Jaime Amparo Alves: ” A morte negra é morte produzida, é necropolítica”

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Em entrevista à Radioagência NP, do grupo Brasil de Fato, Jaime Amparo Alves, doutor em Antropologia e Pesquisador do Departamento de Estudos Africanos e Afro-Americanos da Universidade do Texas (EUA), interpreta as recentes mobilizações como um indicativo de que é possível uma reaproximação das entidades do movimento negro, fragmentado com a aprovação de um Estatuto da Igualdade Racial “esvaziado”.

 

“A esquerda brasileira é esquizofrênica ao esperar que se resolva o problema de classe para que um dia a questão racial seja, enfim, posta na mesa de debates”, analisa o antropólogo. “Eu descobri isso quando vi minha mãe envelhecendo na cozinha dos companheiros revolucionários”. Entre outras análises, ele vê São Paulo “como uma necropolis que ambienta nas relações sociais e nas políticas governamentais as práticas genocidas anti-negro”.

 

 

A última mobilização nacional do movimento negro foi em torno do Estatuto da Igualdade Racial. Porque houve fragmentação depois da “aprovação”?

 

O Estatuto da Igualdade Racial já nasceu morto. Se tem algo no Brasil que exemplifica o impasse político para uma agenda negra revolucionária, é o Estatuto. Ele serviu como esvaziamento político-ideológico e colocou em lados opostos lideranças negras com contribuições históricas contra o racismo. De um lado, aqueles vislumbrados com as migalhas políticas acenadas pelo Petismo. De outro, aqueles que entendem a luta negra para além das concessões estatais. O Estatuto mostrou mais uma vez as artimanhas do racismo brasileiro: ele opera a partir da despolitização da categoria “raça” e da falsa ideia de que é preciso substituir as ruas pelos gabinetes em Brasília. O que se viu foram lideranças com o pires nas mãos negociando cada exigência ao ponto de, no fim, o lema ser “mais vale um estatuto vazio na mão do que um perfeito engavetado”. As dificuldades em torno de uma unidade programática na militância põem um desafio à construção da agenda radical negra. Eu acho que um dos impasses é reconhecer ou não a natureza anti-negro do Estado brasileiro, em particular, e do modelo capitalista em geral. Se para as organizações negras radicais os terrenos estão bem demarcados, me parece que falta rumo a outras, e olha que estou consciente das implicações políticas de uma crítica pública às organizações negras no contexto do racismo anti-negro brasileiro. Se negras e negros são “os últimos da fila depois de ninguém”, é deste lugar social que pode nascer um projeto radical em tempos de dystopia.  A pergunta é se a aprovação do Estatuto e a constitucionalidade das cotas pelo STF vão esfriar ou dar novo gás à agenda negra. Mais do que nunca, a gente precisa de uma radicalidade negra que recupere a crítica ao capitalismo racial e ao Estado como disposições anti-negras, das quais não podem surgir transformações sociais. Onde o movimento negro se posiciona: no dilema revolução ou reforma?

 

 

Considerando as composições políticas, ainda há possibilidades de unidade nas bandeiras do movimento negro?

 

Acredito que há possibilidade de unidade e acredito que esta unidade se forja nas ruas. Aqui está o que eu penso: o racismo anti-negro cria as condições materiais para a luta negra. Veja o exemplo da campanha contra o genocídio negro, encampada por dezenas de organizações negras em São Paulo. A morte negra aparece aqui como o ‘lugar’ histórico, permanente, estrutural de onde forjamos uma identidade em movimento. Não foi a morte de Robson Silveira da Luz, em 1978, e os atos contínuos de discriminação sofrida por jovens negros na cidade que deram origem ao MNU? Com isso quero dizer que, irônica e paradoxalmente, o sofrimento social negro traz consigo as sementes revolucionárias porque não nos resta outra opção a não ser resistir enquanto grupo organizado. Se a dominação racial no Brasil opera a partir do esvaziamento político da categoria “raça”, os encontros diários de negras e negros com as tecnologias de dominação racial fazem surgir uma identidade explosiva, forjada na dor e na raiva. Ai está a experiência comum que ultrapassa as diferenças políticas entre as organizações negras e cria o combustível para a batalha política.

 

 

Por que há tanta resistência em enxergar o racismo como problema estrutural, mesmo dentro da esquerda?

