É preciso ampliar a participação e o poder popular na política

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A Plataforma da Reforma Política conversou com o pesquisador do Núcleo de Solidariedade Técnica da UFRJ, Felipe Addor. Na entrevista, ele defende a construção das mudanças políticas através da mobilização popular e acredita que “precisamos criar novas formas de participação dos cidadãos na política”.

Addor que estuda participação política e poder popular na América Latina, afirma que Venezuela e Equador estão ensaiando, ainda que distintas entre si, novas propostas de democracia participativa que podem servir de laboratório para os outros países.

O pesquisador analisa também o Golpe de Estado sofrido por Fernando Lugo no Paraguai e enfatiza: “O debate vai além da questão de se os golpistas seguiram regras constitucionais ou não. Temos que discutir se achamos correto que uma pequena elite decida, sem qualquer tipo de consulta pública, questões tão fundamentais quanto a escolha dos nossos presidentes. Senão, estaremos apenas brincando de democracia”.

Durante a entrevista, Addor também reflete sobre o processo da Cúpula dos Povos e outras manifestações globais em curso. Para ele, é fundamental a construção desses espaços, mas “é preciso dar continuidade através de ações efetivas de articulação”.

Confira a entrevista.

De modo geral, qual o cenário de lutas dos movimentos sociais na América Latina em curso atualmente? Vivemos um momento de ascenso das lutas populares nesta região?

O período de ditaduras civil-militares em vários países latino-americanos representou uma ducha de água fria nos movimentos sociais. Levou a uma desmobilização não apenas dos militantes, pela repressão direta que sofreram, mas até mesmo das gerações seguintes, que apresentaram/apresentam grande apatia política, fruto dos efeitos da repressão. O Chile talvez seja um dos exemplos mais paradigmáticos em relação à politização dos jovens pré-ditadura e do distanciamento político da geração seguinte (que agora ressurge na luta dos estudantes).

Entretanto, mais recentemente, percebemos um refortalecimento de diversos movimentos sociais contra-hegemônicos que lutam por mudanças no sistema. Isso ocorre a partir do final da década de 1980 e início da de 90 em vários países: os indígenas no Equador; as revoltas populares que culminaram no movimento bolivariano na Venezuela, o movimento indígena boliviano. Interessante ver a relação desses levantes com a dinâmica econômica e política internacional. O fim do bloco socialista, enquanto proposta de alternativa ao capitalismo, ao mesmo tempo em que deixou muitas pessoas e movimentos desorientados, permitiu um aprofundamento do capitalismo internacional nesse países, o que se cristalizou na proposta neoliberal.

Os malefícios trazidos para a população foram tão grandes que, mesmo sem ter uma alternativa clara, o povo se uniu e foi às ruas protestar. Os impactos das políticas neoliberais acabaram tornando-se catalizadores de um movimento de revitalização das lutas populares, que culminou não apenas em movimentos sociais mais fortes, mas também em movimentos políticos que lograram, inclusive, tomar o poder em países como Venezuela (1999), Brasil (2003), Argentina (2003) Equador (2005), Bolívia (2006), Peru (2011). É claro que a participação dos movimentos sociais foi diferente em cada caso e a relação destes com os governos populares também, mas os presidentes eleitos tinham em comum o fato de apresentar uma proposta política alternativa ao que vigorava. Símbolo disso, são as assembleias constituintes convocadas em vários desses países para a formulação de um novo contrato social.

Você tem estudado os processos democráticos vividos por dois países latino-americanos que têm governos progressistas, Venezuela e Equador. Quais os principais espaços de democracia participativa que têm nesses países? O que eles inauguram de novidade neste aspecto?

Embora os dois países estejam lutando pela construção de um novo sistema democrático, mais participativo, inclusivo e efetivamente democrático, eles traçam caminhos diferentes; o que é um benefício para os que defendem a causa, já que teremos duas experiências diferentes com as quais podemos aprender. O governo Hugo Chávez foi mais experimentalista na sua construção. Começou por fortalecer experiências locais autônomas de participação pré-existentes que tinham diferentes focos: habitação, saneamento, saúde.

Em seguida, lançou uma série de programas governamentais de atendimentos aos direitos sociais da população que tinham como base estruturante a organização das comunidades. Foi a partir daí que o governo deu sua cartada chave: a formação dos Conselhos Comunais, que hoje são a principal ferramenta de democracia participativa no país.

