Diante das primeiras eleições em que está valendo a Lei da Ficha Limpa, o juiz de Direito Eleitoral do Maranhão Márlon Reis, um dos fundadores do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), a sociedade agora deve lutar pela reforma política. Confira a entrevista concedida à Revista Família Cristã.
Qual sua avaliação do processo eleitoral brasileiro?
Márlon Reis – O nosso sistema eleitoral está comprometido pela falta de transparência. Peca por não dar ao eleitor uma ideia clara da forma como ele vota para o Parlamento. Ninguém entende nosso sistema caótico que não permite ao eleitor ter uma clara noção da consequências do voto. Isso faz o voto outorgado a um candidato beneficiar outro, muitas vezes indesejado. Um exemplo disso é o que ocorreu na última eleição em que um artista popular foi usado para propiciar a eleição de um político tradicional que passava por desgaste público.
A obscuridade também afeta o modelo de financiamento. Ninguém sabe quem doa e quanto doa. Os candidatos não são obrigados a revelar durante a campanha de onde está vindo o dinheiro que a sustenta. Isso é sério. Viola a Constituição e os compromissos internacionais do Brasil em matéria de Direitos Humanos. Além disso, não há limites para as doações e muitas empresas participam do processo como forma de participar de licitações fraudulentas no futuro.
Esse processo é o mais democrático?
Márlon Reis – Não o suficiente. Não há democracia plena sem transparência. Há dezenas de sistemas eleitorais diferentes no mundo e o nosso é um dos mais obscuros. Mas não estou certo de que alguns exemplos de outros países nos sirvam. O voto distrital, por exemplo, é indesejável. Ele reduz o nível do debate e transforma parlamentares em agentes de defesa de interesses microrregionais. Por outro lado, torna possível a supressão da oposição, pois é um sistema baseado no critério “o vencedor ganha tudo”. A oposição, mesmo com uma votação imensa, pode ficar com uma representação ínfima.
E o financiamento público de campanha, como fica?
Márlon Reis – Defendo o financiamento social das campanhas eleitorais. O Poder Público deve dar suporte às candidaturas, pois assegura independência aos mandatários e torna possível a eleição dos menos privilegiados. Mas discordo de que isso deva se basear nos votos obtidos nas últimas votações. Melhor seria deixar que cada eleitor, por iniciativa própria, apontasse o candidato a ser beneficiado. As empresas, por outro lado, não devem fazer doações, pois visam o lucro, o que nada tem a ver com os valores em disputa nas eleições.
Qual é o papel dos partidos quanto à seleção dos candidatos?
Márlon Reis – Os partidos são peças-chave na democracia. Formam os quadros políticos que comporão os governos. A vida partidária, quando saudável, é uma escola de democracia e ensina o exercício da persuasão, do convencimento e da tolerância com o pensamento divergente. Por outro lado, eles têm obrigação de selecionar os melhores preparados ética, política e tecnicamente. Entretanto, atualmente eles passam por um desgaste, fruto do descompromisso da maioria das agremiações em relação aos valores fundamentais que deveriam nortear suas atividades.
Pode-se dizer que o País ainda tem pouca experiência em processos eleitorais, pois só em 1988 voltou a eleger diretamente seus representantes?
Márlon Reis – A ditadura militar é a culpada pela construção de uma cultura cívica de baixa densidade. Mas, com o tempo, o nível de compreensão da sociedade em relação à importância da política e da democracia tem evoluído. Isso se revela no grande número de pessoas e organizações engajadas na luta pela transparência e por melhores governos. Estamos melhorando e só não podemos parar. Temos uma Constituição e um compromisso com a paz.
O que motiva a trabalhar por um melhor processo eleitoral?
Márlon Reis – Sempre fui preocupado com as questões que afligem a democracia. Desde cedo, participo de movimentos estudantis. Na universidade, fiz parte do Diretório Central dos Estudantes. Vi como cidadão muitas coisas tristes ligadas à corrupção do voto. Certa vez, testemunhei uma fila imensa com pessoas que esperavam sua vez para receber R$ 5 de um candidato a deputado federal. Fatos como esses me estimularam a tentar fazer algo pelo país.
Quais foram as dificuldades para validar a Lei da Ficha Limpa?
Márlon Reis – A proposta já nasceu democrática e foi debatida por meses pela sociedade civil. Inicialmente, pensávamos que o maior problema seria a aprovação pelo Congresso. Não foi, pois o Parlamento estava aberto ao diálogo. Discutimos alguns aprimoramentos e obtivemos a aprovação nas duas Casas. O desafio foi superar o conservadorismo do Poder Judiciário. Forças poderosas ameaçaram a lei, que quase teve sua essência desrespeitada. Felizmente, prevaleceu o bom senso.
A articulação e a mobilização sociais tiveram peso nessa conquista?
Márlon Reis – A iniciativa popular foi fundamental. A Igreja Católica também inspirou a mobilização e o sentido ético da iniciativa, sendo a maior responsável pela coleta de assinaturas. Sem os católicos, não teríamos aprovado a lei.
Ela tem sido um instrumento de conscientização?
Márlon Reis – Sim, seus fatores mais decisivos dizem respeito à educação e à mobilização da sociedade para a construção de eleições mais justas. Hoje o passado dos candidatos não é mais tido como irrelevante e ingressou nas discussões e na propaganda eleitoral. Todos querem se apresentar como pessoas de passado limpo. Essa é a melhor parte da conquista: o início da edificação de novos valores cívicos.
Como fiscalizar a corrupção eleitoral?
Márlon Reis – O controle institucional e social é o meio para enfrentar o mal. As instituições públicas devem ter um rigoroso controle. A sociedade deve se engajar mais nos assuntos do Poder Público, para fiscalizá-lo. Em todos os casos, a preocupação deve ser com a transparência.
Depois da lei 9.840 e da Ficha Limpa, o que busca o MCCE?
Márlon Reis – A Reforma Política! O Congresso não fará mudanças sem pressão. A sociedade deve se organizar para corrigir as distorções que marcam o sistema eleitoral. Devemos reduzir os custos das campanhas e promover o controle social das finanças de campanha e a igualdade entre os candidatos. Outra luta é pela manutenção do sistema proporcional com a simplificação do voto e a inclusão da mulher no exercício dos mandatos.