Por Romi Bencke
Vassíli Grossman foi um jornalista soviético. Ele era correspondente durante a defesa de Stalingrado e da queda de Berlim, na II Guerra Mundial. Entre os livros que escreveu está Vida e Destino. A obra tem uma história curiosa. Ela foi confiscada pela KGB nos anos de 1960 e só foi publicado na década de 1980. O livro é o relato de um correspondente de guerra que acompanhou, do início ao fim, a Batalha de Stalingrado.
O autor narra sobre os campos de concentração, a vida nos campos de prisioneiros militares, os interesses dos altos comandos da guerra. De um lado, Hitler. E de outro, Stalin. Grossman capta, e talvez aí esteja a energia dramática da narrativa, a força da insensatez e da irracionalidade humanas. A cidade de Stalingrado já estava toda destruída. Não havia comida, o frio era intenso, mas, apesar disso, os soldados lutavam por casas que estavam parcialmente em pé. Deste livro tirei uma frase que carrego comigo desde quando o li. Ela é como um Salmo ou como um daqueles mantras que a gente sussurra continuamente para guardar fundo na memória e no coração o que não desejamos esquecer. A frase diz: “Quando o fascismo triunfa, o ser humano deixa de existir, restam apenas criaturas que sofrem modificações internas”.
Sobre esta modificação interna das criaturas humanas em contextos desumanizados é que tenho pensado bastante. O Brasil nunca teve um processo profundo de humanização. Os crimes contra seres humanos marcam nossa história. O genocídio indígena, a escravização das pessoas negras, os feminicídios, as contínuas e permanentes violações da Mãe Terra, as várias ditaduras que reprimem e assassinam seus opositores e opositoras, as mortes de deuses e deusas pela intolerância religiosa, as torturas e desaparecimentos políticos durante os anos da ditadura civil-militar.
Somos um país formado por criaturas modificadas que se alimentaram da dor e do sofrimento alheios. A capacidade de refletir e assumir a responsabilidade destas atitudes também é algo que nos falta. Ernst Bloch afirma que o grau de responsabilidade individual depende do poder de ação dos sujeitos. Isso significa que as classes e as elites dirigentes têm o dever de ser as primeiras a assumir suas responsabilidades. No entanto, tais elites se negam a qualquer responsabilização dos crimes, dos genocídios, das escravizações.
O sofismo cínico busca eliminar a possibilidade de algum peso de consciência. Nossa história de horror fica condenada a uma eterna repetição. No Brasil, um caminho que tende a ser utilizado para a expiação da culpa e da responsabilidade é o cristianismo, embora, importante ressaltar, a fé cristã se oriente pela responsabilização dos erros humanos. O pecado, que é a tentação eterna do ser humano, colocar-se no lugar de Deus e decidir sobre a vida e a morte, exige autorreflexão e transformação. Mas parece que o cristianismo e seus valores foram manipulados para aliviar qualquer possibilidade de responsabilização pelos inúmeros crimes contra a humanidade aqui praticados. Com isso, permanecemos como um país de criaturas com modificações internas.
Esse cristianismo distorcido, manipulado e instrumentalizado para os interesses das criaturas com modificações internas, é o que está presente hoje na política brasileira. Trata-se de um cristianismo fundamentalista aonde Deus é mero instrumento do mercado como ideal de Reino. Em obediência e reverência a este reino, valem todos os sacrifícios. Este é o triunfo dos fundamentalismos.
Quando vemos altas autoridades e “pessoas do bem” argumentando que é melhor perder algumas vidas para que a economia seja salva, podemos dizer que deixamos de existir. Esta também é a morte de Deus. É a repetição da cruz. Novamente, são algumas poucas as pessoas que ficarão sob os pés da cruz velando o Cristo que está se esvaindo em medo, dor e solidão. Estas pessoas são as mães que perderam seus filhos e filhas para o racismo estrutural, para as diferentes formas de violência, para as execuções extra judiciais, para a fome. Há bastante tempo chamamos a atenção para a relação simbiótica entre o fundamentalismo de mercado e o fundamentalismo religioso.
O COVID-19 expõe muito bem essa relação, quando vemos o Estado justificando o corte de gastos públicos e injetando dinheiro nas veias sedentas dos bancos, mesmo que isso vá significar a morte de muitos seres humanos. Esta relação está presente no negacionismo dos conhecimentos científicos e nas mentiras pseudo-religiosas usadas para ludibriar as pessoas e manter Deus escravizado a serviço do Mercado.
Estas são as homilias de uma religião que se abastece e se alimenta do sofrimento do outro. Outro dia, li um texto de Mike Davis com um título bem sugestivo: “A crise do coronavírus é um monstro alimentado pelo Capitalismo”. No texto, Davis chama a atenção que o novo coronavírus escancara a desigualdade de classes que alimenta o sistema capitalista. Ele cita o exemplo da indústria de asilos nos EUA que têm fins lucrativos. Estas clínicas atendem em torno de 1,5 milhões de pessoas idosas.
Segundo o autor, é um mercado altamente lucrativo, competitivo. O número de profissionais que trabalham nestas clínicas é sempre inferior ao que realmente seria necessário. O primeiro epicentro do coronavírus nos EUA foi, justamente, em uma dessas clínicas, localizada em um bairro periférico de Seattle. Entre os vários problemas apontados para entender a proliferação do vírus está o fato de que as pessoas que trabalham nesses locais, em função dos baixos salários, atuam em mais de uma clínica. Com isso, tornam-se, sem querer, potenciais transmissoras do COVID-19.
Um exemplo muito cotidiano do triunfo do fundamentalismo e de como nos tornamos criaturas modificadas. Agora, o que chama a atenção nisso tudo, é a dificuldade em nomear este monstro metamorfoseado de deus. Há uma resistência grande, inclusive entre as criaturas menos modificadas, em dizer que o nome deste monstro é capitalismo. Alguns até celebram o fato aparente de o novo coronavírus ter acabado com o neoliberalismo financeirizado.
Mas temem em falar o nome do onipotente capitalismo. O que vem depois disso tudo? Não sabemos. Para alguns, se inaugurará um mundo mais solidário. Para outros, a aposta pode ser que o novo coronavírus contribuirá para a tão sonhada higienização social: os que sobram e atrapalham o sistema serão eliminados. Ficarão apenas as pessoas “justas” e as produtivas. É a realização do Reino do Mercado. Uma sociedade mais totalitária, com maior controle, maior divisão de classes, mais hierarquias e novas fronteiras tende a ser um cenário possível. Este é o triunfo dos fundamentalismos.
E Jesus, nisso tudo? Ele é um ser, pregado na cruz, em agonia!
Romi Bencke, secretária-geral do CONIC, é teóloga e mestre em Ciências da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Em 2013, recebeu o Prêmio Direitos Humanos – a mais alta condecoração do Governo brasileiro a pessoas que se destacam na defesa, na promoção e no enfrentamento às violações dos Direitos Humanos no país.