Por Joyce Souza Lopes*
Na medida em que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) disponibilizou as informações declaradas por candidatas e candidatos às eleições de 2022, foi desencadeada uma série de discussões sobre a discrepância entre a autodeclaração racial (como cada pessoa se define), e a heteroatribuição de pertença (como outras pessoas reconhecem racialmente determinado sujeito). Na Bahia, a maior incidência do debate se deu em torno do caso de ACM Neto, advogado, empresário e candidato a governador filiado ao União Brasil, e Ana Coelho, candidata a vice-governadora da mesma chapa, empresária e publicitária, filiada ao Partido Republicanos.
A questão está mais evidenciada nas eleições deste ano, seja por conta das novas regras estabelecidas, em especial no que tange à proporcionalidade racial na distribuição do Fundo Partidário Eleitoral, seja pela amplitude de alcance das discussões em torno dos cargos disputados em uma eleição geral, que atinge escala estadual e nacional. No entanto, não é fato inédito. Ainda em 2020 o aumento de registros de candidaturas negras despertou o interesse de pesquisadores e profissionais da imprensa. Chamo atenção, em especial, para o número alarmante de mudança na declaração de raça/cor entre candidatos que concorreram em 2016 e novamente em 2020. Conforme os dados computados pelo TSE, 42 mil candidatos alteraram a auto identificação racial, de acordo com registros disponibilizados pela Justiça Eleitoral. Entre estes, 30% se declarou pardo em uma eleição e branco na seguinte e 36% mudou de cor branca para parda.
O movimento negro, sobretudo a partir das políticas raciais empreendidas e reivindicadas pelo Movimento Negro Unificado (MNU) desde a década de 1970, incidiu na defesa de configuração dos aspectos raciais do censo demográfico brasileiro, conforme a estratégia de fomentar a solidariedade e a identidade entre os marginalizados pelo racismo à brasileira: ao agregar pretos e pardos na mesma categoria racial negra; bem como, elevar a somatização racial do grupo negro, de modo que justifique especial atenção do poder público para promoção de políticas segundo os aspectos demográficos. Além de que, dada a complexidade da racialização no Brasil, devemos ter em mente que, sobretudo no período que antecedeu a instituição de cotas raciais nas universidades públicas, muitos sujeitos nem mesmo se declaravam negros por razões da carga semântica e social negativa imposta pelo racismo.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), oficialmente responsável pelos dados censitários no Brasil desde 1936, implementou a concepção de raça/cor nos levantamentos demográficos a partir do censo de 1991, desde então, o grupo racial negro é composto pelas cores preta e parda, uma vez que evidências estatísticas comprovam pouca diferença socioeconômica entre os mesmos – pretos e pardos se distanciam bastante dos brancos, mas esses dois grupos de cor da raça negra diferem pouco entre indicadores globais de desenvolvimento humano. Atualmente, todos os serviços públicos devem corresponder a este padrão metodológico de intervenção e/ou de geração de dados.
O TSE passou a registrar a autodeclaração de raça e cor dos candidatos tão somente a partir de 2014. No decorrer das cinco eleições temos visto se desdobrar um campo de análise interessante sobre a incidência do racismo, em que pese os marcos de instituição de políticas afirmativas de cunho racial no processo político-eleitoral, que em certa medida não se difere dos acontecimentos frente a instituição de cotas raciais nas universidades, concursos públicos e editais de fomento. No campo discursivo entre agentes políticos negros, recorrentemente tensiona-se as declarações discrepantes, sob o critério de denúncia de sujeitos fenotipicamente brancos que têm se declarado tendo em vista o acesso a políticas de ações afirmativas e reparatórias destinadas aos negros.
O Brasil tem acompanhado o caso de ACM Neto na Bahia como a expressão máxima desse fenômeno na política eleitoral, já que se trata de uma candidato filiado a um partido de direita, ex-prefeito da capital do estado, originário da aristocracia política baiana, herdeiro do maior legado do coronelismo na região, um dos 50 candidatos a governador mais ricos do Brasil, com partimônio declarado de R$ 41,7 milhões. O debate mais expressivo publicamente tem acirrado a discrepância entre a autoatribuição racial e a heteroatribuição de pertença de ACM Neto. No entanto, não podemos constatar mudanças em sua autodeclaração. Em todas as suas candidaturas a cargo público após instituição da classificação de raça/cor por parte do TSE, o mesmo tem se afirmado pardo, conforme o portal de divulgação de candidaturas e contas eleitorais do TSE. Daí, devemos nos perguntar qual a razão de não se declarar branco mesmo quando não havia instituição de proporcionalidade racial na distribuição de recursos do fundo partidário.
