Em maio de 2016, Michel Temer (PMDB) tomou interinamente a Presidência da República do Brasil e, ato contínuo, extinguiu o Ministério da Cultura (MinC). A comunidade cultural reagiu de pronto, numa série de ocupações de edifícios do ministério Brasil afora, inclusive o histórico Palácio Gustavo Capanema, sede do MinC e da Funarte no Rio.
Homem-símbolo da cultura pop, Caetano Veloso cantou em show-protesto improvisado no Capanema, vestido de cocar indígena e ladeado pelo político carioca Marcelo Freixo (PSOL). A extinção do MinC acabou revogada e os prédios, desocupados.
Terceiro ministro a ocupar a pasta desde então, o cineasta João Batista Andrade (PPS) pediu demissão em 16 de junho passado, mas ainda ocupava o cargo na quinta-feira 20 de julho, quando a Presidência anunciou Sérgio Sá Leitão, um jornalista carioca identificado com o setor audiovisual, como quarto titular da pasta em 14 meses.
Por ora, os grupos culturais que se articularam à época da consolidação do golpe contra Dilma Rousseff (PT) trocaram a luta pelo não sucateamento do MinC por um movimento chamado 342 Agora, que prega a pressão popular pelos 342 votos de deputados federais necessários para abrir um processo de impeachment do impeachment.
No Leblon, o apartamento de Caetano e de sua esposa e empresária, Paula Lavigne, tem sido a central irradiadora de mobilização pelo “Fora Temer”. A romaria político-cultural harmoniza estrelas da Rede Globo, da MPB e do hip-hop, políticos como Randolfe Rodrigues e Alessandro Molon (ambos da Rede), o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa e coletivos de jovens que, um ano e dois meses atrás, ocupavam o MinC contra Temer e contra o desmonte (também) cultural do País.
A reacomodação de forças coloca lado a lado pesos pesados da Globo e remanescentes do coletivo Fora do Eixo, que surgiu em 2005 com um projeto de valorizar a cultura para além do eixo Rio-São Paulo e hoje se espalha entre outros apelidos (Mídia Ninja, Jornalistas Livres etc.) e eventualmente se aloca na Zona Sul carioca, na órbita do eixo Caetano-Fora Temer.
Estão empenhados em divulgar o 342 Agora nomes cujas biografias se confundem com a história recente e/ou remota da Globo, como Adriana Esteves, Camila Pitanga, Daniel Filho, Dennis Carvalho, Fábio Assunção, Fernanda Lima, Gloria Pires, Leticia Sabatella, Natália do Vale, Renata Sorrah, Tonico Pereira, Wagner Moura e dezenas de outros.
“A Globo respeita a opção de qualquer um de seus profissionais de aderir ou não a um movimento. É o que temos a declarar”, reage um comunicado da emissora ao pedido de esclarecimento sobre a presença maciça de globais no 342 Agora.
O rosto do ator Marcelo Serrado, figura carimbada das manifestações verde-amarelas do Fora Dilma, sintetiza a sobreposição de propósitos entre quem almeja “diretas já” (lema anterior dos shows coletivos promovidos pelo condomínio cultural) e um grupo de comunicação que articula a substituição indireta do paulista Temer pelo carioca Rodrigo Maia (DEM).
No lançamento do site 342 Agora, em 10 de julho, a porta-voz Paula Lavigne, ex-diretora de Maia em propaganda política do DEM, deu declarações de tom político à Rádio Gaúcha: “Não gostaria que o Lula voltasse. Acho que ele fez um bom governo, mas com todas essas questões de corrupção não creio que seria bom voltar”.
Sobre a reunião com Joaquim Barbosa, a que compareceram Fernanda Torres, Lázaro Ramos e Marisa Monte, disse: “Acho que ele seria uma solução maravilhosa”. À rádio, Paula disse defender eleições diretas por princípio, mas reconheceu que no seio do movimento há defensores (por enquanto anônimos) da troca indireta.
Cotado em conjunturas passadas como ministeriável da Cultura, o escritor Fernando Morais adere com ressalvas à mobilização. “Compartilho a campanha 342, o Fora Temer e se precisar o Fora Maia. Defendo diretas já e sustento que sem o Lula concorrendo a eleição será uma farsa”, afirma.
“A família Marinho e as Organizações Globo são inimigas do Brasil e dos brasileiros e assim devem ser tratadas. Puseram os golpistas no poder e descobriram que Temer não tem autoridade política ou moral para sustentar o projeto deles. O plano A dos Marinho não deu certo e tentam inventar outro bonifrate, esse rapaz do Rio conhecido no submundo da política pela alcunha de ‘Botafogo’. Não contem com o povo, não contem comigo”.
O tabuleiro cultural espelha e reflete a fragmentação da sociedade. Chico Buarque não está no 342, mas sua filha atriz Silvia Buarque, sim. Do mundo musical, aparecem nos vídeos caseiros de tecnologia ninja Arnaldo Antunes, Bebel Gilberto, Daniela Mercury, Fernanda Abreu, Martinho da Vila, Nando Reis, Paulo Ricardo, Rogério Flausino, Seu Jorge, Tico Santa Cruz, Vanessa da Mata e outros, num painel que mistura marineiros, petistas, (ex-)aecistas e gente do finado movimento anticorrupção Cansei.
