Pelo menos 21 casos de feminicídio ocorreram na primeira semana de 2019

Rute Pina

Uma festa de ano novo em Jacarepaguá, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro (RJ), terminou em tragédia, noticiada nas páginas policiais. Na madrugada da última terça-feira (1º), a manicure Iolanda Crisóstomo da Conceição de Souza, de 42 anos, foi assassinada a facadas após uma briga com o ex-marido.

Segundo testemunhas, eles discutiram porque o homem não aceitava o fim do relacionamento.

Na noite do mesmo dia, uma jovem também foi assassinada a facadas, na zona rural de Casinhas, no agreste de Pernambuco. Rejane de Oliveira Silva, de 24 anos, recusou se relacionar com o agressor. Ele a atingiu com uma facada no tórax.

O pesquisador Jefferson Nascimento, doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP), fez um levantamento para contabilizar e mapear estes e outros casos de feminicídios que ocorreram em 2019. E encontrou 21 mortes e 11 tentativas de assassinatos noticiados na imprensa até o dia 6 de janeiro. Os números estão em constante atualização.

Em comum entre os casos está o fato de que, geralmente, o autor do crime tem algum grau de relacionamento com a vítima – namorados ou ex-maridos.

Um levantamento do Ministério Público do Estado de São Paulo revela que 66% dos assassinatos de mulheres acontecem dentro do ambiente familiar. O órgão publicou, no ano passado, o Raio X do Feminicídio em SP.

Legislação

No Brasil, o feminicídio está previsto na Lei nº 13.104 de 2015 e é considerado o assassinato que envolve “violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher”, explica a juíza capixaba Hermínia Maria Silveira Azoury.

“Quando a gente fala em feminicídio, a gente fala em vítimas do gênero feminino. A vítima é uma mulher. E ela veio como uma qualificadora do artigo 121. Quer dizer, veio dar um upgrade, veio aumentar a pena”, pontua.

A pena prevista para o homicídio qualificado é de reclusão de 12 a 30 anos. Com a nova lei, o crime foi adicionado ao rol dos crimes hediondos, como o estupro, genocídio e latrocínio, entre outros. A legislação é fruto da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher, instalada em 2013.

Segundo o Atlas da Violência 2018, são registradas 13 mortes violentas de mulheres por dia. Em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no país. O número representa um aumento de 6,4% no período de dez anos.

Já em 2017, dois anos após a Lei do Feminicídio entrar em vigor, os tribunais de justiça de todo o país movimentaram 13.825 casos. Destes, foram contabilizadas 4.829 sentenças proferidas. Os dados são do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

A advogada e socióloga Fernanda Emy Matsuda, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), enxerga um interesse maior da imprensa em cobrir os casos de feminicídio. Ela reitera, no entanto, a necessidade em descaracterizar esses crimes como “atos passionais”. Segundo ela, ao fazer isso, a mídia desvia a atenção de um problema que é estrutural.

“Quando a gente fala em crime passional, parece que a gente está falando de uma situação em que houve uma explosão, um descontrole emocional, uma descarga de raiva e violência que culminou na morte, na fatalidade. Mas não é isso o que acontece. Esses casos que têm sido divulgado na imprensa mostram que as mulheres vinham há muito tempo, ao longo do relacionamento e da sua vida, sendo vítimas dessa violência.”

Educação e gênero

A tipificação do crime foi um passo comemorado por militantes e especialistas na área por dar visibilidade e mostrar, com mais precisão, o cenário da desigualdade de gênero no país.

Mas a juíza Hermínia Azoury — que instalou a primeira vara de violência doméstica do estado do Espírito Santo, a segundo do país — pontua a necessidade de implementar, em paralelo, ações de prevenção e formação.

“Essa mudança de paradigma é complicada, mas é possível. Eu sempre bato na mesma tecla, em 25 anos de magistratura e 16 anos de Defensoria Pública: tem que começar pela Educação. E mudança de cultura é uma coisa que tem que ser trabalhada de forma gradual e passando pela Educação”, defende.

Na contramão do que a especialista recomenda, no entanto, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL) afirmou que alunos do ensino médio não precisam “saber sobre feminismo, linguagens outras que não a língua portuguesa ou história”.

Assim como seu pai, o presidente de extrema direita Jair Bolsonaro, o deputado é apoiador do projeto Escola Sem Partido e é contrário a discussões de gênero nas escolas públicas.

Novo governo

Fernanda Matsuda, por sua vez, se preocupa com o novo posicionamento do governo federal e de aliados. Ela teme que a mudança de concepção pode acabar, de vez, com a vontade política de construir políticas dirigidas às mulheres.

Segundo a socióloga, essa “vontade política” culminou, entre outras coisas, na criação do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos — um dos primeiros a serem extintos no governo de Michel Temer (MDB). Com Bolsonaro, as propostas para a áreas vão se centralizar no Ministério da Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos.

“A mulher deixa de ser sujeito de direito dentro desse novo modelo institucional. A mulher é um componente da família. E muitas vezes, em detrimento dos seus direitos, a política para as mulheres acaba privilegiando o interesse da família”, afirma ela.

“É como se mulher tivesse que sacrificar sua integridade física, mental e seu direito a uma vida livre de violência em prol desse modelo familiar que se coloca e que é imposto por uma sociedade extremamente machista”, completa.

Em 2017, o Brasil concentrou 40% dos feminicídios da América Latina segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU).

Deixe um comentário

17 − dois =