Os três poderes e a desarmonia com os interesses do povo

Roberto Amaral

Jamais em nossa curta história republicana os poderes que nos regem – Legislativo, Executivo e Judiciário – estiveram, como presentemente, de forma irmanada e coletiva, tão na contramão dos interesses do país e de seu povo, abrindo espaço, na medida em que se desmoralizam e perdem o respeito da sociedade, para a ofensiva reacionária que se espalha país afora.

A disfunção do sistema se confunde no olhar das grandes massas com a própria disfunção da democracia, levando nossa classe dominante a uma vez mais estimular perigosos arroubos totalitários, por enquanto tênues: os grandes rios nascem pequenos.

Na chefia do Poder Executivo, um presidente sem voto e sem honra alçado ao Planalto na crista de um golpe levado a cabo por um Congresso que há muito deixou de representar o povo. Segue-lhes o Poder Judiciário, o mais caro do mundo e ao mesmo tempo o mais lerdo,  useiro e vezeiro em desmandos e violações à Carta Magna fruto de uma Constituinte, e assim respaldada na soberania popular. O descrédito das instituições fundamentais constrói e alimenta o descrédito na democracia, arando o terreno para a semeadura autoritária.

É sempre assim.

O Poder Judiciário esmera-se em abusos e de abuso em abuso vai arrancando um a um os tijolos da precária construção democrática, penosamente erguida no combate aos 21 anos de escuridão dos anos militares. Já estão distantes os ventos benfazejos que saudaram a ‘Constituição cidadã’, hoje uma jovem enferma jogada à orfandade.

Qualquer juiz de piso, sem a mínima convivência com a soberania popular, sem a força do voto que legitima a delegação, dispõe do poder  de decretar a inconstitucionalidade de uma lei aprovada pelo poder legislativo e sancionada pelo poder executivo.

O plenário do STF não julga, julgam de per si,  isoladamente, monocraticamente, os ministros, e a Corte Suprema se transforma em 11 tribunais, absolutos e incomunicantes.  Dados recentes (Estadão, 3.8.18) mostram que no Supremo jazem 75 liminares concedidas monocraticamente suspendendo leis, decretos, resoluções e medidas provisórias. Muitas delas, sem o julgamento do mérito pelo Pleno, repousam em algum perdido escaninho desde 2010.

Aliás, foi uma liminar, expedida pelo inefável ministro Gilmar Mendes, que impediu a posse do ex-presidente Lula na Chefia da Casa Civil da então presidente Dilma Rousseff, abrindo a porteira para o golpe. Foi uma liminar, concedida pelo ministro Celso de Mello, que autorizou a posse de Moreira Franco no Ministério das Minas e Energia.

Na primeira hipótese a nomeação de Lula foi tida como artifício para livrá-lo da justiça em primeira instância; no segundo caso, em tudo igual ao quadro atribuído a Lula,  a nomeação  de Moreira Franco não foi tida, embora sabidamente fosse, como artifício para proteger o auxiliar dileto do presidente perjuro.  Mais tarde, a interdição aplicar-se-ia à nomeação da deputada Cristiane Brasil — acusada de responder a dois processos trabalhistas — ao posto de ministra do Trabalho.

Em todos  esses casos com desrespeito à  Constituição que reza em seu art. 84 competir privativamente ao presidente da República nomear e exonerar os Ministros de Estado. Ora, o STF é cesteiro de cem cestos; já havia, na prática, ‘revogado’ o princípio constitucional (art. 5º-LVII) segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”!

O sonho dos ministros – e nesse desvario destaca-se o ministro Barroso,  líder da bancada populista – é dar ordens ao Executivo e assenhorear-se da competência privativa  do Legislativo, acovardado em sua pequenez; o ministro Luiz Fux anda desafeiçoado com a prática e a doutrina do habeas corpus e pretende ‘modernizar’ a legislação no curso da atividade judicante; a ministra ainda presidente diz que a Casa deve dar ouvidos ao clamor das ruas, quando o único clamor que lhe diz respeito é o da Constituição e das leis, que nem a ministra nem ninguém, senão o Poder Legislativo,  pode alterar.

Os ministros avançam como se constituintes e legisladores fossem,  mas sem a força legitimadora do voto, sem os riscos do julgamento do processo eleitoral a que se submetem os parlamentares, enfim, sem pôr em questão a vitaliciedade monárquica que os protege, como os protege a inexistência  de fiscalização externa à qual estão sujeitos tanto o chefe do Executivo quanto os parlamentares.

