O Estado laico e a reforma do Código Eleitoral

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Sem a adoção de normas de salvaguarda do laicismo estatal, desde o processo eleitoral, as religiões continuarão a dar o tom de campanhas eleitorais, de decisões políticas, da ação legislativa.

 

 

 

 

 

Por Simone Andréa Barcelos Coutinho

Resumo: Este texto reflete sobre o conceito de Estado laico e o regramento constitucional das relações entre o Estado brasileiro e as religiões. Enfocando o poder de fato das religiões na política, notadamente no Poder Legislativo e desde o processo eleitoral, em que se introduzem temas religiosos a fim de interferir no resultado das eleições, é de rigor que a reforma do Código Eleitoral apresente medidas de efetividade do Estado laico.

Résumé: Ce texte réflechit sur le concept d’État laïc et sur le règlement constitutionnel des rapports entre l’État brésilien et les religions. En focalisant le pouvoir de fait des religions sur la politique, notamment sur le Pouvoir Législatif et dès le processus electoral, dans lequel des thèmes religieux sont introduits dans le but d’interférir sur le résultat des elections, c’est fort nécessaire que la réforme du Code Electoral présente mesures d’effectivité de l’État laïc.

Palavras-chave: Direito Constitucional. Organização do Estado. Estado e igreja. Política e religião. Direito Eleitoral. Reforma do Código Eleitoral.

Sumário: 1. Introdução. Relações entre o Estado e as religiões. 3. Estado laico brasileiro e pluralismo. 4. O poder de fato das religiões e a crise do Estado laico. 5. A efetividade do Estado laico. 6. Conclusões.

 

1. Introdução

Além da liberdade de crença e descrença, a Constituição da República proíbe ao Estado estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança (artigo 19, inciso I). A leitura do dispositivo leva o cidadão a supor que tem direito a legislação, governo e organização social livres de ingerência religiosa: a um Estado laico. Entretanto, esse mesmo cidadão depara-se com notícias referindo-se à “bancada evangélica” do Parlamento ou de suas Casas, bem como à influência da fé que confessam algumas autoridades sobre o exercício de suas funções.

Sabendo que às normas da Constituição deve ser dada eficácia máxima, pergunta-se: para onde vai o direito ao Estado laico, num cenário político recortado pelas religiões? Há algo que possa ser feito na reforma política, em especial, na reforma do Código Eleitoral, sem agredir direitos fundamentais?

2. Relações entre o Estado e as religiões

Segundo José Afonso da Silva (2003, p. 249), quanto à relação entre o Estado e as confissões religiosas, há três sistemas: a confusão, na qual o Estado se confunde com determinada religião, como o Vaticano; a união, em que o Estado e a Igreja mantêm relações jurídicas, como se deu no Brasil Império; a separação. E, quanto à separação, identificam-se a separação rígida (estado neutro e estado ateu) e a separação atenuada (RAMOS, 1987, p. 238), em que “o Estado emite um julgamento positivo sobre a religião em geral, embora predominem os objetivos laicos, legalmente estabelecidos, sobre os objetivos religiosos e não haja opção por determinada seita. Essa valoração positiva da crença é sentida em disposições, conquanto reduzidas, que estimulam e favorecem a disseminação das práticas religiosas, mesmo que não envolvam subvenção.”

Portanto, a liberdade de religião é pressuposto do Estado laico, que se mantém neutro quanto aos cultos (ARAÚJO; NUNES JÚNIOR, 2003, p. 108) e admite e respeita todas as vocações religiosas (SILVA, 2003, p. 250), inclusive o agnosticismo e o ateísmo (FERREIRA, 1998, p. 103; MORAES, 2002, p. 127), sendo que o descrente pode pedir que se tutele juridicamente tal direito (PONTES DE MIRANDA, 1971, t. V, p. 119).

Elival da Silva Ramos averba:

“Dois princípios básicos têm sido apontados como as vigas-mestras das cláusulas de religião: o voluntarismo (a crença deverá ser livre, não coagida) e o separatismo (nem o governo nem a religião deveriam envolver-se no trabalho um do outro).”

