Mudanças no perfil racial dos candidatos levantam debates sobre representatividade e possíveis fraudes no sistema eleitoral
Por Karla Souza
Em 2024, o Brasil presenciou pela segunda vez um aumento nas candidaturas de pessoas negras (51,66%), superando a quantidade de candidatos brancos (47,79%). Conforme levantamento da Folha de S. Paulo, dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostram que, neste ano, 9,3% das 454 mil candidaturas registradas até 16 de agosto fizeram mudanças em sua autodeclaração racial. O levantamento aponta que entre os candidatos que participaram das eleições municipais em 2020 e concorrem novamente este ano, 24% alteraram a cor ou raça autodeclarada.
A maioria das alterações ocorreu entre candidatos que em 2020 se declararam brancos, e em 2024 passaram a se identificar como pardos. Cerca de 16,9 mil candidatos seguiram essa mudança, representando 40,4% dos que modificaram sua autodeclaração racial. Um movimento contrário também foi observado: 27,6% dos candidatos que se declararam pardos em 2020 mudaram para brancos este ano.
O que explicaria estas mudanças? Como isso afeta o acesso aos recursos do fundo eleitoral criado para fomentar a representatividade negra?
Joyce Souza Lopes, assistente social, ativista do Instituto Odara e coordenadora do Projeto Quilomba Pela Vida das Mulheres Negras, responde essa questão e aprofunda a análise sobre a complexidade em torno da autodeclaração racial nas candidaturas políticas no Brasil.
Quero Me Ver No Poder: Qual é a importância dos dados sobre autodeclaração racial para a análise da representatividade no sistema eleitoral? Como essas informações podem influenciar políticas públicas e ações afirmativas?
Joyce Souza: Os dados sobre autodeclaração nos informam sobre a composição dos espaços de tomada de decisão, a partir do critério de autoatribuição de pertença, que é como as pessoas afirmam a sua identidade de raça/cor. Numa sociedade racializada como é o Brasil, as informações sobre o acesso a direitos a partir da perspectiva racial escancaram a constatação das desigualdades reproduzidas historicamente.
Temos a constatação, por exemplo, de que a composição racial da sociedade brasileira compreende 55,5% de pessoas autodeclaradas negras no último censo do Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE-2022), mas entre as cadeiras da Câmara dos Deputados Federais, apenas 26% são ocupadas por pessoas negras, uma disparidade que se repete mais ou menos agravada em todos os cargos eletivos. As pessoas negras são apenas 32,1% das 5.568 prefeitas e prefeitos eleitos no Brasil em 2020.
Esses dados fundamentam a defesa de políticas públicas, ações afirmativas e reforma do sistema eleitoral para promoção da paridade de raça e gênero entre os cargos eletivos do executivo e legislativo no Brasil.
Q.M.V.N.P: Segundo o TSE, em 2024, pela segunda vez tivemos mais candidaturas de pessoas negras do que de brancos. Você acredita que este aumento de candidaturas negras reflete um avanço na representatividade? A que você atribui este aumento?
J. S.: Não necessariamente. O quantitativo de pessoas negras nas posições de tomada de decisão por si só já é muito baixo e desproporcional à composição racial da sociedade como um todo. Quando vamos analisar o perfil das pessoas que têm se declarado “pardas” entendemos que o número de representações negras na real é ainda menor. Muitas pessoas brancas, que não têm nenhum traço de identidade negra – nem fenotípico, nem político – têm se declarado pardas, seja por má-fé, por contrariedade ou por equívoco mesmo.
Em 2023, nós do Instituto Odara lançamos o relatório de uma pesquisa em que constatamos que das 90 mulheres eleitas parlamentares no Nordeste em 2022, 36 se autodeclaram negras, mas apenas quatro ou cinco apresentam características de pardas, ou pretas, sem absurda discrepância.
O aumento da autodeclaração negra não é um fenômeno da particularidade do processo eleitoral, também se faz presente no censo demográfico quando analisados os promovidos entre 2010 e 2022.
O crescimento da autodeclaração negra no país pode refletir o investimento em reconhecimento racial, a partir da disputa de narrativa pautada pelo Movimento Negro no Brasil através da valorização da cultura, identidade e estética negra, bem como da defesa de políticas afirmativas, como as cotas raciais no ensino superior e concursos públicos. Por outro lado, existe também cinismo e constrangimento entre a branquitude.
Também devemos considerar que o entendimento da política de autodeclaração racial institucionalizada no Brasil, a respeito da soma de pretos mais pardos ser igual a negros, não seja amplamente difundido e capilarizado, ou até mesmo consensual em todo território nacional.
O fato é que demandamos um estudo rigoroso para um entendimento mais amplo e aprofundado.
Q.M.V.N.P: Apesar desta tendência de aumento de candidaturas negras, isso parece não se refletir no número de eleitas/os, tendo em vista que ainda são sub-representadas/os mesmo sendo a maior parcela da população. A que você atribui isto?
J. S.: O aumento de candidaturas não tem sido proporcional ao aumento de pessoas eleitas, segundo os parâmetros de gênero e raça. Nas eleições de 2022 no Nordeste, a cada 6 homens brancos que se candidataram, 1 foi eleito; a cada 14 mulheres brancas que se candidataram, 1 foi eleita; a cada 16 homens negros que se candidataram, 1 foi eleito; a cada 35 mulheres pardas que se candidataram, 1 foi eleita; a cada 75 mulheres pretas que se candidataram, 1 foi eleita.