Do rap, revezam-se em aparições Criolo, Emicida, Mano Brown, Rael e Rappin’ Hood.
Estão fora da campanha artistas com participação histórica nas lutas democráticas, mas mais próximos do ideário petista. “Por mim eu estaria, mas não me chamaram”, diz a cantora Beth Carvalho. É o caso também do global José de Abreu: “Não fui contatado. Talvez eu queime o movimento, politize, só pela presença”.
José de Abreu
Beth Carvalho e José de Abreu não foram convocados para a campanha que acomoda marineiros, petistas e (ex-) aecistas, sob as assas de Caetano (Foto: Renato Rocha Miranda/Globo)
O ator reflete sobre o aparente abandono da bandeira pró-MinC no momento presente: “Que adianta um Ministério da Cultura esvaziado, sem projeto e sem dinheiro? O golpista refez o ministério, mas cortou toda a dotação orçamentária. Na época do golpe as coisas estavam mais cruas e fechar o MinC foi uma agressão. Agora vemos que, mesmo aberto, está fechado”.
Representante da interface entre cultura e economia, o diretor do Itaú Cultural, Eduardo Saron, analisa os rumos:
“Infelizmente, o que vemos é o MinC sendo enfraquecido ano a ano. Agora chegamos a uma situação insustentável, de desconstrução da pasta. Seu orçamento já é irrisório, e o corte de 43% inviabilizará definitivamente o MinC a partir de agosto. Com 412 milhões de reais não se conseguirá arcar com o custeio da administração direta e indireta. Podemos até ter um Ministério da Cultura de direito, mas não de fato”.
Fernando Morais critica a neutralização silenciosa do MinC pelo plano Temer: “Li no Estadão a opinião do dono da rede Cultura, o livreiro Pedro Herz, afirmando que o Brasil prescinde de um ministério da Cultura. Herz tem razão. Rico, ele não precisa mesmo. O mercado e o dinheiro resolvem tudo. Ele pode mandar os filhos e netos estudarem nas melhores escolas do mundo. Pobre, não”.
Enquanto a mídia hegemônica ventilava nomes bizarros como possíveis sucessores de João Batista Andrade, um comunicado enviado pelo MinC dois dias antes da indicação de Sá Leitão abstinha-se de comentar o 342 Agora e afetava normalidade institucional: “Na carta que entregou à Presidência, João Batista disse que não tinha interesse em ser efetivado, mas ficaria no ministério até que o próximo ministro fosse indicado. Ele continua trabalhando”.
O historiador Célio Turino interpreta a centralidade da Globo nos processos, também culturais, que levam às conservações e às quedas de presidentes. “No processo de construção cultural de uma hegemonia, tanto artística quanto industrial, quando ela prescinde de valores, prevalecem os setores hegemônicos, do mainstream”, diz o ex-integrante do MinC nas gestões de Gilberto Gil (outro ausente, por ora, do 342 Agora) e Juca Ferreira.
“Não vamos sair desse imbróglio enquanto não se der sentido a valores comunitários, de compartilhamento, de nossas ancestralidades e tradições. Se continuarmos insistindo no sentido pragmático da disputa, vai ser mais um Fora Temer como foi o Fora Dilma. Fora para quê? Essa foi a grande derrota, uma derrota cultural.”
Artistas
Na casa de Paulo Lavigne (à esq., ao fundo), posam para a selfie Fora Temer artistas antes desalinhados, como Leticia Sabatella e Marcelo Serrado (à esq. e à dir. do líder informal Caetano) Foto: Reprodução Instagram Leticia Sabatella
O professor da USP Dennis de Oliveira, que coordena o Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação, aponta outra ausência no dito debate cultural em “pausa democrática”. “Há um universo restrito da cultura que se preocupa apenas com o acesso aos bens culturais, enquanto outros entendem que todos têm o direito de se expressar. Os artistas famosos fazem parte do primeiro grupo”, afirma.
“O Fora do Eixo é um projeto interessante, sobretudo na visão diferenciada da gestão cultural que defende. Mas não está na periferia, nem a representa.”
Espécie de guru da contracultura à brasileira (e um ideólogo informal de coletivos jovens como o Fora do Eixo), o produtor cultural Cláudio Prado estabelece um diagnóstico positivo do momento: “O pus está saindo. É uma furunculose. O que está acontecendo é a cura. Não tem como avançar sem que tudo que está aparecendo apareça. Tenho visto muita gente tomando consciência”.
Se ele estiver certo, talvez Caetano ainda seja o rei da (contra)cultura brasileira. Se estiver errado, talvez a Globo colecione mais uma vitória como foram as resultantes das manifestações “espontâneas” de 2013, 2014, 2015, 2016…