A nova cara da ditadura brasileira

Roberto Amaral

 

Do golpe continuado caminhamos para a ditadura de novo tipo. Aquela que, para exercer-se, não carece de um novo direito. Impera com o direito que encontra. Este torna-se, no entanto, maleável, à mercê da interpretação política do Poder Judiciário, sempre atento aos humores do Príncipe que tanto pode ser o presidente da República quanto um general de quatro estrelas, ou, mais modernamente, o invisível, onisciente, onipotente, onipresente ‘mercado’.

Ontem como hoje, aqui e em toda a parte.

A ditadura não é, necessariamente, o regime da ilegalidade. Mas o de uma legalidade autoritária que muitas vezes pode, antes da força, alimentar-se nas vozes da soberania popular (onde muitos governos autoritários têm origem). Porque o direito é simplesmente isto: o ordenamento da vontade dominante.

Nos negros anos 1940 e 1950 da democracia nos EUA, por exemplo, o furor macarthista, êmulo ideológico da mesma família da Ku-Klux-Klan, prescindiu de reforma constitucional ou de inovações legislativas para se impor imolando reputações, perseguindo e desempregando escritores, cineastas e artistas, atores e jornalistas e políticos de um modo geral.

Em entrevista ao Valor, em outubro, Wanderley Guilherme dos Santos adverte que governos reacionários são uma possibilidade democrática (desde que se preserve o processo eleitoral-representativo). E isso salta aos olhos numa rápida leitura de nossa história recente: no alvorecer da democracia e da ordem jurídico-liberal derivada da Constituição de 1946, o governo Dutra foi uma experiência reacionária, sem precisar ofender a ordem legal.

Essa mesma ordem deu piso ao regime de Café Filho até Nereu Ramos (1954-55), quando dois presidentes da República (Carlos Luz e Café Filho), com os aplausos historicamente corretos dos democratas, foram depostos ‘na forma lei’, mais precisamente ‘impedidos’ de continuar exercendo seus mandatos.

Uma vez mais os fins justificaram os meios. Foi esta a forma encontrada pelos juristas, a bordo dos tanques de guerra da Vila Militar, para assegurar o império constitucional garantindo a posse de Juscelino Kubitscheck e João Goulart, eleitos no pleito de 1955, que os presidentes impedidos intentavam impedir. A operação seria, mais tarde, homologada pelo STF.

 

O ‘golpe legal’, que não é uma invenção nossa, repetir-se-á na curta história do segundo governo de Dilma Rousseff, derrogado por um golpe de Estado de fato, que, ademais de contar com o respaldo do STF (que igualmente respaldara os pronunciamentos militares de 1937, 1955 e 1964), respeitou os procedimentos da lei, nos limites de seu formalismo, cego para ver, nesse e nos demais casos, a violência intrínseca a toda fratura da soberania popular.

O que pretendo sublinhar, e neste ponto não caminho adiante de Wanderley, é que o governo do capitão não precisará violar a lei para caracterizar-se como ditadura. Poderá ser um governo antidemocrático nos limites e sob o amparo do direito vigente.

Para prever o que pode ser o futuro sob a batuta do capitão (admirador de reles torturadores) basta uma olhadela no nosso entorno.

Quando é preciso torcer o direito, sem matá-lo, o poder judiciário inova na interpretação, sempre a favor do interesse que se fez Estado. Que faz o STF e fizeram os ministros dos tribunais superiores e os juízes de piso dos mais diversos estados, nomeadamente a partir do golpe de 2016, senão refazer jurisprudência (o que implica mudar o direito em sua aplicação) e refazer a ideia da lei, sem dela retirar ou acrescentar um fio? Simplesmente reinterpretando-a segundo os interesses da ordem vigente, por definição mutante? O direito não é, está sendo.

Quantas vezes a lei, intocada em seu formalismo, foi erguida nesses dois anos para restringir direitos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva? O relatório das ofensas não cabe neste espaço.

O professor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina foi levado ao desespero e ao suicídio sob o tacão de uma juíza que o ameaçava com a lei e a Polícia Federal.

Em plena vigência da Constituição Federal (Art.5º, LVII: ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”) o ex-juiz de Curitiba (cabo eleitoral do capitão e a partir de janeiro seu plenipotenciário ministro da Justiça) e o TRF-4 mandaram o ex-presidente Lula para a cadeia. E o STF, para não ser obrigado a libertá-lo, numa manobra de pauta das sessões, vício ético absolutamente legal, decidiu não julgar o habeas-corpus que inevitavelmente o libertaria.

Para tal, mas sempre na forma da lei, as togas mais uma vez se curvaram à japona e, com o sabre no pescoço, ministros e ministras decidiram ouvir os bons conselhos do comandante do exército sobre os riscos que a Corte correria se o ex-presidente conquistasse a liberdade.

 

Nas duas últimas semanas do processo eleitoral, nada menos que 17 decisões judiciais mandaram forças policiais invadir campos universitários e impedir reuniões políticas não-eleitorais, contrariando a Constituição que assegura esse direito. Depois do fato consumado, passadas as eleições, eleito o candidato previamente escolhido, o STF julgou inconstitucional as incursões jurídico-policiais. Assim não há porque falar em ferida legal.

Em plena vigência da Constituição que Ulisses Guimarães batizou de ‘cidadã’, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, com sede em Brasília, impôs (decisão vigente desde 2009 e só agora julgada e revogada pelo STF) a censura ao Estadão, impedindo-o, por 3.327 dias, de noticiar informações sobre uma operação da Polícia Federal que atingia o empresário Fernando Sarney, filho do ex-presidente José Sarney.

O juiz Gustavo Gomes Kalil, da 4ª Vara Criminal do Rio de Janeiro decretou (dia 17 último) censura à TV Globo, proibindo-a de divulgar qualquer parte do conteúdo (de posse da emissora) do inquérito policial que investiga, sem nada concluir, a chacina da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.

Tais fatos, catados ao acaso, bem podem ser um indicador do que esperam os direitos humanos e as franquias político-sociais no regime em instalação, quando haverá a perfeita comunhão de interesses e propósitos entre o poder governante, o poder judiciário, o ‘mercado’ e os meios de comunicação de massa.

Quando as circunstâncias assim o exigirem, o poder lançará mão dos juristas e os ministros do STF encontrarão a interpretação mais consentânea com seus interesses.

É a primeira opção do sistema.

Na sua retaguarda, se for necessário implementar reformas ou inovações legislativas, o capitão conta com um Congresso solidário no autoritarismo, e ansioso em prestar ou vender serviços. Pois se trata de Congresso assumidamente reacionário, voltado para a proteção do arbítrio.

Sua pauta compreende a criminalização dos movimentos sociais, a redução da menoridade penal, o fim do Estatuto do desarmamento, e, como símbolo do atraso, unificados o fim do ensino gratuito e o projeto da Escola ‘sem partido’, eufemismo que procura esconder o projeto real de escola sem voz e sem ideia, universidade sem pensamento, país sem progresso, paraíso das iniquidades sociais enquanto o novo chanceler corre de Seca a Meca à procura dos comunistas que teriam inventado a revolução francesa.

Fica, assim, como ponto de reserva, pois, se acaso a interpretação sempre circunstancial da lei não satisfizer inteiramente aos desejos e necessidades do Príncipe, o Congresso fará sua parte, como fará, e tem feito, o poder judiciário. Todos sob a vigilância do ‘Mercado’ o verdadeiro titular da casa grande de nossos dias.

Marielle Franco – a chacina completou oito meses de inepta investigação no último dia 14. Os mandantes estão sendo perseguidos ou protegidos?

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