3ª edição da campanha “Quero Me Ver No Poder” reforça luta contra a sub-representação na política brasileira

A iniciativa da Plataforma dos Movimentos Sociais por Outro Sistema Político tem como objetivo conscientizar sobre a importância de votar em grupos historicamente excluídos, promovendo uma política mais plural e representativa


Combater a sub-representação de grupos historicamente excluídos dos espaços de poder da política institucional no Brasil. Este é o objetivo da campanha “Quero Me Ver No Poder” (QMVNP), que chega a sua 3ª edição nessas eleições municipais de 2024. Organizada pela Plataforma dos Movimentos Sociais por Outro Sistema Político, a agenda de incidência objetiva dar visibilidade a mulheres negras, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQIAPN+ e outros grupos sub representados, além de abordar temas como violência política e distribuição de fundos partidários.

Há 20 anos, a Plataforma luta por uma democracia mais inclusiva, questionando as estruturas políticas que perpetuam desigualdades. A campanha QMVNP, lançada pela primeira vez em 2020, intensificou esse debate durante as eleições, engajando mais de 150 organizações da sociedade civil.

Compreender a importância do impacto das eleições municipais é crucial para a transformação sociopolítica do Brasil. Cleusa Aparecida da Silva, que representa a Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) no Grupo de Referência (GR) da Plataforma, aponta que as cidades refletem o cenário político do país. “É fundamental impulsionar e fortalecer a luta em defesa da melhoria das condições de vida dos munícipes, com destaque para as periferias, áreas de risco, favelas e ocupações urbanas e rurais, onde majoritariamente vivem pretos e pobres da classe trabalhadora” explica.

A campanha é compreendida como uma ferramenta transformadora do imaginário social sobre política por Makota Celinha Gonçalves, também integrante do GR da Plataforma e coordenadora-geral do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileiro (Cenarab). “Vejo a campanha de forma bastante positiva, no sentido de criarmos imagens positivas das minorias políticas, e assim conscientizarmos a população sobre a importância do voto consciente e responsável. Afinal, a política decide nossos destinos e vida”, enfatiza.

Sub-representação política nos municípios brasileiros

As eleições de 2024 contam com o maior número de candidaturas autodeclaradas negras das últimas três eleições, e pela segunda vez superam o número de candidaturas autodeclaradas brancas.  De acordo com informações divulgadas pelo TSE, 455 mil pedidos de candidaturas foram registrados em todo o país. Os dados revelam que 52% desses candidatos se declararam negros (41% pardos e 11% pretos). Enquanto 45% se declararam brancos. Candidaturas declaradas como quilombolas representam 1%, e indígenas correspondem a 0,5% do total. No que diz respeito ao gênero, os homens continuam a dominar a disputa, representando 66% dos candidatos, enquanto as mulheres compõem os 34% restantes.

Em 2024 também houve um considerável aumento no número de candidaturas LGBTQIAPN+. De acordo com o TSE, são 3.395 postulantes destas comunidades, dos quais 961 são de pessoas transgêneros. Em números gerais, acerca da orientação sexual, entre os candidatos, 68,41% optaram por não declarar, e entre os declarantes, 98,27% se identificaram como heterossexuais. Esta foi a primeira vez que o TSE contabilizou oficialmente esses dados. 

O aumento de candidaturas de grupos sub-representados na política é um avanço importante, mas ainda não se traduz necessariamente em sucesso nas urnas, como mostram os resultados das últimas eleições municipais. Violência Política, falta de financiamento, racismo, misoginia e LGBTfobia, são apenas alguns dos obstáculos que se apresentam para que estes grupos tenham sucesso no pleito. De acordo com o TSE, em 2020, apenas 40% dos candidatos autodeclarados negros conseguiram se eleger. No mesmo ano, apenas 48 representantes da comunidade LGBTQIA+ conquistaram prefeituras ou vereança no Brasil. Entre os candidatos autodeclarados indígenas, apenas 9% alcançaram posições na gestão municipal, totalizando 181 eleitos. Quanto aos quilombolas, dos cerca de 500 que concorreram a prefeito e vereador, apenas 58 foram eleitos.

Esse cenário é agravado pela violência política de gênero e raça, que seguem como barreiras significativas à participação de mulheres, especialmente mulheres negras, nos espaços de poder. A Lei nº 14.192, sancionada em 2021, foi um marco no combate à violência política contra as mulheres, mas os desafios persistem. Segundo o relatório “Desigualdades de Gênero e Raça na Política Brasileira”, publicado em 2022 em parceria entre o Instituto Alziras e a Oxfam Brasil, os dados apontam que, entre 2016 e 2020, o número de mulheres eleitas cresceu de forma mínima, alcançando apenas 12,1% dos municípios brasileiros. Em termos de equidade racial, o crescimento foi maior, com um aumento de três pontos percentuais nas prefeituras lideradas por pessoas negras, subindo de 29,1% para 32,1%. No entanto, considerando que mais da metade da população brasileira é negra e as mulheres negras compõem uma parcela significativa dessa população, a sub-representação é gritante. Elas ocupam apenas 6% dos assentos nas câmaras de vereadores, o que demonstra o impacto duradouro do racismo patriarcal e da violência estrutural. Ainda mais preocupante é que 57% dos municípios brasileiros não têm nenhuma vereadora negra, e em 978 cidades, não há mulheres eleitas nas câmaras municipais.

