Plataforma lança estudo sobre Pacote Moro

 

Na mesma semana em que o assassinato de Ágatha Félix, de oito anos, cometido por policiais do Rio de Janeiro, comoveu e indignou a população brasileira, a Câmara dos Deputados discutiu o chamado Pacote Moro, especialmente o trecho que trata do “excludente de ilicitude”.

As propostas mais polêmicas das reuniões do grupo de trabalho que analisa a matéria buscavam alterar o artigo 23 do Código Penal, que aborda as causas de exclusão de ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa e estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito), e o artigo 25, sobre legítima defesa.

A alteração do artigo 23 – rejeitada nesta quarta (25) por nove dos 14 deputados do grupo que analisa a matéria e comemorada pelas organizações do movimento negro e de direitos humanos – passaria a reduzir a pena ou isentar de pena policiais que cometam excesso por “medo, surpresa ou violenta emoção”.

Os deputados do grupo de trabalho também retiraram do pacote o trecho que alterava o artigo 25 do Código Penal. A proposta de Moro possibilitava agentes que “prevenissem” agressão a seu direito ou de outra pessoa em conflito armado. O texto foi suprimido e em seu lugar foi aprovado trecho que considera legítima defesa quando o agente “repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes”.

O relatório final do grupo de trabalho irá agora ao plenário da Câmara e depois ao Senado. Se houver mudanças, volta para a Câmara para uma votação final.

Para contribuir com o debate, a Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político formulou o documento “Pacote Anticrime: Intransigência, violações de direitos e o incentivo a impunidade, feminicídios, encarceramento em massa e o genocídio da juventude negra e periférica”.

A análise, produzida pelas pesquisadoras Giselle dos Anjos Santos, do FOPIR e CEERT, e Élida Lauris, da JusDH (ambas organizações integrantes da Plataforma), apresenta o teor das propostas do Pacote Moro, as possíveis implicações de sua aprovação (como o crescimento das violações de direitos, feminicídios, encarceramento em massa e do genocídio da juventude negra e periférica), contrapõe o projeto com as recomendações da CPI para o enfrentamento do genocídio (técnicas e legislativas) e estabelece correlações entre o projeto e o debate sobre a reforma política, como a falta de debate sobre o tema com a população.

“A defesa da democracia pela Plataforma tem em conta o monitoramento e a necessidade de participação popular nos assuntos públicos relativos a todos os poderes de Estado e instâncias do governo, incluindo o poder judiciário e os órgãos do sistema de justiça”, aponta o documento, que defende ainda que o combate ao crime organizado e à segurança pública deve ser assegurado através de processos que impliquem mudanças nas leis e instituições, “e não na reprodução dos mecanismos de exclusão, punição e encarceramento que têm como alvo a maioria pobre, periférica e negra da população brasileira”.

Confira o artigo completo:

 

 

PACOTE ANTICRIME: Intransigência, violações de direitos e o incentivo a impunidade, feminicídios, encarceramento em massa e o genocídio da juventude negra e periférica.[1]

Teor das Propostas

O projeto de lei anticrime propõe alterar quatorze leis, desde o Código Penal (CP), Código de Processo Penal (CPP), Lei de Execução Penal, até leis relativas à organizações criminosas, Estatuto do Desarmamento, Improbidade Administrativa, Código Eleitoral, entre outras. Pretende-se alterar, dentre outros, os seguintes tópicos: cabimento da prisão após condenação em segunda instância; alteração do regime de excludentes de ilicitude e de legítima defesa, visando contemplar atividades policiais e ações decorrentes de escusável medo, surpresa ou violenta emoção; endurecimento no cumprimento de algumas penas; alteração do conceito de organização criminosa; mudança na tipificação e penalidade do crime de resistência; introdução do plea bargain (acordo de não persecução criminal para crimes não violentos com penas de menos de quatro anos); flexibilização das regras para interrogatório por videoconferência; introdução da categoria “informante do bem” ou whisteblower.

Possíveis implicações com a aprovação do Pacote Anticrime: crescimento das violações de direitos, feminicídios, encarceramento em massa e do genocídio da juventude negra e periférica

O Sistema de Justiça, tal como está constituído hoje, reflete as desigualdades e os estereótipos construídos historicamente na sociedade brasileira. O passado do Brasil está forjado pelas marcas da exclusão, já que está fundamentado na experiência da escravidão que perdurou por 354 anos, além dos 131 anos de abolição, que é muitas vezes denominada como uma “abolição inacabada”[2] – pois, apesar de a população negra representar a maioria numérica no país, 54% de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existe uma explícita sub-representação deste grupo nos espaços de poder e de decisão política[3]. Contudo, a população negra conforma o contingente majoritário quando se trata de índices de vulnerabilidade social (BENTO, SILVA, SILVA JR, 2010). Tais desigualdades estão nitidamente refletidas nos indicadores sobre segurança pública.