Os ministros,  na verdade apenas funcionários públicos selecionados para um determinado ofício, se transformam em príncipes, e graças a essa metamorfose exercem um poder desmedido na República, pois, como os monarcas do absolutismo, são irresponsáveis, isto é, a nenhum poder estão (ou se sentem) submetidos.

Essa distorção é antirrepublicana e antidemocrática.

Lamentavelmente, porém, os desvios descambam da plano jurídico para o âmbito da ética. É inqualificável a decisão dos ministros de nossa mais alta Corte de aumentarem seus próprios salários; esta decisão, à qual se espera reaja o Congresso, é uma bofetada nos milhões de brasileiros desempregados.

Fazendo ouvidos de mercador para a crise do país, esses senhores, esse grupinho de 11 privilegiados, herdeiros da casa grande, estipendiados pelo poder público (quem tem salário acima de 30 mil está entre o 1% mais rico da população), elevam em 16,8 os seus salários de marajás, já os mais altos da República, que assim passam de 33.763 reais para 39.293,32 reais.

Que significa isso?

De saída um aumento de despesa hoje estimado em quatro bilhões de reais. Segundo levantamento, a União será onerada  em 1,4 bilhão de reais e os Estados, quase todos já em fase pré-falimentar, em 2,6 bilhões de reais. É o efeito cascata, decorrente do fato de  o salário do ministro do STF ser o  teto do serviço público, ou seja, seu reajuste  implica automaticamente  o reajuste do presidente e do vice-presidente da República, dos ministros e da alta burocracia, dos detentores de cargos em comissão (DAS6-b) o que  determinará o  corte das despesas em outras áreas já carentes de recursos, como investimentos  em saúde, em educação, em saneamento básico, em segurança, etc.

Esse  aumento significa, na cola, o aumento dos salários dos membros do  Ministério Público, dos parlamentares (já  em tramitação), dos  funcionários do Legislativo e do Executivo, nos três planos, federal, estadual e municipal.

É preciso considerar, ainda, que milhares de funcionários públicos dos três Poderes  percebem salários superiores ao teto remuneratório. Somente no Executivo são 5.773 servidores. (Valor, 10/8/18). Toda a magistratura federal será reajustada e a regra é válida para a magistratura estadual.

Mas dizer que o salário de um príncipe da magistratura é, agora, quase 40  mil reais (quando o salário médio do funcionalismo público federal é 8,504 mil reais), é dizer apenas uma parte da verdade, pois a esses salários milionários e imorais em nossa realidade social  se acrescem penduricalhos e abusos sem número inalcançáveis pela Receita Federal, disfarçados como verbas indenizatórias, como o auxílio moradia para juízes, apartamento de 400m2 em Brasília para os ministros dos tribunais superiores, carro oficial, motorista e combustível 30 dias por mês, gabinete e uma caríssima penca de assessores e auxiliares, quase todos de nível universitário, inclusive juízes e procuradores.

Quanto mesmo custará à nação um ministro do STF, que trabalha por ano menos de nove meses e três a quatro dias por semana? Mas ainda não é  tudo, pois os ministros e seus funcionários e pajens, desfrutam (com seus familiares) de assistência médica gratuita (muito distinta do SUS) e de uma academia de ginástica no próprio ambiente de  trabalho, e os ministros gozam de  recém instalada sala vip no aeroporto  de Brasília, para maior conforto e, dizem, segurança, em  suas frequentes e inumeráveis viagens. Nossos príncipes dispõem agora também de acesso privativo para embarque,  porque os monarcas jamais se misturam com a plebe.

Tudo é possível e permitido se o Supremo não tem a quem prestar contas.

Esse aumento é um escárnio que, ademais, é mais um argumento para o pleito de profunda e radical reforma do Poder Judiciário a fim de  estabelecer efetivo controle externo, além da fixação de mandato certo para os integrantes dos órgãos colegiados, novas formas de seleção, avaliação de produtividade etc. Como se justifica um ministro pedir vista de um processo e guardá-lo consigo por mais de dois anos, impedindo assim um julgamento, a aplicação da lei, a proteção de um direito?

Nada avançará neste país  se continuarmos, agora,  submetidos a uma ordem jurídica farisaica, inepta, reacionária, antidemocrática  e antirrepublicana.

Marielle – quando a polícia carioca e os militares da intervenção vão apresentar os mandantes e executores do assassinato de Marielle Franco. Até quando ficaremos esperando Godot?

Roberto Amaral

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