O desmanche da democracia

 

Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase

Em menos de duas semanas do governo Temer, o ataque a alguns dos símbolos de conquistas democráticas entre nós já é sentido e provoca reações. É simplesmente inaceitável que isto aconteça, pois injustificável de qualquer ponto de vista. Está em curso um verdadeiro desmanche daquilo que sinaliza para a sociedade princípios e valores comuns, algo a ser buscado como coletividade, promovendo a cidadania com direitos iguais, convivendo e valorizando a nossa diversidade, compartilhando os bens comuns da natureza e da cultura. Em termos orçamentários, o conjunto dos ministérios de Direitos Humanos, Mulheres, Igualdade Racial e Cultura representavam algo como meia semana – talvez uma semana até, se espichando um pouco – do gasto anual com os juros pagos para os bancos e aos poucos investidores da dívida pública. Portanto, não dá para justificar o desmanche por razões fiscais. Não adianta enganar, a encrenca é outra. Mas o estrago democrático é incalculável.  Estamos diante de um novo fundamentalismo de mercado e da ditadura financeira, sem freios, instalado em Brasília, com apoio dos oportunistas de sempre, em torno à massa política de moldar que é o PMDB. O golpe está aí, pois não foi este projeto para o país que a cidadania elegeu soberanamente em 2014.

Democracia se confunde com direitos. É a busca de direitos que dá vida às democracias. Sua base está no princípio da igualdade civil e política de direitos. Trata-se de um processo em permanente construção, pois em disputa, motivada exatamente pela desigualdade real na história concreta. Em termos legais e institucionais, os direitos constituem o arcabouço das constituições. Porém, os direitos de cidadania, enquadrados por leis e instituições, brotam da legitimidade das lutas que os transformam em novas conquistas. Retrocessos democráticos também acontecem sempre que direitos iguais legitimamente conquistados são desmontados, por força da disputa política que leva ao poder forças em defesa de seus privilégios de origem – sempre confundidos com direitos -, impondo novas leis regressivas e tomando decisões contra propostas e políticas inclusivas.

A situação política do Brasil é, sim, de ameaça à democracia. No processo de desmanche de ministérios está implícito o desmanche de direitos. No caso que estou destacando, trata-se de ministérios que ainda são muito incipientes em nossa institucionalidade e nas políticas, plantinhas promissoras em termos de qualificação da democracia que buscamos, mas elas ainda muito novas, tenras até.  É fácil desmontar e erradicar o que não tem grandes raízes nem profundas. Porém, com a extinção é como negar o direito de se desenvolver e dar frutos para a sociedade. Pior, teremos que lutar algumas décadas para remontar, plantar e fazer crescer de novo algumas das iniciativas acabadas bruscamente, impactando a nossa sociedade ainda de muitas exclusões e desigualdades sociais, machista e racista, intolerante com a diversidade. Fazer terra arrasada logo aí é revelador do governo que assaltou o poder político institucional no país.

As reações às medidas drásticas tomadas logo no início do governo mostram que existe resistência viva no seio da cidadania e que outro futuro será possível. Não creio que o governo Temer decida rever e volte a olhar para frente. Afinal, ele é um governo para trás! Reverter a decisão diante dos protestos, como ele acaba de fazer no caso da cultura, mostra que fazê-lo olhar para frente só com muita cidadania na rua. Basta lembrar daquela patética foto dos ministros empossados, todos homens e brancos, muitos com ficha corrida nos tribunais. Que Brasil é este? Não é de estranhar que as panelas, os apitos e os apupos trocaram de mãos e de bocas no domingo 13 de maio, quando Temer deu aquela entrevista para a TV.

O mais grave é que o “desmanche ministerial”, por assim dizer, foi apenas a ponta do iceberg na questão. Onde foi parar a Reforma Agrária? Com o agronegócio! E o que será que vai acontecer com a Previdência Social, hoje já unida à Fazenda? Trabalhar vai ser com base em direitos consagrados ou nas regras e normas de quem contrata trabalhadores e trabalhadoras desesperados/as por um emprego? E a nossa Petrobras vai para as cucuias desta vez, leiloada para aquelas poucas gigantes corporações multinacionais do petróleo? Para ser mais preciso, devo reconhecer que tudo isto e muito mais – muitíssimo mais – já estava na agenda do Congresso Nacional, antes do impedimento de Dilma e da posse do Temer. Só que aquele grupo orgânico no suporte a Temer é o mesmo que formulou tais propostas e conta agora com a maioria oportunista e sem coesão programática formada no processo golpista do impeachment. Muita desconstrução vem por aí, não resta dúvidas.

O desmanche de conquistas democráticas e de direitos é, por princípio, algo motivador de resistências. Mas uma coisa é resistir para sobreviver, outra é resistir para ganhar força e vencer amanhã. Não nos iludamos, estamos diante de uma investida do capitalismo financeiro globalizado que não se restringe ao Brasil, por mais importantes que sejamos na geopolítica mundial. Temos elites tupiniquins autoritárias, subservientes e de bem com o sistema global criador de desigualdades sociais vergonhosas e de enorme destruição das condições naturais de vida. Nossa tarefa primeira é opor-se ao seu “assalto” aos recursos e ao poder do país, única opção democrática e de justiça socioambiental possível. Mas, em fazendo isto, estamos dando uma dimensão planetária à luta de cidadania brasileira por democracia e sustentabilidade entre nós. Precisamos ter consciência que estamos fazendo uma tarefa universalizante contra os interesses privatistas dos grandes negócios, que nos vendem seu bem-estar competitivo e consumista, destrutivo ambientalmente e politicamente negador de direitos iguais para todo mundo. Se queremos outro modo de viver, sem discriminações e dominações, de bem com o bem comum Planeta que temos como um dom para todos e todas, resistir estrategicamente desde aqui e agora é a tarefa que se nos impõe.

Novamente, para organizações como o Ibase, que tem no DNA uma opção estratégica pela democracia substantiva, fundada em princípios e valores éticos da liberdade, igualdade, diversidade, solidariedade e participação, apostando tudo no poder instituinte e constituinte da cidadania, a situação exige coragem de resistir e ousadia de inovar na luta. Aceitar pragmaticamente tal realidade política não é uma opção. Mas não podemos ignorá-la. Por isto, precisamos urgentemente mudar e pensar grande, ou nos sobra acabar. Voltar às trincheirasde cidadania é, no meu ponto de vista, algo fundamental a fazer para recompor forças, tecer o tecido da cidadania, formular imaginários que inspirem e mobilizem, construir propostas concretas, para que nossa resistência tenha um horizonte de futuro. Temos que fazer isto mesmo em condições totalmente adversas, como os fundadores do Ibase, entre eles o Betinho, nos ensinaram. Sempre “outro mundo” é possível, outro Brasil é possível!

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