 

Sua pergunta nos obriga a voltar à questão anterior porque de certa forma o Estatuto visibiliza bem essa esquizofrenia da esquerda em entender a especificidade da condição negra. Eu acho que o debate empobrece quando as respostas que recebemos às nossas criticas à esquerda é a de que nós negros e negras fragmentamos a luta, como se fôssemos partidários do DEM ou do PSDB. Nós pedimos aos companheiros e companheiras das esquerdas: se quiserem ser radicais/revolucionários, não nos peçam para ter paciência porque no contexto da luta pela sobrevivência negra, ter paciência é um privilégio branco.

 

Não podemos esperar que se resolva o problema de classe para que um dia a questão racial seja enfim posta na mesa de debates. Não! Não há negociação se a esquerda “progressista” se recusa a entender como a categoria raça informa a maneira como a opressão de classe é experienciada. É a condição negra, o lugar do não-lugar, que sintetiza o que o feminismo radical negro tem chamado de “matriz da dominação” no mundo contemporâneo. Eu acho que a dificuldade da esquerda em entender o racismo reside na recusa em entender o que representou o trauma histórico da travessia do Atlântico negro.

 

O militante radical/revolucionário branco encontra os limites da práxis revolucionária exatamente quando confrontado com a sua própria identidade. Eu descobri isso quando vi minha mãe envelhecendo na cozinha dos companheiros revolucionários. Estamos falando de um trauma histórico que tem na cor da pele negra as marcas de todos os horrores de um passado que se mantém entre nós. As feridas abertas com a travessia do Atlântico ainda não cicatrizaram e não cicatrizarão tão cedo. Só quem é negro entende o que estou falando em termos de dor física e psíquica. Ou a esquerda brasileira entende isso ou continuará recolhendo os cacos do que sobrou do seu percurso de classe média branca, universitária. O conceito abstrato e universalista de esquerda não convence nem a mim nem aos meus amigos da quebrada.

 

 

Qual o significado político da ocupação do Shopping Higienópolis, em fevereiro de 2012, visto que cerca de 30 organizações participaram do ato?

 

A ocupação do Shopping Higienópolis tem um simbolismo muito importante. Primeiro, pelo próprio significado que a palavra Higienópolis encerra. Essa área onde o shopping está plantado tem também um peso histórico muito grande porque ela nasceu como parte da Cidade Nova, um projeto urbanístico que visava reestruturar o espaço urbano no final do século XIX, quando a elite cafeicultora dividiu a cidade em duas, varrendo os bairros predominantemente negros. A nova cidade não poderia comportar os territórios negros das áreas adjacentes do centro porque o corpo negro representava um obstáculo ao projeto de modernidade capitalista que São Paulo copiava da Europa. Ao ocupar o Shopping Higienópolis, estamos deixando a elite paulistana nua, assim como deixamos com o churrasco da “gente diferenciada”.

 

Nossas elites têm uma capacidade impressionante de reescrever a história e se configurar como progressista nas colunas dos jornalões, de maneira tal que famílias tradicionais como a Matarazzo, ou a Mesquita – para lembrar de duas – aparecem como vanguarda política na boca de alguns. O que Andrea Matarazzo fez como sub-prefeito da Sé e o que Kassab fez na cidade foi apenas reatualizar esse modelo de higienização social que está no nascedouro de São Paulo. Eu tenho sugerido o termo “espacialidade macabra” para descrever a cidade de São Paulo. Sugiro que a gente leia/entenda a cidade como uma necropolis que ambienta nas relações sociais e nas políticas governamentais as práticas genocidas anti-negro. Ao ocupar o Shopping Higienópolis, denunciamos as políticas programadas da morte negra, exigimos o nosso direito à cidade e mandamos um recado bem direto para a elite paulistana: “vocês estão construindo uma cidade muito perigosa. Qual a estratégia de luta para aqueles deserdados da cidade neoliberal? Um dia a miséria cansa, cuidado!”

 

 

O que configura uma situação de genocídio?

 

Esta é uma pergunta imprescindível. O movimento negro tem caracterizado como genocídio todas as políticas estatais que sistematicamente têm impactado negativamente na qualidade de vida da população negra. Se levarmos em conta o conceito de genocídio tal qual definido pela resolução de 9 de dezembro de 1948, da Assembléia Geral das Nações Unidas, o termo diz respeito a todo o ato que visa destruir, matar, limitar a reprodução física, cultural e social de um determinado grupo étnico-racial ou nacional. A resolução vai ainda mais longe e configura como genocídio as políticas que visam infringir condições de vida que põem o grupo em desvantagem social em relação a outros grupos em determinada sociedade. 