ACM Neto, antes de se interessar por recursos destinados a negros, reivindica seu pertencimento frente ao mito da baianidade nagô. Ele não quer ser reconhecido como branco, assim como muitos dos brancos que entrevistei durante a realização de pesquisa de mestrado em Antropologia sobre a construção da identidade branca e as representações sociais acerca da branquitude em Salvador-BA. Outros pesquisadores dos estudos críticos sobre a branquitude também já produziram um aprofundamento reflexivo sobre as controvérsias entre invisibilidade e autoinvisibilidade da identidade racial branca, que revelam os meios para tentativa de manutenção do privilégio de racializar o outro, porém não a si mesmo. Como não se tem mais saída, já que o movimento negro provincializou a branquitude, explicitou sua racialidade também nos termos sociais, alguns ainda resistem mais sorrateiramente a partir do subterfúgio da categoria pardo ou do recurso discursivo da miscigenação, do avô negro, do “pé na senzala”, da mistura baiana.
Visto que expressivamente os brancos sabem que são brancos no exercício de sua branquitude, a suposta dificuldade circula mesmo na auto afirmação pública, no reconhecimento “para fora”, seja, de modo geral, por medo de perder seu status humano genérico ao se categorizar racialmente, mesmo que disto não resulte a destruição das assimetrias estruturadas. Ou, por outro lado, pela obrigatoriedade consequente de assumir que fazem parte de um grupo empoderado, privilegiado, opressor e racista, o que tem ainda maior peso em um contexto de maioria negra e de expressiva resistência político-cultural da negritude como o contexto baiano.
A estratégica negação discursiva de sua branquitude é evidenciada quando ACM Neto se apresenta visivelmente submetido a técnicas de bronzeamento artificial em entrevista ao programa Bahia Meio Dia. O apresentador Vanderson Nascimento afirma ao candidato que “apesar de se declarar como pardo, não é lido socialmente como uma pessoa negra, uma pessoa parda”. Neto responde com irritabilidade: “Quem é que faz a minha leitura social como branco? Porque eu me considero pardo. Você pode me colocar ao lado de uma pessoa branca e há uma diferença bem grande. Negro, não. Não diria isso, jamais!”. Vanderson explica sobre a configuração racial do IBGE, ao que o candidato rebate: “Então o erro é do IBGE, não é meu […] Eu estou muito à vontade. Eu me considero (pardo). O povo baiano é muito misturado…”.
É extremamente preocupante que um candidato à gestão pública não só desconheça, como diminua grosseiramente a validade dos critérios de classificação racial de um órgão público como o IBGE, ainda mais em um período de grandes embates acerca da defesa do levantamento demográfico da população brasileira, incluindo a configuração de raça/cor. O censo de 2022 foi uma das ações estatais extremamente impactadas pela onda de negacionismo e enfrentamento à produção científica protagonizada pelo atual governo federal. Posicionamentos como o de ACM Neto põem em xeque um dos principais instrumentos para fundamentação e construção de políticas públicas, bem como para geração de dados a partir de suas implementações. Em que pese as afirmativas e de reparação racial, a partir dos dados demográficos avançamos no diálogo com o Estado Brasileiro em defesa do enfrentamento ao racismo, negar ou precarizar seu levantamento é mais um retrocesso racista.
O saldo da exposição é a efervescência do debate. Os meios de comunicação, sob pressão negra, têm imprimido na agenda de disputa de narrativa baiana a política de racialização, o que tende a favorecer reflexões e debates na sociedade de modo geral a respeito da classificação racial e incidência do racismo. O assunto foi um dos mais comentados no Twitter após a referida entrevista.
Após o requerimento da Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) por parte de Jorge X, candidato a deputado federal (PSOL-BA), a Corregedoria-Geral Eleitoral acatou e determinou que ACM Neto e Ana Coelho se pronunciassem frente à alegação de falsa autodeclaração racial para usufruto de recursos destinados aos negros. A defesa da candidata a vice-governadora informou haver equívoco de sua agremiação partidária ao preencher os dados no sistema de cadastro, em seguida alterou sua afirmação de raça/cor para branca. Advogados de Neto argumentaram sobre ausência de provas que indiquem fraude e abuso de poder com intuito de usufruto de verbas destinadas às candidaturas negras.