O Pacote Anticrime, que propõe alterações em 14 leis e poderá trazer consequências nocivas para toda a sociedade brasileira ao agravar as desigualdades já existentes, ao “normalizar” a expressão da violência, pode recair de forma ainda mais nefasta contra os grupos mais vulneráveis, especialmente a população negra e periférica. Por este motivo, foram emitidas duras críticas contra o pacote, de diferentes agentes e entidades, como especialistas em Segurança Pública e Direito[4]; 11 ex-ministros da justiça (ligados a distintos partidos, que atuaram durante os governos de FHC, Lula, Dilma e Temer); a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), além de inúmeras organizações da sociedade civil[5]. Dentre as últimas, se destacam as entidades dos movimentos negros, que chegaram a denunciar o Projeto internacionalmente, na reunião da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que ocorreu em Kingston, na Jamaica.

A OAB, por exemplo, publicou um relatório analisando os diferentes pontos do Pacote, apontando ressalvas com relação a nove itens, assim como a sua expressa oposição a dez propostas, que são: execução antecipada da pena; execução antecipada das decisões do Tribunal do Júri; modificação dos embargos infringentes; mudanças no instituto da legítima defesa; alterações no regime da prescrição; mudanças no regime de pena; mudanças ao crime de resistência; criação do confisco alargado; acordo penal; e interceptação de advogados em parlatório (OAB, 2019, p. 2). Ou seja, o nível de reprovação das propostas é altíssimo.

Um dos pontos mais polêmicos do Pacote diz respeito ao item quatro, sobre as medidas relacionadas à legítima defesa, onde são sugeridas três alterações[6]. A primeira propõe o chamado “excludente de ilicitude”, onde “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção.” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2019, p. 8).

Mas qual o real significado desta proposta? Tanto especialistas como organizações da sociedade civil manifestaram críticas com relação a esse ponto, que além de evidenciar a banalização da vida e favorecer a impunidade, pode afetar diretamente a vida das mulheres. Uma vez que a maioria dos casos de feminicídio são promovidos por parceiros e ex-parceiros no ambiente doméstico[7], que poderão alegar que a ação foi motivada por “violenta emoção”.

A própria Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) se colocou contra as propostas de mudança nos artigos relacionados a medidas sobre a legítima defesa, expressando preocupação, pois: “Depois de flexibilizar a legislação sobre o desarmamento e, consequentemente, em certa medida, armar a população, propor a exculpação do excesso de legítima defesa praticado por medo, é algo preocupante. Crítica especial fazemos quanto à expressão “violenta emoção”. Ora, da forma como redigida a norma, essa exculpação seria bastante utilizada nos frequentes casos de feminicídio.” (AJUFE, 2019, p. 8).

Não podemos esquecer que de acordo com os dados, o Brasil representa a 5ª nação que mais mata mulheres no mundo. Ademais, alguns subgrupos de mulheres vivenciam uma vulnerabilidade ainda mais latente frente à expressão da violência. O Atlas de Violência 2018 aponta que a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres não negras. Durante o período de uma década, entre 2003 e 2013, houve uma queda de 9,8% no total de feminicídios de mulheres brancas e o crescimento de 54,2% nos casos de feminicídio de mulheres negras (FLACSO, 2015). Ou seja, estamos vivendo um cenário alarmante, onde o fenômeno da violência de gênero é significativamente impactado pelo racismo e vice-versa.