A Venezuela vem construindo uma nova estrutura de sistema democrático (Conselhos Comunais, Comunas) que se baseia na atuação voluntária dos cidadãos que identificam seus problemas, definem suas prioridades e executam os projetos com os recursos públicos. A estrutura antiga (de prefeituras e governos estaduais) diminui sua importância e deverá servir, no longo prazo, apenas para dar apoio a esse novo poder popular. Vale destacar a substituição do uso do conceito de representante para o de vocero, que tem a voz de seus representados, mas de forma alguma pode decidir por eles sem prestar-lhes contas.

No Equador, a grande inovação participativa deu-se antes de Rafael Corrêa, com os governos indígenas do Pachakutik, que além de promover uma inclusão política, teve importante atuação na luta pelos direitos civis e sociais dos povos originários e dos grupos excluídos. Essa prática, iniciada na década de 1990, foi aplicada por vários governos locais e regionais. O governo Rafael Corrêa, embora tenha sérios conflitos com  organizações indígenas, inspirou-se em algumas dessas experiências, com destaque para Cotacachi, e implantou leis que obrigam os governos municipais a implantar espaços de tomada de decisão popular, como assembleias municipais e orçamentos participativos. Entretanto, a proposta torna-se arriscada quando se deseja implantar de cima pra baixo, sem um base de mobilização popular, e homogeneizar esses espaços de democracia participativa. A proposta ainda é recente (2011), mas certamente enfrentará dificuldades pela falta de legitimidade entre os governantes locais e de uma população que a carregue nos braços.

Certamente, são experiências que, ao menos, buscam diminuir a perda de legitimidade da suposta democracia em que vivemos, e tem em comum o fato de promoverem uma transformação política a partir da ampliação dos direitos políticos, civis e sociais.

Ainda no continente latino-americano, recentemente, Fernando Lugo foi vítima de um Golpe de Estado, principalmente por ter construído um governo progressista no Paraguai. Você concorda com essa afirmação? Em sua análise, o que motivou o golpe?

O Golpe de Estado no Paraguai (outro nome não pode ter) é apenas uma prova do quão hipócrita é a “democracia” reinante nos países latino-americanos. É democrático (isto é, o povo governa) um país onde um presidente eleito por mais de 700 mil votos, com uma aprovação de 45% (dois meses antes do golpe; um mês depois do golpe, a aprovação era de 58%), é retirado de seu cargo em 48 horas por nada mais que 115 cidadãos (76 deputados e 39 senadores), negando o princípio básico da democracia de respeito à decisão dos eleitores?

O debate vai além da questão de se os golpistas seguiram regras constitucionais ou não. Temos que discutir se achamos correto que uma pequena elite decida, sem qualquer tipo de consulta pública, questões tão fundamentais quanto a escolha dos nossos presidentes. Senão, estaremos apenas brincando de democracia. Vale lembrar que a mesma regra funciona no nosso país e que não foram poucos os rumores de que políticos oposicionistas queriam tirar o Lula do poder nos seus primeiros momentos.

Aí, vale a referência à Venezuela, um país que a imprensa e as elites insistem em chamar de não-democrático mas que deu uma aula de democracia no mundo todo quando, em 2004, realizou um referendo revocatório do presidente Chávez; ou seja, na constituição venezuelana, para se impedir um presidente é preciso consultar a população inteira, e não apenas um punhado de políticos conservadores e golpistas (Chávez foi mantido no poder com 59% dos votos). Será que nossa democracia é democrática?

Quanto à saída de Lugo, o argumento de que o principal motivo foi a morte de 17 pessoas em um conflito entre camponeses e policiais chega a ser tragicômico quando sabemos que o deputado que propôs a deposição é do Partido Colorado, o mesmo partido do ditador Alfredo Stroessner, em cuja ditadura foram mortas milhares e milhares de pessoas. Certamente, o que motivou o golpe foi o desejo de conter um governo progressista e o medo de uma vitória da corrente de Lugo nas eleições presidenciais que ocorreriam dali a dez meses. Como imagem do que é o parlamento paraguaio: havia sido a única instituição que não havia aprovado a entrada da Venezuela no Mercosul em função das posturas políticas de Chávez .

Em escala global, o Rio de Janeiro sediou recentemente a Cúpula dos Povos, que reuniu ativistas, militantes sociais e entidades de todo o mundo. Qual a importância e quais os principais legados de um espaço como a Cúpula?

