Os enfrentamentos das candidaturas negras nas eleições 2020

Confira o artigo escrito por Nailah Neves Veleci* e publicado no Estado de S. Paulo para a campanha #QueroMeVerNoPoder

O cenário político das eleições de 2020 conta com um governo conservador, fundamentalista religioso e anticientífico que desarticula políticas públicas conquistadas pelos movimentos sociais; uma pandemia global que escancarou mais uma vez as desigualdades sociais, principalmente as raciais; com o fim das coligações partidárias para vereadores e deputados e com a decisão do Tribunal Superior Eleitoral, provocada pelo questionamento da deputada federal Benedita da Silva (PT/RJ) e pressionado pelos movimentos negros, pela divisão proporcional do financiamento e da propaganda eleitoral para candidaturas negras.  

Pesquisas como de Ollie A. Johnson III, “Representação racial e política no Brasil: parlamentares negros no Congresso Nacional (1983-99)”, e de Carlos Machado e Luiz Augusto Campos, “O que afasta pretos e pardos da representação política? Uma análise a partir das eleições legislativas de 2014”, apontam que candidaturas negras nunca faltaram: o problema está em convertê-las em eleitos. É na conversão que temos o peso do apoio partidário e da distribuição do financiamento. 

A trajetória política negra no Brasil é constantemente apagada, tanto nos partidos políticos como na ciência política tradicional, cabendo aos movimentos negros e intelectuais negros ecoarem a situação que candidaturas negras enfrentam nas eleições.

O ethos público do Brasil é colonial, a nossa esfera pública foi formada de maneira interdependente da esfera privada do senhor colonial, que era patriarcal e racista. Se não fosse a ocupação dos movimentos negros nos partidos políticos em 1980 (e toda sua articulação nacional e internacional até 2000 para inserir na agenda pública o racismo como um problema), até hoje estaríamos acreditando no mito da democracia racial e naturalizando que 56% da população tem os piores índices de vulnerabilidade social por causa de mérito e continuaríamos fazendo políticas caras e extremamente ineficientes. 

“Não é possível que a esquerda não aprendeu nada com o movimento negro” disse Selma Dealdina, representante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) durante o I Encontro de Candidaturas Negras do Enegrecer a Política. Se tem algo que o movimento negro sabe fazer é resistir e driblar, mesmo que de forma limitada, um Estado que espalha fake news nacional e internacionalmente (mito da democracia racial), que é anticientífico (epistemicídio negro), que nega direitos básicos (voto censitário e criminalização do curandeirismo, espiritismo, do samba), que criminaliza grupos por não serem do mesmo perfil do grupo do Estado (criminalização da vadiagem e capoeiragem) e que tem a hegemonia dos poderes decisórios (sub-representação negra). 

Não é possível que a elite política branca repita a mesma retórica de 1990 sobre o identitarismo. Falar de pautas de minorias como pautas identitárias que não representam os valores nacionais é apenas uma retórica da esquerda e da direita para barrar a ascensão de representação negra e desses grupos minoritários. Afinal, os governos do Brasil têm sido hegemonicamente de pautas identitárias da branquitude. 

Os movimentos negros não esperam nada da direita, pois esta nega a existência do racismo estrutural até hoje. Mas da esquerda, sim. Como nos diz a socióloga e política Vilma Reis, “quem empurra a esquerda para esquerda são mulheres negras”. A pauta antirracista não divide a esquerda, empurra a esquerda para a esquerda. Ela empurra esse país para o progresso de todos e não de um grupo privilegiado; ela defende os direitos humanos e o acesso a direitos básicos para todes.

Mas a retórica do identitarismo negro persiste, e ela é retomada em toda eleição porque, para a elite política do Brasil, da direita ou da esquerda, o que importa é que são pautas que não são da branquitude. A elite política segue a lógica de recrutamento que permite manter seu status quo do poder. Eles estabelecem os critérios de ascensão política conforme possam homogeneizar as pautas. Mas o caso brasileiro tem um fator a mais: os Pactos Narcísicos da Branquitude. A elite política é branca e recruta seguindo uma lógica da branquitude. 

Foi preciso uma judicialização da desigualdade racial dos partidos políticos – provocado por uma mulher preta – para se garantir a divisão racial proporcional de financiamento. Mesmo assim, devido à falta de regulamentação dessa divisão, criam-se novas estratégias de manutenção da desigualdade racial nos partidos. Monica Oliveira, representante da Coalizão Negra por Direitos no Encontro de Candidaturas Negras, explica que o que está acontecendo nessas eleições de 2020 é que a divisão do financiamento dos partidos está reproduzindo a clássica pirâmide social (homens brancos no topo e mulheres negras na base). Isso porque os partidos estão aplicando, primeiro, a faixa de prioridade, e depois a divisão proporcional racial, para determinar a divisão dos recursos. Na faixa de prioridade temos os candidatos à reeleição e os que têm mais chance de serem eleitos. Se temos uma cultura política de sub-representação negra, em especial de mulheres negras, quantas negras você acha que estão nessa faixa de reeleição? Se vivemos numa sociedade estruturada pelo racismo e machismo onde diariamente as grandes mídias reforçam estereótipos racistas (enquanto apresentam pessoas brancas como heróis, intelectuais, éticos etc.), quem você acha que aparecerá com mais chance de ser eleito? Como se faz renovação política assim?

Está na hora de o povo negro se enxergar como maioria, não como recorte, e exigir representação política de fato; afinal, numa democracia, o poder emana do povo. Então vamos eleger e reeleger cada vez mais candidaturas negras que são antirracistas, candidaturas negras com trajetórias em movimentos negros e indicadas por estes. 

Mas quais são essas candidaturas? Os movimentos negros e ativistas criaram a plataforma #VotoAntirracista, que reúne candidaturas negras de todo o país e apresenta a trajetória das candidaturas de pessoas negras vinculadas com a agenda e com os movimentos negros, um resumo das propostas, links para as redes sociais e financiamento coletivo de cada candidatura. Quatro documentos sintetizam as propostas dos movimentos negros: o Manifesto ‘Enquanto houver racismo não haverá Democracia’, a Carta de Princípios e Agendas da Coalizão Negra Por Direitos, a Agenda Marielle Franco e o Programa da Convergência Negra.

É fundamental também os cidadãos e à sociedade civil e organizada, pressionar por reformas eleitorais e políticas que combatam as desigualdades raciais dos sistemas, a exemplo da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político que defende a realização do voto em listas pré-ordenadas, organizadas de forma que garanta a alternância étnico-racial e de gênero – incluindo assim grupos sub-representados. 

Não podemos esquecer jamais que com Racismo não há Democracia.

*Nailah Neves Veleci, mestra em Direitos Humanos e Cidadania (UnB), especialista em Gestão Pública (UEG) e bacharel em Ciência Política (UnB).  Pesquisadora do Maré – Núcleo de Estudos em Cultura Jurídica e Atlântico Negro e co-fundadora da Ubuntu – Frente Negra de Ciência Política. Ativista negra e pesquisadora sobre Política, Direito e Relações Raciais.

Link do artigo originalmente publicado no Estado de S. Paulo: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/os-enfrentamentos-das-candidaturas-negras-nas-eleicoes-2020/

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