando somente na família, o governo esconde o fato comprovado de que a violência doméstica é sofrida por milhares de mulheres e meninas dentro de suas próprias casas, na maioria dos casos pelos próprios maridos e parentes.
O orçamento no país do fundamentalismo religioso
A Ministra Damares Alves não esconde sua predileção pelo Estado religioso: em recente entrevista, defendeu a “ocupação da nação pelas igrejas”, e afirmou que “Temos falta de casas de abrigo para mulheres vítimas de violência. Por que essas igrejas não fazem uma parceria conosco, cedendo o seu espaço físico para abrigar essas mulheres?”. Em 2019, dos quase R$ 20 milhões autorizados para a construção das casas da mulher brasileira, nenhum recurso foi gasto. Também não houve recurso autorizado para o Disque 180 e o Disque 100, canais voltados, respectivamente, para denúncias de violência contra as mulheres e violação de direitos humanos.
Em 2020, isso muda: ainda que o PPA 2020-2023 invisibilize a questão da violência, o MDH priorizou o tema no orçamento. Dos mais de R$96 milhões autorizados em 2020, voltados especificamente para as mulheres, quase R$25 milhões estão carimbados para “Políticas de Igualdade e Enfrentamento à Violência”; mais de R$71 milhões são para a “Construção da Casa da Mulher Brasileira e de Centros de Atendimento às Mulheres em Fronteira Seca”; e mais de R$ 35 milhões para os dois canais de atendimento. Estas três ações somam cerca de R$132 milhões em recursos.
Se o problema de recursos, então, parece estar superado – pelo menos até o primeiro decreto de reprogramação orçamentária, onde o governo pode decidir contingenciar uma parte destes recursos –, a questão passa a ser: como estas políticas serão implementadas? Será respeitado o princípio de laicidade do Estado nos atendimentos, equipamentos e serviços? A pertinência do questionamento está no fato de que o governo se furtou de apresentar o desenho da política no PPA 2020-2023, embora esteja publicando decretos para regular algumas iniciativas.
É o caso da Casa da Mulher Brasileira, serviço que visa ser a porta de entrada da política pública para mulheres em situação de vulnerabilidade extrema, cujas diretrizes para os convênios estão publicadas no site do MDH, e tem regulamentação no Decreto nº10.112 de 12 de novembro de 2019, que cria o Programa Mulher Segura e Protegida.
Chama a atenção a presença de salas para reconhecimento dos agressores, presença da Polícia Militar e sala para detenção provisória. Não está explicitado como será o funcionamento dos serviços, mas pela forma como estão organizados os espaços e equipes, trata-se de um equipamento militarizado, para atendimento tanto de mulheres (vítimas), como de homens (agressores).
Ao mesmo tempo, o PPA 2020-2023 reforça a mensagem da defesa da vida desde a concepção em um que país continua se negando a discutir o aborto como saúde pública e social, tramitando Projetos de Lei para criminalizar a interrupção de gravidez em casos de estupro, risco de vida para a mãe e anencefalia do feto, hoje permitidos. Dentro do Programa 5034, a Ação 21AQ: Proteção do Direito à Vida, teve recurso autorizado em 2020 no valor de R$41 milhões – no entanto, não há nenhum documento, até o presente momento, que apresente o desenho desta ação, ou seja, como será implementada.
A maior parte do recurso autorizado do MDH foi para a Ação 21AR – Promoção e Defesa de Direitos para Todos, no valor de R$159 milhões, sem detalhamento de como será gasto: por enquanto, o Plano Orçamentário desta ação ainda consta como “PO – 0000: Despesas Diversas”, podendo ser alterado durante o ano, mas convenhamos, é bastante recurso para ser manejado sem planejamento ou destinação específica.
Atentas e fortes!
A questão das mulheres é central na atual conjuntura política. Em 2018, principais opositoras à candidatura de Jair Bolsonaro organizaram marchas por todo o Brasil dizendo #EleNão. A motivação era baseada no fato do então deputado federal proferir falas sexistas e racistas em diversos espaços, chegando ao ponto de agredir a Deputada Maria do Rosário dizendo que não a estupraria porque ela não merecia, agressão pela qual foi condenado.
Uma vez no poder, o governo Bolsonaro, que conta com militares, olavistas e fundamentalistas religiosos, iniciou uma verdadeira cruzada para disputar a narrativa moral junto à sociedade. A Ministra Damares Alves é uma das que reza esta cartilha com maestria: se enganam os que a resumem a uma doidivanas interessada em vestir meninos de azul e meninas de rosa. Ela tem cumprido uma agenda intensa, que inclui viagens internacionais para combater a “ideologia de gênero” (como na visita à Hungria) e participação em reuniões da ONU, fortalecendo pautas conservadoras. Sem deixar de fazer o seu trabalho no Brasil, tem ido em busca de parcerias com estatais, setor privado e setores da igreja e campanhas para adesão aos seus programas sociais. Em 2020, ela terá 394 milhões para sua pasta, o que não é pouco, considerando o atual momento de redução do recurso para gastos sociais.
Neste 8 de março, as mulheres irão às ruas novamente levar suas pautas e demandas. Mais um compromisso se soma à nossa luta, a saber, monitorar o recurso do governo destinado às mulheres, se será executado, e por meio de que programas, ações e diretrizes. Neste cenário, o princípio da transparência e a participação da sociedade são, mais do que nunca, fundamentais.