Os desafios do pós-coronavírus

Por Antônio Augusto de Queiroz (*)

Este texto trata da crise do coronavírus e suas consequências, analisando, de um lado, os desafios imediatos de ordem sanitária, de saúde pública e de salvação de vidas, e, de outro, as consequências decorrentes dessa pandemia, que poderá ter efeitos devastadores sobre o País nas dimensões econômicas e sociais.

No primeiro aspecto, de enfrentamento à crise do coronavírus, as autoridades e os agentes econômicos e sociais ainda batem cabeça, apesar das medidas acertadas de isolamento social adotadas por governadores e prefeitos, que forçaram o governo, mesmo a contragosto do presidente da República, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional a adotarem medidas drásticas de enfrentamento à pandemia, inclusive com “orçamento de guerra” e liberdade para o Estado gastar sem limite no esforço de salvar vidas.

Apesar da liberdade de gasto – em vigor desde que o Congresso aprovou a decretação de calamidade pública na saúde e houve decisões do Tribunal de Contas da União (TCU) e do STF liberando o governo das amarras da Lei de Responsabilidade Fiscal – por razões diversas, especialmente pela resistência e inapetência do presidente da República, o governo federal tem sido lento na implementação das medidas necessárias, tanto em termos de compra de insumos e equipamentos para proteção da população e dos profissionais de saúde, passando por programas de preservação de emprego e renda, quanto na proteção às empresas ameaçadas de fechamento.

Nesta primeira fase da crise ficou evidente a falência do modelo neoliberal e a importância do Estado para coordenar os esforços e adotar medidas e ações imediatas para salvar vidas, empresas e empregos. Como muitas atividades produtivas estão paralisadas neste período agudo da crise e de isolamento social, coube ao Estado, cuja função é manter a paz social e combater os desequilíbrios regionais e de renda, garantir o funcionamento da economia, com empréstimos, programas e políticas públicas de distribuição de recursos a pessoas físicas e jurídicas.

Mesmo que todas essas medidas sejam bem-sucedidas, o pior da crise de saúde ainda está por vir. O aumento da demanda por internações hospitalares está longe do pico, que deve ocorrer nas próximas 3 ou 4 semanas, quando se terá ideia da capacidade do sistema de saúde brasileiro para o enfrentamento da crise. O fato de ainda possuirmos um sistema público e universal de saúde (SUS) está sendo e será determinante para reduzir o número de mortes, que certamente seria muito maior se dependêssemos, como outros países, apenas do sistema privado, cuja prioridade número 1 é a maximização do lucro.

Se neste ambiente de enfrentamento do coronavírus, que é de cooperação, com todos unidos para salvar vidas – a ponto de até liberais clássicos concordarem que o governo possa ter um “orçamento de guerra”, sem qualquer limite, para superar esse momento com o mínimo possível de óbitos – já se registram grandes perdas de vidas, de emprego, patrimônio e renda dos brasileiros, imagine o que poderá acontecer no segundo momento, o chamado pós-guerra, em que todos terão que contribuir para recuperar a economia e as finanças do Estado?

Na segunda fase, quando será apresentada a conta para pagamento das despesas realizadas durante o enfrentamento da pandemia, e na qual o governo não terá mais liberdade de gasto – pelo contrário, terá que recuperar receita e equilibrar as contas públicas – o sacrifício a ser exigido tende a ser grande, tanto de pessoas físicas quanto jurídicas, com risco não apenas de mais perda de emprego, renda e patrimônio, mas até de ameaça a direitos adquiridos, se a recuperação da economia e das receitas governamentais forem muito lentas. Não é pequeno o risco de que isso abra espaço para aventuras institucionais, como uma nova Constituinte, que jogue por terra o que ainda resta da Constituição Cidadã.

Além disso, o pós-crise ou pós-guerra, como se queira chamar, virá acompanhado de mudanças comportamentais importantes, que terão impacto na economia, na geração de emprego, de renda e de consumo. A tendência é que tanto as pessoas físicas, que estavam desprevenidas nessa crise, passem a se preocupar em poupar e ter reservas, e, portanto, gastem ou consumam menos, quanto as empresas e governos, que perceberam a importância da tecnologia nesse momento de crise, impulsionem investimentos em digitalização e automação, como forma de aumentar a produtividade, com redução de pessoal. O medo de uma nova pandemia, que poderá se repetir a qualquer momento, deixará feridas dolorosas no tecido social e no comportamento das pessoas.

Nas duas hipóteses acima – tanto de redução do consumo das famílias quanto do uso intensivo de tecnologia, com o aumento da automação e da digitalização dos serviços públicos e privados – o resultado será menos emprego formal e menos receita para o Estado. Isto significa que muita gente, para sobreviver, dependerá da ajuda do Estado, e os partidos de oposição, em geral, e os de esquerda e centro-esquerda, em particular, precisam se antecipar para propor a adoção de programa de renda mínima universal destinada a proteger os desalentados e vulneráveis que poderão ficar pelo caminho nessa fase pós-coronavírus, e um sistema tributário mais progressivo, que onere o capital e as grandes fortunas.

Os países que estiverem organizados, financeira e administrativamente, na fase de recuperação, sairão mais rapidamente da crise, enquanto os desorganizados, como parece ser o caso do Brasil, poderão demorar muito para recuperar as empresas, os empregos, a renda e as receitas governamentais. A transição até a plena recuperação, portanto, tende a ser longa, daí a importância de políticas sociais para preservar os vulneráveis nessa travessia.

Nessa fase de recuperação ou de transição, o conflito distributivo tende a se acirrar, porque o governo vai precisar de mais recursos para honrar seus compromissos, inclusive os decorrentes dos gastos do enfrentamento da pandemia, e a forma de fazê-lo poderá ou não levar em consideração a capacidade contributiva dos potenciais pagadores – o capital e o trabalho. De um lado, o capital vai resistir ao aumento de tributação ou a criação de novos tributos, como os sobre grandes fortunas e grandes patrimônios e sobre os lucros e dividendos, bem como à retirada ou diminuição de renúncias e incentivos fiscais. De outro, os assalariados precisam estar preparados para evitar o corte de direitos.

Nesse novo cenário, os partidos do campo progressista vão precisar estar atentos a 3 ordens de necessidades da população: a) garantia de renda; b) o abastecimento; e c) defesa dos direitos adquiridos. No primeiro caso, já mencionado, além da defesa de renda mínima, deve atuar para evitar que os setores assalariados sejam ainda mais sacrificados, seja com perda de empregos, seja com redução de salário. No segundo caso, do abastecimento, deve pressionar o governo e estimular o setor privado a retomar a produção, em território nacional, de produtos essenciais à vida, para não ficar vulnerável ou dependente de importação, como está ocorrendo neste momento. E, no terceiro, precisam estar atentos à tentativa de quebra de direitos adquiridos, especialmente de servidores públicos e aposentados e pensionistas dos regimes próprio e geral de previdência social.

(*) Jornalista, consultor e analista político, mestrando em Políticas Públicas e Governo na FGV-DF, diretor de Documentação licenciado do Diap e sócio-diretor das empresas “Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais” e “Dialógico Institucional Assessoria e Análise de Políticas Púbicas”. Texto publicado originalmente na edição de abril da Revista eletrônica “Teoria & Debate”.

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