Mas com as recentes propostas – flexibilização do acesso as armas de fogo[8] e a redução ou não aplicação de pena sob alegação de “surpresa ou violenta emoção” – este quadro extremamente preocupante pode se agravar ainda mais. Desta forma, no contexto atual, a vida das mulheres, as negras especialmente, se encontra mais ameaçada do que nunca. Segundo a especialista Jaqueline Sinhoretto:

É lamentável que nos dias de hoje ainda se tenha coragem de propor que a emoção seja uma autorização para a violência. A legítima defesa é legítima quando se trata de evitar o perigo concreto contra a sua vida. Mata-se para não morrer. Matar movido por raiva, ciúme, humilhação, sentimento de posse são comportamentos a serem desestimulados – e jamais encorajados – pelo Estado (…). O projeto do Ministro Moro infelizmente ressoa à doutrina da legítima defesa da honra que absolveu assassinos de mulheres ao longo dos anos e ainda hoje é aceito por tribunais no país. Mas é uma concepção inaceitável por legitimar a ideia de que a vida das mulheres só é digna se servir à honra de um homem. (MILENA, 2019)

E além de tal medida atingir diretamente as mulheres, ela também pode afetar profundamente os índices da letalidade policial, especialmente contra a população negra, pois a lei vigente atualmente define legítima defesa quando o policial, “usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Esta proposta prevê a alteração para considerar legítima defesa quando o agente policial com o eminente risco de conflito armado, “previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem” (MINISTÉRIO DE JUSTIÇA, 2019, p. 8). Além disso, os policiais também podem alegar medo ou “violenta emoção” para justificar o uso desmedido da força bélica. Assim, essa proposta não demonstra só leniência com a violência institucional, como nitidamente a estimula e legitima.

Não podemos esquecer que a Polícia no Brasil é a que mais mata em todo o mundo. O braço armado do Estado matou aqui em cinco anos mais do que a polícia norte americana em 30 anos de trabalho[9]. Os excessos são constantes: a Polícia brasileira recebe a média de quatro denúncias por dia por abuso de violência no Ministério Público (LOURENÇA, 2019). Em contrapartida, o índice de assassinato dos policiais brasileiros também é altíssimo, eles estão entre os que mais morrem[10]. Para aproximadamente cada quatro cidadãos mortos pela polícia em 2013, um policial foi assassinado (PUFF; KAWAGUTI, 2014). É como se o Brasil estivesse vivendo uma guerra não declarada. Porém, a aprovação do Pacote Moro poderá resultar no crescimento vertiginoso da letalidade policial. Para o advogado Alberto Zacharias Toron essa mudança “vai aumentar as ações policiais com morte. É um cheque em branco para ações letais sem paralelo no Estado brasileiro.” (OAB, 2019, p. 18).

Tal proposta que impõe o excludente de ilicitude, visando a ampliação da impunidade, está em concordância com o que o presidente Bolsonaro afirmou no início da campanha eleitoral: “Se alguém disser que quero dar carta branca para policial militar matar, eu respondo: quero sim” (FRANCO, 2019). Lembrando que o nosso já é um dos países que mais mata, o professor Paulo Sérgio Pinheiro, ex-secretário de Direitos Humanos do governo FHC, ressalta a intransigência presente nesta concepção, pois: “Facilitar as execuções extrajudiciais não vai melhorar em nada a segurança pública. Se isso funcionasse, o Brasil seria o país mais pacífico do mundo” (FRANCO, 2019). Ou seja, a política punitivista e coercitiva do Estado não reduz a violência, só ocorre o contrário.

Caso seja aprovada, essa proposta irá representar a institucionalização da prática dos autos de resistência[11] e terá consequências nefastas contra a juventude negra e periférica. Afinal, as mortes violentas no Brasil são seletivas e os jovens negros são os principais acometidos por este fenômeno. Segundo o Relatório Final da CPI sobre o Assassinato de Jovens produzido pelo Senado, um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos no país, o que representa 63 mortos por dia e 23.100 por ano (SENADO, 2016). Esses índices estarrecedores demonstram a discrepância entre a violência que atinge os indivíduos dos diferentes grupos raciais[12] na sociedade brasileira; é como se indicassem que com relação à violência letal, negros e não negros vivessem em países completamente distintos.” (FBSP, IPEA, 2018, p. 40).

Os dados apontam para algo que se demonstra inquestionável, a existência de um processo de genocídio em curso contra a população negra no Brasil. Isto é, o extermínio deliberado contra uma determinada comunidade, no caso a juventude negra, é uma realidade concreta (TEIXEIRA, 2016). Fazer parte desse grupo significa estar em risco iminente. Por exemplo, aos 21 anos de idade, um jovem negro possui 147% mais chances de morrer por homicídio do que um jovem branco com a mesma idade (IPEA, 2016).