 

Na discussão que se seguiu ao conceito da ONU, o foco saiu do resultado das ações para a intencionalidade, ou seja, ao se caracterizar um ato como genocídio haveria que se provar se o estado teve intenção de levar a cabo tais políticas ou não. A pergunta aqui é a seguinte: do ponto de vista das vítimas importa provar a intencionalidade de um estado genocida? O que dizer das políticas estatais que resultam em morte generalizada de um grupo social mesmo quando o estado não prescreve tais políticas de eliminação no seu estatuto jurídico? Na era dos direitos humanos, seria quase impossível provar a existência do genocídio contra determinados grupos sociais se tivermos que provar a intenção estatal. Agora, dizer que porque não há políticas oficiais de eliminação física baseadas em raça e etnicidade não haja praticas genocidas é uma outra história.

 

 

No caso do Brasil, que ações evidenciam que há um projeto genocida em curso, como o movimento negro vem denunciando?

 

O genocídio contra a população negra é tão evidente que somente o cinismo cruel da nossa elite intelectual poderia negar a sua existência. Não é apenas a violência homicida, com vitimização juvenil negra 1900% superior a branca em estados como Paraíba e Alagoas, que caracteriza o genocídio brasileiro. São também as más condições de vida, as políticas de limpeza urbana com os novos desabrigados como nos casos de Pinheirinho e a Favela do Moinho em São Paulo. Ou ainda, a hedionda ação na chamada “Cracolândia”, para não falar do sistemático assassinato de pessoas em situação de rua e a política de encarceramento em massa. Há um tipo de morte que não é o resultado do processo natural de nascer, crescer e morrer. A morte negra é morte produzida, é necropolítica.

 

Quantos pessoas negras precisam morrer para que o massacre seja considerado genocídio? Como fazer legível aos olhos internacionais a economia do massacre que transforma as cidades brasileiras em campos de guerra e a experiência negra urbana em tragédia programada? Ainda assim, esbarramos nas dificuldades legais de levar o Estado brasileiro ao banco dos réus. É preciso que se diga, no entanto, que essa não é uma dificuldade apenas nossa. Ainda em 1950 um grupo de intelectuais negros estadunidenses protocolou uma petição na ONU denunciando os Estados Unidos pelo genocídio da população negra daquele país. Você pode adivinhar qual o resultado da petição, certo? Se a ONU é um organismo internacional em que quem tem poder de voto e de veto são os super-poderes implicados eles mesmos na ordem genocida, quem vai condená-los? Quem vigia os vigias?

 

 

Os autos de “resistência seguida de morte” significam “licença para matar”?

 

Os autos de resistência ou resistência seguida de morte são não apenas licença para matar, mas elas também sintetizam o que eu tenho chamado de antropofagia racial brasileira. Se no mito fundacional da nação, os índios devoraram os primeiros colonizadores, aqui temos o inverso, esta é uma nação que devora o corpo negro. O corpo negro, tenho dito, representa um excesso de significados – criminoso, feio, perverso, malvado, sujo – que não lhe basta matar, é preciso negar qualquer possibilidade de humanidade. Quando a polícia aperta o gatilho, ela está “apenas” traduzindo os significados da subalternidade negra historicamente produzidos. A polícia mata em conformidade com um modelo de sociedade que em sua essência é anti-negra, afinal o policial não é um extraterrestre.

 

Ele é parte de uma sociedade inerentemente racista. A licença para matar reitera o modelo de relações raciais em que não basta tirar a vida. É preciso submeter o corpo negro a múltiplas mortes; morte simbólica, física, social. Percebo isso por exemplo no fato de que a policia não apenas tem licença para matar, mas o morto também é indiciado pelo Estado por resistir a prisão, o que o leitor pode muito bem chamar de morte dupla. Explico: a polícia mata, o delegado lavra um boletim de ocorrências baseado nos depoimentos dos policiais e o morto é caracterizado como ‘bandido’ e indiciado.  Isso nos remete, então, mais uma vez à especificidade da condição negra.

 

A esquerda acha que o problema da violência policial é um “defeito” da democracia brasileira, ou seja, melhorando a democracia, depurando as instituições e punindo os policiais haveria uma saída para o genocídio negro. O que afirmamos é precisamente o contrário: qual o lugar do corpo negro em um regime de cidadania racializado em que a morte negra não é exceção, mas a regra? Quais os limites de negociação com um estado democrático de direitos inerentemente anti-negro? Parece contradição, mas não é. Direitos humanos e morte negra caminham de mãos dadas no Brasil da democracia racial.

 

 

Faça uma consideração sobre o potencial de mobilização da juventude negra nos cursinhos comunitários. Eles podem ser espaços de resistência ao genocídio?

