POR DENTRO DA MENTE DOS ELEITORES DE BOLSONARO QUE SÃO FÃS DO POLÍTICO E VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA POLICIAL

The Intercept

MAYCON, 23 ANOS, um jovem negro de baixa renda, tem um irmão na cadeia, sonha ser policial, defende veementemente a pena de morte, o armamento da população contra o que chama de “Direitos Dosmano”. Eleitor convicto de Lula, ele gostaria de leis menos frouxas para “a bandidagem”.

Nas rodas de conversa que realizo com adolescentes periféricos, eleitores de Bolsonaro seguem a mesma orientação punitivista e demonstram solidariedade aos policiais, que deveriam ter o direito de matar. Paradoxalmente, esses mesmos meninos relatam um cotidiano de humilhações em abordagens policiais abusivas. “Se eu não estiver vestido como humilde e não estiver de cabeça baixa, [ou seja], se estiver de cabeça erguida e com boné de marca que me associe aos mano, eles me param, dão porrada e me jogam no chão”, contou Pepe, de 17.

O número de mortes decorrentes de ações policiais teve um aumento vertiginoso no Brasil. Em quatro anos, quase triplicou. De acordo com o último relatório do Instituto de Segurança Pública do Rio, a média mensal de 48,6 mortes em 2014 passou a 127,8 em agosto deste ano. Em todo país, 4.424 pessoas foram executadas por policiais em 2016, segundo a última edição do Atlas da Violência. Se partimos do princípio que 71% dos homicídios ocorrem entre jovens negros e pobres, podemos supor a cor e a classe dessas vítimas da violência fardada.

Olhando para esse padrão, o conservadorismo de Maycon e Pepe parece não fazer sentido. Eles mesmos podem ser o próximo “bandido bom” e “morto”. A pergunta que precisa ser respondida é por que vítimas em potencial da violência de Estado muitas vezes se colocam em defesa da polícia, banalizando as execuções extrajudiciais?


Já Maycon e Pepe são personagens da periferia de Porto Alegre. Fora dos grupos de ativistas ou do hip-hop da cidade, esse sujeitos que, em tese, jogam contra si próprios, são mais comuns. Conversando com professores de escolas públicas de Fortaleza ou lendo o livro de Juliano Spyer “Mídias Sociais no Brasil Emergente” sobre uma região periférica na Bahia, fico com a sensação de que, no senso moral de um Brasil profundo e popular, essa aparente contradição é mais corriqueira do que se imagina.
Primeiro, é preciso pontuar que o grau de solidariedade com a figura do policial varia de acordo com o contexto. A situação é excepcional nas favelas do Rio, marcadas pela atuação policial genocida, e em boa parte das quebradas de São Paulo, onde ocorre um quinto das execuções. Como reação, há um ativismo bastante forte em ambas as cidades.


Existem muitas formas de a figura do vagabundo se perpetuar. Programas como Datena fazem isso, mas nada se compara ao novo gênero de espetáculo da violência que são os vídeos caseiros que circulam no WhatsApp nas classes populares. Como narra Spyer, trata-se de um universo à parte, um demarcador de classe que se caracteriza pela espetacularização do sangue, do sexo brutal, dos tiros e facadas. Uma violência-ostentação, filmada e fofocada nas comunidades.
Nossa herança colonial revela a construção de um imaginário partido em dois num Brasil também dividido: um branco, civilizado e seguro; e outro negro, bárbaro e perigoso. Com a teórica feminista bell hooks a pesquisadora Teresa Caldeira, aprendemos que a noção de segurança faz parte das mitologias dominantes que entendem que o perigo reside do lado de fora. Mas a teoria do pensamento social brasileiro alerta para o fato de que a construção da “marginalidade” – e em que se projeta o medo e o risco – produz uma figura, que é central em nosso imaginário: a do “vagabundo”, desviante e desestabilizador da ordem, portanto, criminalizado e desumanizado.