Desta forma, o Pacote Anticrime pode resultar no incremento das violações de direitos e no acirramento da desigualdade racial no Brasil, ao determinar que vidas negras não importam. Episódios de chacinas e execuções sumárias de jovens negros podem se tornar ainda mais comuns:

Moro quer garantir mais liberdade para os policiais que atiraram e, após atirar, algemaram Kauan Peixoto, de 12 anos na baixada fluminense ou para os policiais que atiraram em Marcos Vinicius de 14 anos na Maré, que usava seu uniforme ao ir para escola. O Ministro quer mais liberdade para os policiais que dispararam 111 tiros contra um carro com cinco adolescentes que saíram para comemorar o primeiro salário do amigo. Os policiais atiraram, sem que existisse nenhum conflito, 111 vezes. Esses casos, que não são raros no Brasil, é que se enquadrarão na “legítima defesa” dos policiais que poderão atirar para matar se você colocar a mão no bolso ou se estiver portando um guarda-chuva. (LOURENÇA, 2019).

Assim, com a aprovação desta proposta, poderemos passar a ver casos de abuso de poder policial como esses, todos os dias. E desta forma, toda a sociedade brasileira corre um risco eminente, especialmente, a juventude negra e periférica.

Outro ponto do Pacote muito criticado pelos especialistas e organizações da sociedade civil é o “plea bargain”. Inspirado no sistema legal estadunidense, essa proposta se constitui como uma espécie de acordo penal, onde em troca da confissão do réu é oferecida uma pena mais branda do que a que ele poderia pegar caso fosse a julgamento. Assim, o acusado não precisaria nem mesmo se submeter ao processo. Esta alteração foi defendida sob alegações de que possibilitaria a economia de recursos ao “desafogar o judiciário”, com mais agilidade da justiça; redução do tempo médio das penas e consequentemente do próprio número de presos, etc.

Porém, representantes de diferentes organizações e especialistas denunciam os perigos presentes com sua possível aprovação, uma vez que poderia aumentar os índices de aprisionamento de inocentes, pessoas pobres sem acesso a uma defesa qualificada, que simplesmente poderão confessar crimes por medo de penas ainda maiores. Essa proposta, além do próprio desrespeito ao preceito constitucional brasileiro de presunção da inocência, nega o direito a uma defesa digna, e pode acentuar o encarceramento em massa no país.

Até porque o modelo norte-americano de confissão de culpa está ilustrado por inúmeros exemplos de erros. De acordo com um levantamento realizado pela Universidade de Michigan e a Universidade da California Irvine, desde 1989 nos EUA, do total de 2.479 condenações de inocentes, 301 (12%) contaram com confissões falsas (SETO, 2019). Assim, ao se fundamentar neste modelo, a sociedade brasileira – que é significativamente mais desigual e que possui um sistema de justiça ainda mais frágil –, poderá incorrer em um número muito maior de equívocos, e a população negra e pobre será a mais prejudicada.

Gustavo Badaró, professor titular de processo penal da USP, aponta outro risco eminente: “Some-se a possibilidade de aumento do encarceramento e o projeto de privatização dos presídios e você tem algo muito perigoso. O ‘plea bargain’ vai ser o mecanismo para fornecer clientes para os presídios privados. Uma demanda suprida mais rapidamente e em maior quantidade” (SETO, 2019).

A proposta de privatização dos presídios pode acentuar a política de encarceramento em massa, que já se constitui em uma realidade no nosso país. Em comparação aos índices mundiais, nas últimas duas décadas o Brasil ficou em segundo lugar na taxa de eclosão da população carcerária, sendo superado apenas pelo Camboja (KALILI, 2017). Só entre 2004 e 2014 a quantidade de adultos atrás das grades aumentou 85%. Este percentual está 67% acima da capacidade oficial de lotação dos presídios brasileiros (HUMAN RIGHTS WATCH, 2017).

Mas o encarceramento em massa não representa uma realidade apenas para os homens. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), no intervalo de dezesseis anos, entre 2000 e 2016, a taxa de aprisionamento feminino cresceu 455% no Brasil[13], em 2016 existiam 42.355 mulheres em privação de liberdade (DEPEN, 2016). Nós ocupamos a quarta posição no ranking de países que mais encarceram mulheres no mundo, ficamos atrás apenas dos Estados Unidos, China e Rússia. Desta forma, fica explícito que a política de encarceramento em massa afeta prioritariamente as mulheres, especialmente, as mulheres negras. Da população feminina no sistema prisional, 62% são negras e 37% são brancas[14]; esses indicadores confirmam que os marcadores raciais determinam os padrões de encarceramento no nosso país[15].