 

Aí reside a esperança. O que em outra oportunidade o Douglas Belchior chamou de “identidade explosiva” nasce aí na quebrada. Os cursinhos comunitários estão forjando uma nova subjetividade negra. São jovens que se sabem excluídos da cidade neoliberal, sabem quem são os seus algozes e se reconhecem como agentes de sua própria história. O que me chama atenção nos núcleos da Uneafro-Brasil, por exemplo, é a criatividade em fazer tanto com tão pouco e a perspicácia política dos seus membros. Estamos falando de uma juventude que cresceu nos anos 90, sob a égide de uma política neoliberal sanguinária. Encarceramento em massa, violência policial, desemprego, todos os tipos de vulnerabilidade social que configuram o genocídio negro tiveram nos governos do PSDB dos últimos vinte anos em São Paulo sua expressão máxima. Este foi o contexto em que surgiram as experiências dos pré-vestibulares comunitários em São Paulo e é essa a realidade que orienta a luta das organizações. O fato de serem essas organizações as principais articuladoras da campanha contra o genocídio negro e pelas ações afirmativas nas universidades estaduais paulistas mostra bem o potencial revolucionário de uma juventude excluída, para quem não resta outra opção a não ser resistir.

 

 

Qual o significado da decisão dos ministros do STF, que declararam constitucionais as cotas raciais?

 

A decisão foi fruto da luta do movimento negro que, em todos esses anos, pautou a questão racial mesmo com uma campanha generalizada da mídia contra as ações afirmativas. O STF apenas confirmou o que ativistas negros têm dito ao longo dos anos: a democracia racial é uma promessa, não uma realidade. Depois de mais de 120 anos da abolição da escravidão, onde estão os negros na hierarquia social brasileira? Continuam com o mesmo status subalterno do século XIX. A decisão do STF, como lembrou Aires Britto, abre caminho para o Brasil finalmente se reencontrar consigo mesmo. Acho que pela primeira vez uma intelectualidade branca que tem construído suas carreiras acadêmicas negando a existência do racismo vai ter que aceitar o peso social que a categoria raça tem na produção de desigualdades. Mas tem algo mais aqui: um desafio é que a militância negra não se dê por satisfeita e tome o momento presente como um novo impulso à luta pela emancipação plena. As cotas raciais são ponto de partida, não ponto de chegada.

 

 

Como se explica a postura das universidades paulistas, que imediatamente anunciaram que não promoverão mudanças em seus processos seletivos?

 

O fato das universidades estaduais paulistas USP, Unesp e Unicamp decidirem não adotar programas de ações afirmativas não nos surpreende. Essas instituições são disposições anti-negro em sua essência. Veja o que aconteceu recentemente no campus da Unesp Araraquara onde inscrições nas paredes associavam alunos africanos com animais. Na USP eu mesmo tive meus encontros racializados não apenas nas tentativas de ingresso na pós-graduação da instituição, como também quando da minha tentativa de visita a um certo Núcleo de Estudos da Violência, agora como pesquisador visitante. Inexplicavelmente, o professor branco se recusou a me receber. Essas experiências cotidianas não são fatos isolados. Elas mostram como o sentimento anti-negro está enraizado na burocracia e nas praticas cotidianas que desqualificam nossa gente para o ingresso na universidade.

 

O agravante aqui é que a universidade publica é financiada com o dinheiro dos impostos da coletividade. Ironicamente, são os mais pobres – aqueles sob os quais há uma desproporcional taxação dos impostos, haja vista que o ICMS é a fonte de recursos das estaduais paulistas – quem paga para os filhos da elite estudar. O menino pobre do Capão Redondo paga pelo curso de Medicina do “playboy” morador de Itaim Bibi. As universidades estaduais paulistas não irão adotar cotas raciais porque elas representam projetos político-ideológicos muito bem definidos. Mas isso não quer dizer que elas serão imbatíveis em seu cinismo cruel. A campanha do movimento negro em São Paulo pelas ações afirmativas tem agora na decisão do STF um combustível a mais.

 

Colocar a militância na rua e deixar a USP, por exemplo, nua perante o país, é uma meta. A USP não pode continuar sendo um instrumento perverso de reprodução das desigualdades raciais no país. Sua comunidade acadêmica precisa e deve ser envergonhada não apenas no país, mas também no exterior. Uma estratégia é mapearmos todas as universidades internacionais com as quais USP, Unesp e Unicamp possuem convenio e acionar os seus parceiros para que não celebrem acordos com as universidades enquanto elas insistirem em investir na supremacia branca.

 

 

 

 

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