Manifestos Públicos em Tempos de Covid

O texto “Manifestos Públicos em Tempos de Covid” foi elaborado por duas pesquisadoras do Nepac – Núcleo de Pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva, da Unicamp, https://www.nepac.ifch.unicamp.br, um núcleo de pesquisa que tem se dedicado a compreender as diferentes formas pelas quais as pessoas se engajam coletivamente na política defendendo causas, com o objetivo de provocar ou se opor a mudanças, e os impactos desses processos na trajetória de construção da democracia brasileira, seus avanços e retrocessos. 

Desde o início da pandemia, a imprensa tem destacado as inúmeras ações de solidariedade material da sociedade civil, mas pouca atenção tem sido dada sobre as ações de incidência política. A sociedade civil, em sua diversidade, buscou fazer Política (com P maiúsculo) durante todo este tempo. Ou seja, buscou incidir nas formas pelas quais os poderes públicos procuravam lidar com as crises entrelaçadas que atravessamos durante a pandemia, as crises sanitária, econômica, social, ambiental e política.

Não é fácil perceber como tem se dado esta ação política. Muita gente chega a dizer que as esquerdas andam sem propostas e perdidas. Para tornar visível e compreensível parte deste trabalho da sociedade civil, foram coletados, entre os meses de abril e agosto de 2020, 72 cartas e manifestos produzidos pela sociedade civil em meio à covid-19.

Para as pesquisadoras, Manifesto Público é todo documento construído coletivamente e assinado, que expressa e publiciza o posicionamento oficial de um conjunto de sujeitos face a determinado tema ou questão. Esses documentos podem ser de denúncia e/ou de proposição sobre a temática abordada. Em geral são assinados por organizações, mas, mesmo quando assinados por indivíduos, são fruto de uma ação coletiva destes indivíduos. Assim sendo, foram coletados notas, informes, cartas de repúdio, documentos, que, em poucas linhas, expressavam o desacordo com os rumos das políticas de enfrentamento da doença e das suas consequências sociais e econômicas e, em muitos casos, também sugeriam alternativas.

Este trabalho chegou a 3 resultados:

1. O primeiro é que há pelo menos seis pautas principais apontados pela sociedade civil, que funcionam como “guarda-chuvas” para um conjunto maior de propostas e agendas no enfrentamento à covid: 1. a desigualdade e a necessidade de um olhar atento para os mais vulneráveis; 2. segurança alimentar e nutricional e agricultura familiar; 3. saúde e saneamento; 4. meio ambiente; 5. economia, trabalho e renda; e 6. crise do sistema político e da democracia. Vários documentos mencionam mais de uma pauta. E chama a atenção como as organizações criam pontes, fazem diálogos, entre as demandas atuais da pandemia e suas agendas de lutas anteriores.  Ou seja, os documentos ancoram-se em anos de acúmulo para propor ações e medidas para a pandemia. 

2. O segundo resultado é que metade dos manifestos públicos mencionam políticas públicas específicas, ou seja, as pessoas e instituições que elaboram esses documentos compreendem que somente ações de solidariedade não bastam para frear a disseminação da covid-19. É preciso que o Estado cumpra sua parte. Destacam-se, em primeiro lugar, propostas que dialogam com os princípios sanitaristas que inspiraram a construção do Sistema Único de Saúde (SUS). Não à toa, a reivindicação mais citada nos manifestos públicos diz respeito à necessidade de recompor o orçamento do SUS e de seguir lutando pela ampliação do acesso público e universal aos serviços de saúde. A segunda demanda mais citada também chama a atenção. Vários manifestos recomendam a criação de comitês nacional e estaduais de gestão da crise com a participação da sociedade civil e de observatórios para acompanhar as ações realizadas nos territórios.

Depois da área de saúde, dentre as propostas de políticas públicas defendidas como possíveis saídas da crise, as mais consensuais são a Renda Básica Emergencial e a retomada do Programa de Aquisição de Alimento (PAA). 

Além de apontarem projetos de lei e políticas públicas que consideram positivos para enfrentar a crise, os documentos também mencionam iniciativas que consideram prejudicais ao enfrentamento da pandemia.

A mais destacada medida prejudicial e precisa ser revogada é a Emenda Constitucional 95, que limita o teto de gastos sociais do governo federal. 

3. O terceiro resultado encontrado é que alguns manifestos fazem referências à necessidade de mudanças de visões de mundo.  O foco central dos documentos não está em pensar no pós-pandemia, mas é possível fazer uma leitura das alternativas que estão presentes, de alguma forma, nos textos. Cinco tópicos chamam mais a atenção: a importância do papel do Estado e a crítica ao neoliberalismo; o questionamento do capitalismo e seu modelo predatório; a crise política e defesa da democracia; a desigualdade de raça, classe e gênero; e a centralidade da solidariedade para pensar o futuro.

Sobre a solidariedade, há ao menos três sentidos de solidariedade evocados pelos manifestos. Um primeiro sentido é a sensibilização e estímulo da sociedade para apoiar ações emergenciais, como distribuição de alimentos e kits de higiene. Um segundo sentido remete à ideia de acolher e “honrar o luto e a memória das famílias que vivem a perda de entes queridos”. Por fim, alguns manifestos mobilizam um terceiro sentido de solidariedade ao reivindicá-la como uma forma de se contrapor ao individualismo propagado pelo neoliberalismo. É como se reivindicassem a união, o fortalecimento da coletividade como base para a construção de um projeto de futuro alternativo, no qual o bem-estar coletivo, e não o individual, deve ser o centro.

Não foi foco central deste texto, mas é importante ressaltar que os laços e alianças entre sujeitos estão lá – nas assinaturas de uns aos documentos de outros, em documentos com temas próximos que “dialogam” potencialmente entre si – e que podem ser argamassa para alianças futuras.

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