Mas, qual é o elemento através do qual essa separação se manifesta, que transcende a mera liberdade de culto?

A pedra de toque do Estado laico é o direito laico, quanto às fontes, ao conteúdo e aos órgãos competentes para o desempenho das funções estatais. O direito é a manifestação mais alta do poder de um Estado; num Estado laico, todo poder emana da vontade do ser humano, e não da idéia que se tenha sobre a vontade dos deuses ou dos sacerdotes. Se o poder emana do ser humano, e, nas democracias, do povo, o direito do Estado também dele emana e em seu nome há de ser exercido.

Destarte, não bastam a garantia da liberdade de culto e a inexistência de relações diretas entre as esferas governamental e religiosa, para definir um Estado como laico; é imperioso que produza normas jurídicas leigas, que suas instituições funcionem e suas autoridades pratiquem atos com total independência em relação às crenças que se manifestem no país.

3. Estado laico brasileiro e pluralismo

A expressão “Estado laico”, embora não cunhada em nenhuma norma constitucional, refere-se a um princípio da organização político-administrativa do Estado, previsto no inciso I do artigo 19 da Constituição da República, da proibição de relações de dependência ou de aliança do Poder Público com quaisquer religiões, bem como favorecimento ou prejuízo dos mesmos pelo Poder Público. Além disso, esse princípio compatibiliza-se com outros expressos na Carta Magna: do pluralismo (art. 1º, V), da isonomia como princípio fundamental (art. 3º, inc. IV); da legalidade (art. 5º, inc. II); da liberdade de consciência, de crença e de culto (art. 5º, VI); (art. 19, I); da imunidade de impostos para templos de qualquer culto (art. 150, VI, b).

O pluralismo, por si só, é incompossível com qualquer forma de união entre o Estado e qualquer religião, pois aquele significa a tolerância e o respeito à multiplicidade de consciências, de crenças, de convicções filosóficas, existenciais, políticas e éticas, em lugar de uma sociedade monista [01], em que as opções da maioria são impostas a todos, travestidas de “bem comum”, “vontade do povo”, “moral e bons costumes” e quejandos.

O Estado laico respeita e tolera, pois, a diversidade de crenças de toda sorte. Mais do que isso, atua em obediência necessária ao pluralismo de consciência, de crença, de culto ou de manifesta ausência de sentimento ou prática religiosa. Sobretudo, um Estado laico e pluralista conduz seus negócios, pratica seus atos e define o interesse público com total independência de qualquer religião, grupo ou sentimento religioso, ainda que francamente majoritário. [02]

Ainda, no Estado laico, não há direito que não o produzido pelo Estado através de seus poderes constituídos. De princípios e normas religiosas, não decorrem direitos nem obrigações para ninguém.Logo, outras autoridades não existem que não as civis e militares, constituídas pelo Estado; não há que se falar em “autoridade religiosa”. Tais premissas têm conseqüências capitais: ninguém, a pretexto de crença ou de liberdade de culto, poderá embaraçar a ação das pessoas ou do Estado, porque colidentes com os princípios ou com a moral religiosa, ainda que se trate de religião dominante numa dada coletividade. Ninguém será privado de direitos por quem quer que se diga dotado de autoridade religiosa, nem se eximirá do dever de respeitar os direitos fundamentais da pessoa humana, a pretexto de crença religiosa.

A Constituição da Republica Federativa do Brasil determina que “ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, inc. II). A religião, assim como a tradição, a ninguém obriga.

Logo, no que tange à ação de um Estado que se pretenda laico, jamais o interesse público poderá ser aferido segundo sentimentos ou idéias religiosas, ainda que se trate de religião da grande maioria da população nele residente. O agente público, autoridade ou não, tem por dever atuar em estrita obediência aos princípios constitucionais da administração pública, mormente os da legalidade e da supremacia do interesse público. Num Estado laico, o interesse público é identificado exclusivamente segundo o seu Direito positivo, nunca segundo a moral religiosa, que não é e não pode ser Direito num Estado laico!

