Crise política, golpe de Estado e perspectivas da esquerda

 

O Brasil vive um momento dramático de sua vida política. O golpe de Estado ameaça pôr fim ao período de redemocratização que, iniciado com a abertura política, aprofundou-se com a Constituição de 1988 e prosseguiu, a partir de 1989, com a realização periódica de eleições diretas. O golpe dirige-se não apenas contra o governo Dilma, mas principalmente contra o projeto de desenvolvimento nacional-popular que os governos petistas esboçaram paralelamente e de forma subordinada às políticas neoliberais.

As políticas neoliberais foram hegemônicas nos governos petistas e protagonizaram as políticas monetárias, fiscais e cambiais, impondo taxas de juros acima do crescimento da economia, superávits primários destinados ao pagamento de juros da dívida pública e a sobrevalorização cambial durante a quase totalidade dos catorze anos de exercício de mandato. Todavia, esses governos estabeleceram outro padrão de políticas públicas que foi estimulado pelas altas taxas de crescimento, vinculadas ao boom das commodities entre 2004 e 2011, e se manifestou em um conjunto de iniciativas:

a) na reorientação da política externa, voltada para a afirmação da soberania regional e para a formação de um novo eixo geopolítico mundial, articulado pelos Brics, com potencialidade para desafiar a hegemonia dos Estados Unidos;

b) na imposição do modelo de partilha para a exploração do pré-sal, estabelecendo as bases de um capitalismo regulado pelo Estado para a exploração desse recurso estratégico;

c) na utilização do BNDES para financiar com taxas de juros subsidiadas a petroquímica, a construção civil, a agroindústria e a indústria farmacêutica, compensando os efeitos restritivos da política monetária;

d) em políticas sociais nas quais se destacaram a valorização do salário mínimo e os programas de renda mínima e de construção de moradia popular;

e) na recomposição do número de funcionários públicos ativos da União, reduzidos drasticamente durante o governo Fernando Henrique Cardoso;

f) na ampliação do acesso ao ensino superior, no estabelecimento de cotas sociais e raciais nas universidades federais e na obrigatoriedade de Sociologia e Filosofia no ensino médio.

Essas iniciativas permitiram a reorganização dos movimentos sociais e uma acumulação de forças que lhes permitiu questionar as prioridades dos governos Lula e Dilma e pressioná-los a avançar em seus compromissos sociais, o que se expressou na forte ampliação das greves a partir de 2009, impulsionadas pelos servidores públicos, e na explosão insurrecional das manifestações de junho de 2013, que evidenciou a reivindicação por direitos sociais e o crescimento da desigualdade na contramão do discurso oficial de que esta havia caído. Ao perceber que os governos petistas já não eram capazes de conter os movimentos sociais e constituíam obstáculos a uma nova ofensiva neoliberal sobre o Estado brasileiro, o grande capital colocou na ordem do dia sua deposição, inicialmente pela via eleitoral, que, ao fracassar em 2014, deu lugar à articulação para o golpe de Estado, o qual se aproveitou das vacilações e equívocos do governo Dilma. Este, para buscar governabilidade diante da pressão do grande capital, negou parcialmente o programa nacional-popular moderado com o qual venceu as eleições, cortou gastos sociais, adotou uma política recessiva e perdeu drasticamente popularidade, abrindo espaço para a ofensiva golpista.

Manejando de maneira mecânica e rígida o discurso da financeirização do capital, o governo Dilma não percebeu que essa tendência de longo prazo não anula necessariamente a possibilidade de inflexões cíclicas no capitalismo, mesmo que estas apresentem importantes contradições. Perdeu assim a oportunidade de apoiar-se nos movimentos sociais para impor ao capital financeiro mudanças na política monetária – a partir da queda estrutural da taxa de juros reais para níveis inferiores ao crescimento do PIB – que viabilizassem a transição para um período de desenvolvimento centrado nos investimentos públicos em educação, saúde, ciência e tecnologia, infraestrutura e cultura e na taxa de lucro como eixos do processo de acumulação. Tal processo permitiria ampliar a acumulação de forças dos movimentos sociais e colocar em cena um horizonte anticapitalista quando se evidenciassem as contradições no padrão de desenvolvimento entre a ampliação dos investimentos sociais e os limites da superexploração do trabalho em que se assenta o capitalismo brasileiro. O governo Dilma, ao recuar do movimento de redução das taxas de juros e vetar a auditoria da dívida pública aprovada pelo Congresso, manteve o Brasil como um dos únicos países do mundo que, nos últimos vinte anos, nunca desvalorizou sua dívida pública ou priorizou a taxa de lucro sobre a taxa de juros.

O golpe de Estado que vem se estabelecendo por meio do governo Temer busca destruir as bases do projeto nacional-popular e de organização dos movimentos sociais e pretende aprofundar o protagonismo do capital financeiro, tornando-o política de Estado. Para isso maneja uma ampla agenda, na qual se destacam as seguintes iniciativas:

a) proposta de PEC para congelar os gastos públicos primários por vinte anos e cortar recursos na saúde e educação, desvinculando o mínimo de dotações obrigatórias da receita líquida corrente;

b) ataque aos direitos trabalhistas por meio da terceirização das atividades-fim e da flexibilização da CLT em favor de acordos coletivos;

c) privatização dos ensinos superior e médio, fim das cotas sociais e raciais, extinção da obrigatoriedade de Filosofia e Sociologia no ensino médio e criminalização da liberdade de cátedra e de pensamento por meio da aprovação do projeto escola e universidade “sem partido”;

d) fim das políticas de valorização do salário mínimo, desvinculação de sua indexação às aposentadorias e imposição de cortes nos programas sociais;

e) eliminação das políticas de apoio ao setor industrial pelo BNDES por meio de taxas de juros subsidiadas;

f) restabelecimento da privataria e do papel estratégico do BNDES em sua articulação;

g) flexibilização da preferência da Petrobras no pré-sal e extinção do regime de partilha em favor do regime de concessão;

h) fim das eleições diretas por meio da imposição do parlamentarismo por PEC, sob o disfarce de semipresidencialismo;

i) supressão dos vetos de Dilma à lei antiterrorismo, que passaria a ser usada para reprimir protestos sociais e processos de resistência;

j) reorientação da política externa para o alinhamento ao imperialismo norte-americano, flexibilizando o Mercosul e congelando e desmontando os avanços de Unasul, Celac e Brics.

Trata-se da agenda de uma burguesia dependente e parasitária que pretende usar cada vez mais a dívida pública para garantir lucros extraordinários e submeter o mundo do trabalho à valorização fictícia do capital e sua transformação em realidade. Essa agenda impõe um Estado de contrainsurgência que necessita do fascismo como forma de repressão maciça para impor a superexploração do trabalho e sufocar a resistência dos setores populares e de um proletariado de serviços que incorpora cada vez mais as tecnologias de informação para sua organização.

Lutar contra essa agenda implica romper com o centrismo que marcou o pensamento estratégico da esquerda petista, impedir a continuidade do governo Temer vinculando a volta de Dilma a um plebiscito sobre eleições diretas e impulsionar um programa de ataque ao comando do capital financeiro sobre os processos de acumulação para, no bojo da retomada do desenvolvimento, colocar as tarefas anticapitalistas que ampliam a democracia e o mercado interno para além dos limites do capitalismo dependente.

 

Carlos Eduardo Martins

Carlos Eduardo Martins é autor de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina, publicado pela Boitempo em 2011, e professor do Programa de Pós-Graduação sobre Economia Política Internacional (Pepi/UFRJ).

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