Contudo, além de aumentar os índices do encarceramento de homens e mulheres negros/as, o Pacote Anticrime pode fortalecer e potencializar as facções criminosas. Marcelo Semer, juiz de direito e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia, afirmou que: “o projeto é um presente para as facções. Tudo o que elas mais querem, e mais precisam, é mais encarceramento, mais levas de jovens que poderão aliciar para seus exércitos. O PCC, penhorado, agradece.” (COSTA, MAURICIO, 2019).

Portanto, esse conjunto de propostas representa um grande retrocesso para a nossa sociedade. O Brasil é signatário de todos os tratados internacionais de direitos humanos e o Pacote Anticrime fere gravemente as pactuações de proteção desses direitos, ao primar por um modelo punitivista, repressivo e que na prática terá nítidas consequências racistas.

Diálogo entre o Projeto de Lei Anticrime e as recomendações da CPI do Assassinato de Jovens

A partir deste momento, iremos realizar uma breve contraposição entre o Pacote Anticrime e as conclusões e recomendações definidas pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o Assassinato de Jovens em 2016. Esta CPI foi realizada pelo Senado Federal a partir de 29 reuniões e audiências públicas que ocorreram entre 2015 e 2016. Esta análise está em diálogo com o documento produzido pelo Fórum Permanente pela Igualdade Racial (FOPIR), que produziu uma síntese do relatório em questão[16].

Tal diálogo demonstra-se válido e necessário ao discutir o Pacote Moro, pois diferente das numerosas publicações de centros de pesquisas ou do discurso de ativistas e militantes dos movimentos sociais, especialmente do movimento social negro, que há muito tempo denunciam o extermínio da população negra no país, o Relatório Final da CPI do Assassinato de Jovens possui outro caráter. Trata-se de um documento produzido pelo Senado Federal e, portanto, pelo próprio Estado, que admite categoricamente que os números de homicídios revelam que “o Estado brasileiro, direta ou indiretamente, provoca o genocídio da população jovem e negra” (SENADO, 2016, p. 145) no Brasil.

Mas, além do tom categórico ao apontar a existência inegável do genocídio contra a juventude negra no país, o Relatório também apresenta outras colocações importantíssimas, definindo uma proposta de reforma para a Segurança Pública brasileira[17]. Algumas das considerações mais importantes são: a desmilitarização da Polícia Militar; a proibição da tipificação de homicídios enquanto autos de resistência; o funcionamento do chamado “ciclo completo da polícia”[18]; a melhoria na condição de trabalho dos policiais; a revisão do tipo de treinamento oferecido aos policiais; a desconstrução do modelo de atuação policial baseado no “combate ao inimigo interno” e a implantação de uma “polícia cidadã”.

Já as principais recomendações feitas pela CPI, no âmbito técnico e legislativo, são apresentadas a seguir.

Recomendações da CPI para o enfrentamento do genocídio

Recomendações Técnicas

1- Fundar um Banco Nacional de Dados sobre Violência: Esta recomendação prevê que a partir do desenvolvimento de um protocolo de padronização dos dados e informações sobre a Segurança Pública, seja criado um banco de informações consolidadas e sistematizadas sobre o fenômeno da violência, partindo do aperfeiçoamento do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais e sobre Drogas (SINESP) – considerado ineficaz.

2- Criar o Observatório Nacional sobre Violência no âmbito do Congresso Nacional: Este observatório poderá monitorar a gestão e a atuação da Segurança Pública dos estados e dos órgãos governamentais, como a Polícia Militar e a Polícia Civil. Este organismo poderá subsidiar informações importantes para a construção de propostas legislativas na área de segurança.

3- Banir os chamados autos de resistência, de modo efetivo, e constituir a possibilidade de comunicação imediata da ocorrência de crime aos órgãos periciais: Ao reconhecer a insuficiência da Resolução Conjunta nº2 (elaborada pelo Departamento Superior de Polícia e o Conselho Nacional dos Chefes da Polícia Civil) aprovada em 2015, esta recomendação da CPI propõe a eliminação completa dos chamados autos de resistência, com a definição de abertura obrigatória de inquérito policial para a investigação dos homicídios provocados por policiais. Além de buscar combater a supressão do trabalho de perícia criminal, muito comum nos casos de autos de resistência, com a alteração no Código Penal para criação de um canal de comunicação direta entre o cidadão e o órgão pericial, realizando a notificação imediata da ocorrência do crime, sem a necessidade de intermediação por parte da polícia.