Da mesma maneira, os bens jurídicos tutelados pelas leis não poderão ser aferidos segundo valores religiosos. Vale dizer, não se há de buscar a noção de justiça segundo os princípios desta ou daquela religião. A evolução social alcançada sobretudo na segunda metade do século XX redefiniu a justiça, desvinculando-a da religião, da tradição, do preconceito; redefiniu, pois, as bases do Direito: antes, a moral tradicional, fortemente impregnada de elementos ditados pela religião; hoje, a ética, construção racional.

Num estado laico, portanto, a noção de justiça que serve de ponto de partida do Direito há de ser uma medida racional de equilíbrio de interesses, voltada à pacificação social, norteada pelo pluralismo e pelos direitos fundamentais da pessoa humana, como postos na Constituição da República. E equilíbrio de interesses e pacificação social, numa sociedade pluralista, são conceitos que afastam a preponderância das religiões, mormente em situações nas quais os dogmas religiosos confrontam direitos fundamentais.


4. O poder de fato das religiões e a crise do Estado laico

Tendo em vista que são identificáveis, por exemplo, uma “bancada evangélica” e um “lobby católico” no Congresso Nacional brasileiro, que há partidos cuja legenda inclui o adjetivo “cristão”, e que frequentemente polêmicas religiosas invadem o cenário eleitoral, como falar-se em separação entre Estado e Igreja, em ausência de relações de dependência e sobretudo de aliança entre o Poder Público e as religiões? Não há proibição legal para a eleição de alguém tendo, como plataforma política, seu ativismo religioso ou sua filiação a determinada crença. Assim, a separação entre os negócios do Estado e os da fé ficam seriamente comprometidos, desestabilizando o laicismo do Estado. O Poder Legislativo é um dos Poderes da União; se não for o Legislativo laico, como falar-se em Estado laico?

Esses fatos, documentados pela imprensa brasileira, demonstram a crise do Estado laico, abalado por bancadas parlamentares religiosas, militância religiosa agressiva, que chega a ferir o exercício regular de direitos, magistrados que fazem questão de desprezar princípios fundamentais do Estado para decidirem com base em suas crenças. E, no cenário eleitoral, sempre surgem candidatos que introduzem teses religiosas na disputa pelos cargos eletivos, quer do Poder Executivo, quer do Legislativo.

Como exemplo, oportuno lembrar a instituição tardia do divórcio no Brasil, apenas em 1977! Durante décadas do século XX, a Igreja Católica, religião ainda majoritária no Brasil, teve forças para impedir a aprovação do divórcio (SIMÃO, 2011, p. 65). Diversas confissões religiosas combatem o direito ao aborto, ainda que a gravidez resulte de violência; combatem o uso dos preservativos e de quaisquer métodos anticoncepcionais; condenam a homossexualidade.


5. A efetividade do Estado laico

Entendemos que, num Estado laico, não se pode admitir a fundação de partidos políticos religiosos. Assim, por exemplo, eventual partido “cristão”, “judeu” ou “católico”, é incompatível com o Estado laico. Os partidos políticos fornecem os candidatos aos cargos eletivos dos Poderes Legislativo e Executivo, poderes esses que devem ser exercidos com absoluta independência das religiões. [03] A política, tal qual o direito, deve ser laica.

Não há, na legislação eleitoral, qualquer norma que proíba a constituição e o funcionamento de partidos políticos religiosos; bem assim, da utilização de doutrinas, dogmas, teses ou crenças religiosas no discurso político-eleitoral.

Porém, o inciso VIII do artigo 24 da Lei nº 9.504/97 veda, a partido e candidato, o recebimento direto ou indireto de doação em dinheiro ou estimável em dinheiro, inclusive por meio de publicidade de qualquer espécie, procedente de entidades religiosas.

No Estado laico brasileiro, não será contrária à Constituição a proibição, de lege ferenda, do uso de plataforma religiosa como plataforma político-partidária, tendo em vista o princípio insculpido no inciso I do artigo 19 da Constituição da República. Entretanto, a liberdade de manifestação de pensamento, de consciência e de crença pode ser levantada como óbice a semelhante proibição.

Assim, porém, não nos parece.