Enquanto escolhia as palavras para escrever esta coluna, tremendo, tentava me recompor do aperto no peito e enjoo após assistir um vídeo de uma execução a sangue frio, com 29 tiros, de um homem pelo tráfico. Depois, recebi outro, de traficantes com fuzis atirando para o alto. Como Spyer chama atenção, essas imagens circulam como uma forma de indignação da impunidade, mas também como um poder disciplinador e moralizador. Aqui vale também reparar que os vídeos de execuções são sempre de traficantes, sem limites e audaciosos, que agem dentro de um faroeste sem lei, enquanto que as execuções policiais são raramente filmadas (por razões óbvias) e, portanto, menos presentes no imaginário popular.

Nessa violência ordinária, reside uma sensação de impunidade e insegurança que atinge justamente os mais pobres, que perdem o pouco que conquistam.

Beto, motorista de Uber e eleitor apaixonado de Bolsonaro, viu metade de seus amigos de adolescência morrerem pelas mãos do tráfico ou da polícia. Em uma corrida, ele sofreu um assalto que não levou apenas seu dinheiro e celular, mas também sua dignidade: o assaltante obrigou que ele ficasse “de quatro” e implorasse por sua vida vida. Uma vez, ele mostrou a mim e a minha parceira de pesquisa, Lúcia Scalco, um vídeo de seu primo “folgado” na prisão: jogando futebol e assistindo Netflix. “Ele está melhor que eu: tem comida, tem seriezinha”. Histórias como essas de bandidos que passam bem na prisão e depois voltam a assaltar sempre circulam. “É justo eu trabalhar 15 horas por dia e esses vagabundos terem tudo de mão beijada?”, perguntava ele.

A sensação de injustiça de Beto faz sentido lógico quando entendemos que um jovem de periferia que consegue estudar e ter um trabalho é uma pessoa que venceu uma corrida de obstáculos, por meio de um muito esforço individual e uma rede de suporte familiar, diante apelo do tráfico de um lado, e da omissão do Estado de outro. Se construir como “honesto” é uma saga radical de sobrevivência.

Não é nada excepcional que muitos sujeitos das periferias reproduzam a ideologia antipovo para serem aceitos socialmente. Eles precisam culpar o bandido para justificar as suas próprias escolhas.

De intelectuais como Du Bois a Cornel West, a noção de “dupla consciência” tenta dar conta de uma identidade em conflito de sujeitos [negros] que sofrem preconceito, mas procuram se enquadrar na norma. Os meninos que pedem punitivismo vivem esse dilema existencial: sabem que podem ser as próximas vítimas, mas negam as estatísticas do encarceramento em massa e da brutalidade policial.

A maioria de nossos interlocutores de pesquisa tentou carreira militar. Muitos não passam e seguem outros caminhos, como Maycon, que hoje faz curso de vigilante e está sonhando com o momento em vai poder ter o porte de armas. Nesse universo de múltiplas violências, ter uma arma significa “não ficar mais de quatro”. É a promessa de poder se defender. O que está em jogo é a permanente pulsão pela vida e pela morte. As armas são uma linguagem apreendida desde a infância em brincadeiras de bandido e ladrão que simulam execuções sanguinárias. As armas também representam virilidade: os fuzis levantados dos traficantes estão lá, fálicos, para reafirmar o poder masculino.

Antes de ficar reproduzindo bordões preconceituosos acerca dos “pobres de direita”, deveríamos fazer o esforço de colocar as coisas em perspectiva e lembrar que, na maioria das vezes, o amparo só vem da religião, da família e das ações coletivas e movimentos sociais, raramente do Estado. Não se pode esperar que brotem almas democráticas e contestadoras de pessoas cujo contexto, desde o espancamento que recebeu do pai até a lição que levou da polícia, é marcado pela violência.


Bolsonaro atinge o âmago de uma parte da cultura popular e masculina. Quando o candidato fala ao vivo no Jornal Nacional que se um bandido tem um fuzil, o policial e o cidadão de bem precisam ter um fuzil maior “e não uma flor”, ele não choca, mas atinge o íntimo de uma grande parte da população que pede violência na mesma medida em que é violentada.
Se elegermos um fascista presidente e se parte dessa votação vier das classes populares, a responsabilidade por isso é antes do ódio de classe, do racismo e de décadas de omissão do Estado. Os que apanham da polícia real, mas torcem pelo policial ideal estão apenas expressando a própria contradição do modelo de nação brasileira.

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