Além da movimentação midiática, abre-se um precedente jurídico que tende a tensionar o TSE a estabelecer parâmetros para combate a falsidade ideológica racial, conforme definição de critérios para a autodeclaração, como já se tem discutido e executado em muitos processos seletivos com reservas de vagas para negros e indígenas, bem como se apressa a configuração de medidas de fiscalização e penalidade uma vez que fraude racial é crime. De acordo com pesquisa realizada pela agência JOTA, veículo de inteligência política e jurídica que oferece serviços de previsibilidade e transparência pública, aproximadamente 30% de deputados estaduais e federais que concorrem a reeleição em 2022 mudaram suas autodeclarações de brancos para pardos, logo negros. Estamos tratando de 68 entre 241 parlamentares eleitos, com experiência de mandato e gestão pública, o que significa que um em cada quatro parlamentares tem acessado a política de reparação racial dos fundos partidários de modo fraudulento.
O volume de casos de fraudes explicita a máxima do racismo brasileiro e se configura uma violência contra toda população negra no processo de mínimo avanço das políticas de promoção da equidade racial nos espaços de poder e tomada de decisão. Na Bahia, as repercussões contrárias a autoatribuição de pertença de ACM Neto têm se configurado como estopim para visibilidade de fraudes raciais de candidatos do campo partidário da esquerda, como a situação da deputada federal Alice Portugal (PCdoB), farmacêutica bioquímica e política brasileira com seu primeiro mandato como deputada estadual em 1995, que se declarou branca à Justiça Eleitoral em 2018 e parda em 2022; ou do deputado estadual Rosemberg Pinto (PT), sociólogo e líder do governo (PT) na Assembleia Legislativa da Bahia, atualmente no seu terceiro mandato, que se declarou branco em 2018 e preto em 2022. Não só a mudança da declaração, como a discrepância entre autoatribuição e heteroatribuição de pertença de Rosemberg revela ainda desrespeito, afronta, deboche e certeza de impunidade, comportamentos padrões de uma branquitude acrítica, patriarcal e historicamente supremacista.
De modo contrário, os deputados federais Afonso Bandeira Florence (PT), professor de história da Universidade Católica do Salvador e Jorge Solla (PT), médico sanitarista, ex-secretário de saúde do estado da Bahia, se afirmaram pardos na candidatura de 2018, mas em 2022 se registraram brancos. Estes casos, tanto quanto os 30% de candidatos que se declararam pardos em 2016 e brancos em 2020, ilustram que é cabível mudança na autodeclaração racial, reconhecendo inclusive que o processo de letramento racial não é linear e coeso, que não há generalização no entendimento ou concordância sobre o modo oficial de classificação racial, embora seja elementar para o funcionalismo público que representações políticas tenham isto sob domínio. No entanto, quanto mais gritante a discrepância entre auto atribuição e heteroatribuição de pertença, mais nítido o caráter racista de cada declaração que foi alterada.
Na medida em que possamos levantar os dados gerais comparativos e conclusivos entre as eleições desde 2014, correlacionando as mudanças nas declarações e os recursos recebidos a partir das políticas orçamentárias por cada candidato declarado negro, teremos um quadro explícito da configuração das fraudes da branquitude nesse campo. É imprescindível toda movimentação em defesa da transparência pública; exigência de veiculação de dados detalhados e explícitos, como por exemplo sobre os critérios e valores estabelecidos por cada partido na divisão dos recursos públicos e descrição da sigla orçamentária dos valores recebidos por cada candidato no Portal de Divulgação de Candidaturas e Contas Eleitorais, constando o valor referente a proporcionalidade de raça, gênero e/ou sexualidade. A transparência pública é o principal mecanismo para realização do controle social e fundamentação dos tensionamentos frente ao TSE.
O número expressivo de mudanças na autodeclaração racial e a constatação de falsidade ideológica justificam exigências de medidas para coibir fraudes no acesso às políticas afirmativas na corrida eleitoral, como, por exemplo, a instituição de bancas de verificação racial, um instrumento pensado como estratégia cabível já comum entre as seleções públicas com definição de cotas raciais pelos mesmos motivos aqui expressos; bem como medidas de responsabilização dos partidos em relação ao combate ao crime de fraude por parte de seus correlegionários. Cabe à justiça eleitoral estabelecer comissão especializada para tratamento e encaminhamento das questões tendo em vista a instituição de medidas de prevenção, fiscalização, redução e punição à falsidade ideológica racial nas eleições.
***Este artigo faz parte da Série de Narrativas: Maiorias Silenciadas no Poder! Uma realização da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, em parceria com a Revista Afirmativa, por meio da Campanha Quero Me Ver No Poder, com Coordenação Editorial e Curadoria de Alane Reis.***
* Mulher negra, mãe, camaçariense, candomblecista, assistente social, mestra e doutoranda em Antropologia. Coordenadora dos projetos de enfrentamento à Violência Política e Violência de Gênero contra mulheres negras do Odara – Instituto da Mulher Negra. Co-fundadora do Instituto Carolina Maria de Jesus. Pesquisadora dos estudos críticos sobre branquitude e classificação racial parda.