Além de enfrentarem o sexismo, as mulheres negras na política lidam também com o racismo institucional, que agrava ainda mais a sua sub-representação nos espaços de poder. A falta de financiamento adequado é um dos principais obstáculos. Ainda segundo a pesquisa, a baixa presença de mulheres negras na política tem uma conexão direta com o financiamento de campanhas. Enquanto muitas candidatas negras não têm bens para declarar, candidatos mais ricos, predominantemente brancos, dispõem de melhores condições financeiras para apoiar suas campanhas, o que lhes confere uma vantagem significativa na corrida eleitoral. Esse desnível econômico limita drasticamente a capacidade de competição das mulheres negras, perpetuando as desigualdades nos resultados eleitorais.

Convivemos ainda com o aumento do fundamentalismo religioso. O número de candidatos a vereança e prefeitura que usaram explicitamente uma identidade religiosa em seus nomes de campanha cresceu cerca de 225% entre 2000 e 2024. Conforme o levantamento do Instituto de Pesquisa e Reputação de Imagem (IPRI), as eleições municipais de 2020 tiveram o recorde de 9.196 candidaturas religiosas, de um total de 557.678 candidatos(as). Em 2024, os termos religiosos mais comuns nos nomes dos candidatos são “pastor” (2.856), “irmão” (1.777) e “pastora” (862), representando mais de 91% das candidaturas religiosas identificadas. Termos associados as religiões de matriz africana, como “pai” (106) e “mãe” (81) são menos frequentes.

José Antonio Moroni, representante do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) no  GR da Plataforma, destaca a necessidade da pluralização nas posições administrativas do país. “A maioria das pessoas não se vê representada. Estamos falando especialmente das mulheres, mulheres negras, indígenas, LGBTQI+, juventudes periféricas. O objetivo é debater com a sociedade que não temos uma real democracia enquanto o povo não tiver acesso ao poder.”

Proposta de Emenda à Constituição 9/2023 (PEC da Anistia)

No último 15 de agosto foi aprovada pelo Senado – com a maioria dos votos-, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 9/2023, conhecida como PEC da Anistia. A proposta perdoa multas aplicadas a partidos que não cumpriram as cotas de financiamento para campanhas de mulheres e pessoas negras em eleições anteriores. Além disso, a PEC permite o refinanciamento de dívidas partidárias acumuladas nos últimos cinco anos, sem multas ou juros. O texto da PEC, relatado pelo senador Marcelo Castro (MDB-PI), exige que os recursos insuficientemente repassados a candidatos negros sejam aplicados nas próximas eleições.

Essa decisão atrasa a luta contra a sub-representação de mulheres e pessoas negras na política. Ao perdoar multas e permitir o refinanciamento de dívidas de partidos que não cumpriram as cotas de financiamento para esses grupos, a PEC enfraquece as medidas estabelecidas para promover maior proporcionalidade populacional nos espaços de decisão. A anistia pode desincentivar os partidos a respeitarem as cotas, já que não enfrentam consequências significativas por não cumprir as normas. Além de atrasar a efetiva redistribuição de recursos, perpetuando a desigualdade no acesso ao financiamento eleitoral.

“Ainda estamos sob fortes ataques da extrema-direita, do fascismo e do ódio. Se não formos responsáveis com nossas decisões políticas, corremos um sério risco de voltarmos à barbárie que se delineou com a ascensão de um governo com forte viés fascista”, alerta Makota Celinha.

Implicações da campanha “Quero Me Ver No Poder”

Diante deste cenário, é mais do que necessário lutar para que estes grupos sub-representados nos espaços de poder político, tenham condições e suporte para ocupar a política institucional, historicamente dominada por homens cis, brancos e heterossexuais. É para mudar este cenário que surge a campanha QMVNP.

“A campanha, assim como a Plataforma e outras organizações, contribuíram e muito para explicitar para a nossa sociedade, o quanto o nosso sistema de poder é racista, misógino, transfóbico e contra os pobres. Mas além de expor esta mazela, apresentamos propostas e mostramos que quando mulheres, mulheres negras, LGBTQI+, juventudes periféricas, entre outros, estão nos espaços de poder, o poder roda de outra forma, de forma mais coletiva, mais dialógica e principalmente mais respeitosa”, finaliza Moroni.

Vote em quem te representa! Queremos te ver no poder!