4- Desenvolvimento de um Plano Nacional de Redução de Homicídios: Esta recomendação visa a criação de um protocolo de ações básicas a serem desenvolvidos pelo governo federal e os governos estaduais para efetivar a redução dos assassinatos. Além disto, propõe a articulação e a atuação coordenada entre os diferentes estados para a troca de dados, definição de estratégias, tendo como prioridade medidas com foco no segmento mais vulnerável, que possui as maiores taxas de homicídio: jovens negros entre 12 e 29 anos.

Recomendações Legislativas

1- Proposta de Emenda à Constituição – PEC nº 51, de 2013, em tramitação no Senado. Esta PEC prevê mudanças na Constituição Federal (altera os artigos. 21, 24 e 144 e acrescenta os artigos. 143-A, 144-A e 144-B) para reestruturar o modelo de Segurança Pública a partir da desmilitarização da polícia.

2- Proposta de Emenda à Constituição – PEC nº 126, em trâmite na Câmara dos Deputados desde 2015. Propõe a alteração na Constituição (altera os artigos. 159 e 239 e acrescenta o art. 227-A), para dispor sobre o Fundo Nacional de Promoção da Igualdade Racial, Superação do Racismo e Reparação de Danos.

3- Projeto de Lei dos Autos de Resistência, nos moldes do Projeto de Lei nº 4.471, de 2012, em trâmite na Câmara dos Deputados.

Fica, portanto, explícito que as recomendações elaboradas pela CPI do Assassinato de Jovens e o Pacote Anticrime apontam para caminhos totalmente opostos, pois existe uma divergência na concepção sobre a segurança pública. Do primeiro vale destacar, especialmente, que as propostas de proibição dos homicídios classificados como autos de resistência; a criação de um Plano Nacional de Redução de Homicídios; o investimento na formação dos policiais e a desmilitarização da polícia, indicam uma perspectiva de segurança que está em função da valorização da vida, tanto da população em geral, como dos próprios policiais. No segundo caso, existe a proposta de fomento de ainda mais mortes, desde a institucionalização da carta branca para matar” com o excludente de ilicitude para policiais; o incentivo à impunidade com a deturpação do significado de legítima defesa tanto nos casos de feminicídio, como de letalidade policial; a importação do “plea bargain”, que impõe violações de direitos básicos para a constituição da defesa dos acusados/as, etc. Todas essas propostas representam uma compreensão sobre a segurança pública bastante limitada, pautada pela lógica do “populismo punitivo” que fragiliza toda a sociedade, mas que terá um impacto ainda mais nefasto sobre a população negra.

Correlações entre o projeto e o debate sobre a reforma política

A Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político defende um processo de radicalização da democracia, tendo em vista o enfrentamento das desigualdades e da exclusão, a promoção da diversidade e o fomento à participação cidadã. A defesa da democracia pela Plataforma tem em conta o monitoramento e a necessidade de participação popular nos assuntos públicos relativos a todos os poderes de Estado e instâncias do governo, incluindo o poder judiciário e os órgãos do sistema de justiça.

Propostas de alterações legislativas com impacto significativo no sistema de justiça criminal e consequentemente nos processos de criminalização e encarceramento que afetam parte significativa da maioria pobre, negra e periférica da população brasileira não podem ser levadas a cabo sem um processo de consulta e participação popular acerca do conteúdo dessas propostas. Por outro lado, os marcos da Constituição Brasileira delimitam um conteúdo mínimo democrático de direitos e garantias fundamentais que não podem ser desrespeitados através de projetos de leis ordinárias. O Pacote Anticrime aposta no recrudescimento do punitivismo e na falsa solução do encarceramento para contrariar princípios básicos de manutenção e funcionamento da democracia brasileira, em especial a defesa dos direitos e garantias fundamentais da população.