O inciso I do artigo 19 da Constituição da República, ao vedar ao Estado estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhe o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança veicula, à toda evidência, regra de proibição endereçada aos Três Poderes, à qual deve ser dada eficácia máxima. Sua dicção, sem dúvida, mais do que autorizar, determina que o legislador valha-se do mecanismo necessário à sua efetividade, diante dos fenômenos sóciopolíticos.

Não há, na Constituição, limitação quanto ao conteúdo da liberdade de manifestação de pensamento, nem da liberdade de culto, como regra geral. A exceção, expressa, consiste na vedação da manifestação do racismo e do preconceito [04]. Sabe-se também que tais manifestações devem respeitar outros direitos fundamentais, como honra, imagem, propriedade [05].

A vedação proposta, ademais, incidiria no processo eleitoral, ou seja, teria duração limitada no tempo e preservaria a plena liberdade de crença, de culto e de manifestação de pensamento de pessoas e entidades, nas demais searas da vida. Se “é natural que as entidades religiosas sejam proibidas de oferecer ajuda financeira a candidatos, pois isso poderia afetar o laicismo do estado” [06], como já decidiu o Tribunal Superior Eleitoral, a mesma premissa há de ser aplicada à constituição e ao funcionamento de partidos políticos religiosos, assim como à introdução de crenças religiosas na campanha eleitoral.

O membro de Poder deve exercer suas funções de acordo com os princípios fundantes do Estado; há, portanto, que respeitar e fazer valer o laicismo do Estado. Por essa razão, o processo de escolha de membros de Poder deve ser regido por um conjunto de normas que garantam a eficácia plena do secularismo na ação estatal, sob pena de relegar-se o princípio contido no inciso I do artigo 19 da Constituição da República à inefetividade manifesta.


6.Conclusões

Para efetividade do Estado laico, é de rigor que a legislação crie mecanismos que a propiciem; assim deve ser interpretado o inciso I do artigo 19 da Constituição da República. A reforma do Código Eleitoral apresenta-se como o foro adequado para o enfrentamento do problema e elaboração de proposições legislativas, como sugerido neste estudo. Sem a adoção de normas de salvaguarda do laicismo estatal, desde o processo eleitoral, as religiões continuarão a dar o tom de campanhas eleitorais, de decisões políticas, da ação legislativa, comprometendo, indefinidamente, a efetividade do Estado laico, determinada pela Constituição.


BIBLIOGRAFIA

ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 7ª edição São Paulo: Saraiva, 2003.

BALTAZAR, Antônio Henrique Lindemberg. Considerações sobre o aborto: em busca de um consenso possível. 2009. 166 p. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional). Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasília. 2009.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 2ª edição São Paulo: Saraiva, 1998.

FERREIRA, Luiz Pinto. Curso de Direito Constitucional. 9ª edição São Paulo: Saraiva, 1.998.

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1.967. Tomo V. 2ª edição São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971

MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 4ª edição São Paulo: Atlas, 2002

RAMOS, Elival da Silva. Notas sobre a liberdade de religião no Brasil e nos Estados Unidos. Revista da Procuradoria Geral do Estado. São Paulo: Centro de Estudos, nº 27/28: 199-246, janeiro/dezembro 1.987.

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22ª edição São Paulo, Malheiros, 2003.

SILVA NETO, Manoel Jorge. Proteção Constitucional à Liberdade Religiosa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

SIMÃO, José Fernando. A Emenda Constitucional nº 66: a revolução do século em matéria de Direito de Família. Revista do Advogado. São Paulo: AASP, nº 112: p. 64-78, julho/2011.

Notas

  1. Conforme SILVA, 2003, p. 143.
  2. Nesse sentido, BALTAZAR, 2009, p. 79.
  3. Conforme SILVA NETO, 2008, p. 121.
  4. Incisos XL e XLI do artigo 5º da Constituição da República.
  5. Exemplificamos: a “pichação” clandestina de muro ou parede ofende o direito de propriedade.
  6. AC – Ação Cautelar nº 352620 – Brasília / DF, Decisão Monocrática de 13/12/2010, Relator (a) Min. HENRIQUE NEVES DA SILVA, Publicação: DJE – Diário da Justiça Eletrônico, Data 16/12/2010, Página 68-69

 

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