Brasil: na contramão da Internet livre

Por Jonas Valente*

Mais de 40 entidades do mundo todo divulgaram, na última semana, um documento apontando grandes preocupações com retrocessos nas políticas de Internet no Brasil e declarando apoio ao enfrentamento que vem sendo feito pela sociedade civil brasileira, dentro de casa, contra tais medidas.

O “Manifesto de Guadalajara” foi lançado durante o Fórum de Governança da Internet(IGF), principal evento global sobre o tema, que ocorreu na cidade mexicana que dá nome ao texto, entre 5 e 9 de dezembro.

O encontro reuniu mais de dois mil representantes de governos, organizações da sociedade civil, pesquisadores e empresas da área de tecnologia da informação e da comunicação.

O documento destaca o fato de que o Brasil está caminhando da posição de marco internacional positivo nas iniciativas de regulação da rede para tornar-se um exemplo de medidas contrárias à promoção de uma Internet livre e acessível.

Na última década, o país assumiu a condição de referência global neste campo em função da atuação do Comitê Gestor da Internet (CGI), da aprovação do Marco Civil da Internet e por ter recebido em casa eventos internacionais como o NetMundial e o próprio IGF, em duas ocasiões.

No entanto, medidas adotadas recentemente pelo governo de Michel Temer e diversos projetos de lei que tramitam de maneira acelerada no Congresso Nacional jogam o país em outra direção.

Na área de acesso à web, a aprovação do projeto de lei 79 pelo Senado, na última semana, é um retrocesso grave. O texto modifica a Lei Geral de Telecomunicações e acaba com as obrigações de universalização dos serviços que poderiam ser aplicadas à Internet.

O projeto também entrega um patrimônio público no valor de mais de R$ 100 bilhões (em infraestrutura operacional e de rede) às operadoras de telecomunicação, sem contrapartidas concretas que viabilizem a conexão dos mais de 100 milhões de brasileiros que hoje estão excluídos digitalmente.

A oposição, em articulação com a Coalizão Direitos na Rede, que reúde entidades da sociedade civil brasileira que defendem os direitos dos usuários na internet, deve garantir, nesta sexta 16 um recurso para que o texto seja ao menos debatido pelo plenário do Senado.

A sanha do governo federal, entretanto, em se desobrigar de universalizar o acesso à internet no país é grande.

O governo Temer já anunciou que quer deixar este importante esforço apenas nas mãos do mercado, abandonando a perspectiva de planos de banda larga para garantir o acesso à rede, como tem ocorrido em boa parte dos países.

Mudanças no Marco Civil e ataques ao CGI

Outra preocupação ressaltada pelo Manifesto de Guadalajara é o conjunto de iniciativas em curso para alterar e minar o Marco Civil da Internet (Lei 12.695/2014).

Atualmente, há mais de 200 projetos de lei neste sentido tramitando no Congresso. Entre os retrocessos pretendidos está o fim ou a flexibilização do princípio da neutralidade de rede (que proíbe a discriminação no tráfego de dados), a possibilidade de acesso a dados pessoais sem autorização judicial, e a remoção de conteúdos publicados online mediante simples mecanismos de notificação.

As medidas atacam preceitos fundamentais reafirmados no Marco Civil da Internet, como privacidade e liberdade de expressão, que fizeram a lei brasileira se tornar referência internacional nestes temas, e várias delas já foram debatidas aqui no blog.

As entidades internacionais também alertaram para os riscos das recorrentes suspensões de aplicativos como o Whatsapp no Brasil.

O intuito de acessar mensagens desses aplicativos para fins de investigações policiais tem motivado diversas decisões judiciais desproporcionais, que resultam na interrupção do acesso de todos os usuários a esses serviços.

A prática gerou reações tanto no Parlamento – que deve votar em breve o PL 5130/2016, que proíbe o bloqueio de aplicativos – quanto no Supremo Tribunal Federal, que julgará em 2017 uma ação de inconstitucionalidade contra os bloqueios.

Até mesmo o Comitê Gestor da Internet no Brasil, exemplo internacional de órgão de governança multissetorial da internet, está sob ameaça. Criado há mais de 20 anos por meio de um decreto presidencial, o CGI tem sofrido ingerências do governo Temer nos últimos meses.

O processo de eleição da próxima gestão de conselheiros, por exemplo, teve a composição de sua comissão eleitoral original alterada para a inclusão de mais membros do Executivo.

E o governo já declarou que tem a intenção de reduzir o papel da sociedade civil (uma das partes representadas, ao lado das empresas, da academia e da comunidade técnica) no espaço.

A disposição de limitar vozes que representam os interesses dos usuários na gestão da internet no país é mais um viés autoritário da administração Temer, denunciado internacionalmente no IGF.

Reação do Itamaraty

Apresentado na sessão de encerramento do IGF por representantes da Coalizão Direitos na Rede e mencionado nos discursos finais tanto do representante da comunidade técnica quanto da sociedade civil, o Manifesto de Guadalajara provocou a reação do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, que lá representava o governo federal.

Benedito Fonseca Filho pediu a palavra para questionar a manifestação das entidades. Disse “estranhar” a posição da sociedade civil brasileira em levar um assunto como este para um fórum internacional, considerando que o país vive uma “plena democracia” e que há espaço para diálogo com as entidades.

A reação do Itamaraty revela o desconforto da gestão Temer com mais uma denúncia internacional e a feição autoritária contra críticas da sociedade civil.

Os desafios do IGF

A 11a edição do Internet Governance Forum promoveu importantes debates sobre o futuro da governança da internet.

Não foram poucas as atividades que colocaram preocupações, por exemplo, com as violações aos direitos humanos na rede, o que envolve desde a proteção à privacidade dos cidadãos até a liberdade de expressão e os direitos de crianças e adolescentes no mundo virtual.

No entanto, enquanto nações afirmam reiteradamente que estão preocupadas em alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU – que incluem a garantia do acesso à rede pela população mundial – ainda há poucas iniciativas para enfrentar efetivamente, em escala global, o desafio de conectar os 3,9 bilhões de cidadãos que ainda estão fora da rede e para garantir os direitos dos demais que já estão na web, especialmente em questões como privacidade e liberdade de expressão.

Para pautar estes desafios, entidades da sociedade civil debateram no IGF a realização de um evento específicos deste segmento. A iniciativa, chamada de “Fórum Social da Internet”, em referência ao Fórum Social Mundial, deve ocorrer na Índia no segundo semestre do ano que vem.

Diversas redes e entidades da sociedade civil estão envolvidas nesta construção, incluindo as brasileiras. Em 2017, o IGF volta a se reunir em dezembro, desta vez em Genebra, na Suíça.

* Jonas Valente é jornalista, mestre em Comunicação e doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília. Integra o Conselho Diretor do Intervozes e foi um dos representantes do coletivo em Guadalajara.

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