Em Nota Técnica recém-publicada a Comissão de Igualdade Racial da Associação Nacional dos Defensores Públicos, chama atenção, entre outros elementos, para o fato de que as propostas do Pacote Anti-crime:

a) viola as diretrizes constitucionais para a prestação de segurança pública, especialmente a finalidade de preservação da incolumidade das pessoas, disposta no art. 144 da Constituição;

b) atenta frontalmente contra os parâmetros colhidos do direito internacional dos direitos humanos a respeito do controle do uso da força por parte dos funcionários do Estado, especialmente as recomendações ao Estado brasileiro impostas na sentença do Caso Nova Brasília vs. Brasil e contidas no Código de Conduta Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei adotado pela ONU;

c) deixou de avaliar as caraterísticas raciais e étnicas da violência letal no Brasil, razão pela qual propõe medidas absolutamente inadequadas para o enfrentamento dos crimes praticados com grave violência contra a pessoa, que podem inclusive agravar a desproteção dos segmentos populacionais mais afetados por este fenômeno, o que ofende o princípio constitucional do devido processo legal, na sua dimensão substancial (art. 5o, XXXIX, da Constituição);

d) propõe soluções que ampliam a desproteção do direito à vida e à segurança da população negra e indígena e, com isso, ofende o art. 5o, caput, da Constituição e o artigo 4 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos;

e) ao flexibilizar o controle de uso da força letal por parte de agentes estatais e reforçar mecanismos propensos à impunidade de atos abusivos, agrava a situação de desigualdade estrutural dos grupos populacionais mais vulneráveis à violência institucional – quais sejam, a população negra e indígena –, em franca violação aos artigos 3o, inciso IV, e 5o, caput, da Constituição; ao direito à igualdade como não discriminação previsto no artigo 1.1 da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos; à Convenção 169 da organização Internacional do Trabalho e à Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas; e , por fim, à Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância.

A Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político defende a necessidade de projetos de transformação social que assegurem direitos, ampliem as oportunidades e garantam a participação a segmentos historicamente excluídos dos espaços de poder. O combate ao crime organizado e à segurança pública deve ser assegurado através de processos que impliquem mudanças nas leis e instituições, e não na reprodução dos mecanismos de exclusão, punição e encarceramento que têm como alvo a maioria pobre, periférica e negra da população brasileira.

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[1] Este artigo da Plataforma pela Reforma do Sistema Político foi elaborado a partir do apoio técnico de Élida Lauris (JusDh) e Giselle dos Anjos Santos (FOPIR-CEERT).

[2] RIBEIRO, Matilde. Mulheres negras: uma trajetória de criatividade, determinação e organização. Estudos Feministas, Florianópolis, 16(3), set-dez/2008, p. 988.

[3] Segundo dados do IBGE a população negra representa 54% dos/as brasileiros/as, mas constituem apenas 17% dos mais ricos (AGÊNCIA BRASIL, 2015).

[4] Outra crítica recorrente ao projeto foi a total ausência de diálogo em sua construção com os especialistas em direito penal, processo penal e execução penal, além dos especialistas em segurança pública.

[5] Em junho de 2019, ocorreu em São Paulo, um ato onde mais de 70 organizações da sociedade civil manifestaram apoio a uma campanha contra o pacote anticrime de Sérgio Moro. Essa campanha foi batizada de: “Pacote Anticrime, uma solução fake” (CAMARGO, 2019).

[6] O item quatro sobre legítima defesa que indica a alteração em dois artigos do Código Penal (art. 23 e 25) e um do Código de Processo Penal (art. 309-A)

[7] Segundo estudo de uma das agências da ONU, a casa é o local mais inseguro e perigoso para as mulheres no mundo (UNODC, 2018). Mas tal realidade se confirma no contexto brasileiro, uma vez que das mulheres que sofreram violência 42% passaram por essa experiência em sua própria casa, enquanto 29,1% foram agredidas na rua (FBSP, 2019).

[8] No dia 15 de janeiro de 2019, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) assinou um decreto facilitando o acesso à posse de armas de fogo à população. Contudo, no dia 25 de junho o presidente revogou o decreto, após o Senado ter aprovado um parecer pedindo suspensão dos decretos e um dia antes de STF julgar um pedido de anulação das medidas. Porém, na mesma data em que realizou a revogação, o presidente editou três novos decretos com o mesmo conteúdo e propostas presentes no decreto anterior, além de ter enviado ao Congresso Nacional um projeto de lei sobre o mesmo tema. Para diferentes especialistas, essa anulação representa uma nítida manobra política para garantir a manutenção das propostas frente as ações de desabono.

[9] Segundo dados do 8º Anuário Brasileiro de Segurança Púbica (FBSP, 2014), em cinco anos, entre 2009 e 2013, as polícias brasileiras mataram 11.197 pessoas. Este número aponta que as polícias daqui mataram o equivalente ao que as polícias dos EUA em 30 anos, já que lá foram assassinadas 11.090 entre os anos de 1983 e 2012.