É fundamental haver a construção desses espaços de encontro de pessoas, grupos, movimentos que sabem que o caminho que a sociedade está traçando não vai levar a um lugar bonito. Tive a oportunidade de organizar atividades e de participar de muitas outras ao longo da Cúpula, e acho o espaço muito rico. Aprendemos e solidarizamo-nos com as diversas lutas de trabalhadores, de pescadores, de sem-terra, de catadores. Identificamo-nos com os problemas em diferentes países, de todos os continentes.

Entretanto, acho que temos que ser mais ousados na nossa estratégia de luta. É preciso dar continuidade a esses espaços através de ações efetivas de articulação e continuidade; de consolidação de movimentos regionais, continentais, mundiais de luta, que sejam construídos cotidianamente, em cada esfera pública, em cada relação de trabalho. O sentimento que percebi em muitos participantes da Cúpula foi um certo desapontamento daquele espaço como um lugar efetivo de construção da mudança. Inclusive, a avaliação geral foi que o objetivo maior que era o de influenciar a Cúpula dos Políticos, a Rio+20, ficou longe de ser atingido. Sem embargo, deixo aqui minha impressão de que esses espaços são fundamentais, seja como espaço de fortalecimento da luta, seja como forma de sensibilização da sociedade.
 
Aqui no Brasil, os principais instrumentos de participação social têm sido as conferências e conselhos. Como você avalia a eficácia desses espaços em termos de participação social nas políticas públicas?

É inegável o avanço que esses espaços de participação política da sociedade representaram para nosso sistema. Entretanto, após 10 anos de aprofundamento da participação, percebemos que precisamos ir mais longe, caso contrário há um grande risco de esses conselhos e conferências, em lugar de transformarem o sistema democrático representativo, sejam transformados por este, tornando-se cada vez mais hierárquicos, menos representativos da sociedade e com pouca capacidade efetiva de interferência nas políticas públicas.

Os espaços da democracia participativa, para além de permitir aos cidadãos maior poder de definir as políticas governamentais, possuem uma importante função de educação, de formação política, como já dizia Rousseau no século XVIII. Mas, para isso, esses espaços necessariamente precisam ser deliberativos, e realmente democráticos, permitindo os participantes não apenas escolher entre opções dadas em assuntos pré-definidos, mas definir a agenda pública.

Uma das principais reivindicações da sociedade – que se acentua neste período eleitoral – é a Reforma Política, mas que se arrasta no Congresso Nacional. Que mudanças centrais você defende no sistema político brasileiro?

A luta pela Reforma Política, nos termos que defende a Plataforma, é um dos principais desafios para que o sistema político brasileiro possa voltar a traçar (se é que já o fez algum dia) um caminho em direção a uma efetiva democracia, a uma soberania do povo. Sem entrar nos procedimentos, creio que as mudanças têm que atacar duas principais enfermidades da nossa democracia.

A primeira é a da representação. A população não se sente representada pelos seus representantes. E o problema não é que ela não saiba votar, como alguns acusam. Mas de um modelo representativo que afasta o representante do representado logo após sua escolha. Não permite que os eleitores avaliem cotidianamente sua atuação e nem influam nas suas posições políticas ao longo do seu mandato. O eleito não tem que prestar contas sobre suas ações ao que os colocaram lá. O único e distante momento de avaliar a atuação do político são as eleições, a cada quatro anos. Esse distanciamento leva a uma completa apatia política, reforçando uma elite política que domina o poder, e consolida uma tirania das minorias, como conceituam alguns autores.

A segunda é a da participação. A eleição como método único de participação política já se mostrou um fracasso. Necessitamos criar novas formas de participação. Os conselhos e conferências já são um avanço, mas é preciso massificar, cotidianizar, levar para cada cidade, cada bairro, cada comunidade. E cada vez mais dar poder de decisão a essas esferas públicas.

É preciso criar espaços onde o povo possa decidir seu próprio destino; como diz Moroni, é preciso fazer o poder chegar ao povo. Se, somado a isso, conseguirmos promover mais momentos nacionais de participação generalizada, como os referendos e plebiscitos previstos em nossa Constituição, teremos as bases para iniciar um processo de formação política da nossa população que pode, talvez, criar e difundir a cultura política necessária para o funcionamento de qualquer democracia. Até lá, seguiremos sobrevivendo nessa democracia de fachada, nessa falsa soberania, onde a população finge que manda o os políticos fingem (mal) que obedecem.

 

Entrevista realizada por Paulo Victor Melo
Fotos: Arquivo Felipe Addor e internet

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