O racismo, bem como o patriarcado, não cederia os espaços de tomada de decisão para homens negros, muito menos para mulheres negras e menos ainda para as pretas. Um homem branco no Nordeste tem uma probabilidade 12 vezes maior de ser eleito, em comparação a uma mulher preta. Só alcançaremos a paridade de raça e gênero a partir de uma reforma político-eleitoral que institucionalize políticas afirmativas com maior rigor sobre a ocupação de cadeiras no executivo, legislativo e judiciário.
Nesse sentido, em 2015, o Deputado Luiz Alberto protocolou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) das Cadeiras Negras, prevendo a reserva de vagas na Câmara dos Deputados, nas assembleias legislativas e na Câmara Legislativa do Distrito Federal para parlamentares negros. A PEC foi arquivada ao final da legislatura do proponente, mas é nosso dever cívico retomá-la e colocar no centro do debate sobre paridade racial para efetividade da democracia participativa, ainda um mito para nós tanto quanto a democracia racial!
Q.M.V.N.P: Nas últimas eleições, tem havido um movimento de candidatos brancos, a exemplo de ACM Neto, se autodeclararem negros. Por que isso acontece e qual o impacto dessa prática no geral, sobretudo em relação ao Fundo Eleitoral para negros?
J. S.: Embora a questão da mudança da declaração tenha sido mais evidenciada em 2022, desde 2020 vem ocorrendo. Não por acaso, estamos tratando de duas eleições que têm inaugurado a instituição de cota financeira para candidatos negros. Desde o pleito de 2020, o TSE determinou que a verba do fundo eleitoral seja distribuída pelos partidos de maneira proporcional à quantidade de candidatos negros e brancos, bem como o tempo de propaganda eleitoral gratuita na TV e no rádio.
É possível atribuirmos a mudança de autodeclaração de uma parcela significativa dos candidatos a uma prática de falsidade ideológica para o acesso a essa política afirmativa direcionada aos negros. Esse não é um fato inédito, é justamente por conta da falta de escrúpulos da branquitude que as bancas de verificação racial foram instituídas entre políticas de cotas raciais em universidades, concursos públicos e outros editais com ações afirmativas direcionadas aos negros.
No entanto, essa é uma hipótese, não conseguimos constatar ainda a relação entre a mudança da autodeclaração e o acesso a recursos direcionados a pessoas negras. É necessário a instituição por parte do TSE de mecanismos que possibilitem maior transparência pública quanto aos critérios de repasse de recursos dos fundos eleitorais.
Q.M.V.N.P: Quais são as implicações éticas e legais para falsas autodeclarações de candidatos brancos como negros? Como a sociedade e as instituições podem lidar com essa questão?
J. S.: Até então, não houve implicações legais para falsas autodeclarações de candidatos brancos como negros. A partir das exposições e denúncias impulsionadas em 2020 e amplificadas em 2022, o TSE instituiu algumas medidas expressas na Resolução n.º 23.729, de 27 de fevereiro de 2024, a serem cumpridas a partir das eleições de 2024.
No caso de mudança na autodeclaração racial para cor preta ou parda, a pessoa candidata e o partido, a federação ou a coligação serão intimados para confirmar a alteração da declaração racial. Se for admitido erro ou não houver manifestação, será mantida a autodeclaração do cadastro anterior e ficará vedado repassar à pessoa candidata recursos públicos reservados a candidaturas negras.
O Ministério Público Eleitoral será responsável pelo acompanhamento e adoção de providências relativas à fiscalização e à apuração de repasses de recursos públicos reservados para as candidaturas de pessoas negras. Já as associações, coletivos e movimentos da sociedade civil poderão requerer relação nominal de candidatas e candidatos que tenham apresentado mudança na declaração racial, para a finalidade específica de fiscalização dos repasses de recursos públicos a candidaturas negras. O partido político, a federação e a coligação poderão criar comissão de heteroidentificação para análise dos elementos fenotípicos de suas candidatas e de seus candidatos que pretendam declarar, no registro de candidatura, cor preta ou parda.
O movimento de mulheres negras têm se organizado a partir da articulação em rede para o enfrentamento dessa questão que é mais uma expressão da violência política de raça e gênero, enquanto corrobora com a sub -representatividade de pessoas negras nos espaços de tomada de decisão, como temos denunciado no Instituto Odara.
As organizações e a sociedade civil como um todo podem lidar com a questão fazendo controle social, denúncias e incidência política em defesa do combate à falsidade ideológica racial, com teor de fraude ou não.
Q.M.V.N.P: Como o fenômeno da autodeclaração racial afeta a confiança pública nas eleições e nas políticas de inclusão? O que pode ser feito para melhorar a transparência e a precisão na autodeclaração racial dos candidatos?
J. S.: Pelo menos na Bahia, temos feito a política do constrangimento, de modo que a narrativa da desconfiança tem recaído mais sobre as candidatas e candidatos do que sobre o sistema eleitoral e as políticas afirmativas.
As medidas adotadas pelo TSE a partir das eleições de 2024 podem até coibir a mudança, mas não versam absolutamente nada sobre os casos de discrepância nas declarações que são equivocadas desde cadastros anteriores de candidatura.
Precisamos alargar o debate e pensarmos, sim, na instituição de bancas de verificação racial sob responsabilidade da justiça eleitoral e não necessariamente dos partidos; bem como medidas de responsabilização dos partidos em relação ao processo de formação sobre política racial do Estado Brasileiro e combate ao crime de fraude por parte de seus correligionários. Cabe à justiça eleitoral investir em campanhas de comunicação sobre a autodeclaração racial e no estabelecimento de comissão especializada para tratamento e encaminhamento das questões, tendo em vista a instituição de medidas de prevenção, fiscalização, redução e punição à falsidade ideológica racial nas eleições.