[10] Entre 2009 e 2013 foram assassinados no Brasil 1.770 policiais (FBSP, 2014, p. 6).

[11] Os autos de resistência são casos de homicídio doloso resultantes de ação policial contra supostos suspeitos de algum crime, nos quais o policial alega ter usado o princípio de legítima defesa. Contudo, quando existe a classificação como auto de resistência, a negligência institucional opera impedindo a apuração efetiva da ocorrência, já que na extrema maioria das vezes não existe perícia no local do crime e não se instaura o inquérito policial, gerando o arquivamento dos casos. Por exemplo, entre 2001 e 2011, dos mais de 10 mil casos de mortes em decorrência de confronto policial no Estado do Rio de Janeiro, somente 3,7% tiveram abertura de processo de investigação (SENADO, 2016, p. 61). Esta categorização muitas vezes oculta atos de violência policial, em execuções sumárias contra vítimas desarmadas. E apesar da tipificação como auto de resistência ser uma prática recorrente, não existe nenhum respaldo legal que autorize o seu uso. Desta forma, foi aprovada em 2015 a Resolução Conjunta nº 2, elaborada pelo Departamento Superior de Polícia e o Conselho Nacional dos Chefes da Polícia Civil, para inibir este tipo de classificação. Todavia, segundo o próprio Relatório da CPI do Assassinato de Jovens, esta Resolução possui nítidas limitações, demonstrando-se insuficiente para combater os casos de auto de resistência. É necessária uma ação mais concreta para fiscalizar as práticas cartorárias das delegacias de polícia.

[12] Segundo o Atlas da Violência 2018 “Em 2016, por exemplo, a taxa de homicídios de negros foi duas vezes e meia superior à de não negros (16,0% contra 40,2%). Em um período de uma década, entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1%. No mesmo período, a taxa entre os não negros teve uma redução de 6,8%.” (FBSP, IPEA, 2018, p. 40).

[13] De acordo com os índices anteriores, no período entre 2000 e 2014 o crescimento da população feminina encarcerada foi ainda maior, com a porcentagem de 567,4%, enquanto a média masculina aumentou 220,20%, no mesmo período.

[14] Neste sentido, a taxa de aprisionamento para o grupo de cada 100 mil mulheres, acima de 18 anos, dos diferentes grupos raciais corresponde a: 40 mulheres brancas privadas de liberdade para cada 100 mil (mulheres brancas) e 62 mulheres negras na mesma condição para cada 100 mil (mulheres negras) (DEPEN, 2018).

[15] Os dados referentes a alguns estados explicitam o padrão racial com uma nitidez ainda maior, uma vez que no Acre, por exemplo, 97% das mulheres encarceradas são negras e 3% são brancas e no Ceará, 94% das mulheres presas são negras e 5% são brancas (DEPEN, 2016).

[16] A síntese do relatório da CPI do Assassinato de Jovens foi produzida pelo Fórum Permanente pela Igualdade Racial (FOPIR) a partir do apoio técnico de Giselle dos Anjos Santos (FOPIR-CEERT). Com o objetivo de impedir que as resoluções da CPI caíssem no esquecimento e se transformassem em letras mortas, o FOPIR decidiu não só visibilizar as suas recomendações para o enfrentamento do genocídio, como também acrescentou suas recomendações, no intuito de somar forças para a superação deste sério problema. Este documento pode ser consultado no seguinte link: http://fopir.org.br/wp-content/uploads/2017/11/Documento-FOPIR-sobre-o-Genocidio.pdf Além disso, o FOPIR protocolou quatro ações denunciando o genocídio em curso no Estado brasileiro em quatro relatorias da ONU, por meio do apoio técnico do advogado Daniel Teixeira (FOPIR-CEERT).

[17] A necessidade de uma reforma na Segurança Pública é urgente, uma vez que quase a totalidade dos crimes esclarecidos no Brasil decorrem de prisão em flagrante ou repercussão na mídia, e dos quase 60 mil homicídios que ocorrem a cada ano, o índice de apuração e elucidação dos casos não atinge os 8% (SENADO, 2016).

[18] A CPI defende que a estrutura de policiamento bipartida, onde a Polícia Militar realiza o trabalho preventivo e ostensivo e a Polícia Civil investiga, é ineficiente, devido a duplicidade de estruturas e ausência de interação. Por isso, propõe o “ciclo completo da polícia”, sem a divisão de funções que existe atualmente.

 

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