“Super-ricos são os que menos pagam imposto”

 

Opato gigante inflado — e suas réplicas em tamanho menor — na frente da sede da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), na Avenida Paulista, se tornou o símbolo do movimento pelo impeachment da presidenta Dilma. Porém, o objeto, supostamente plágio de obra de um artista holandês, representa a campanha ‘Não Vou Pagar o Pato’, da Fiesp. A ação surgiu para barrar a volta da CPMF, proposta por Dilma em meados de 2015, e se ampliou para a defesa de uma reforma tributária que reduza impostos sobre bens de consumo, como o ICMS, que somente no ano passado foi representou uma arrecadação de R$ 400 bilhões.

A necessidade de mudanças no sistema tributário brasileiro é uma certeza para qualquer especialista no setor. Mas enquanto uma corrente endossa a proposta defendida pela Fiesp e outras associações patronais, um grupo de pesquisadores aponta que ela esconde que a redução da carga tributária por si só acarretará cortes de investimentos do governo federal, perda de direitos sociais e redução do papel do Estado na economia. Este grupo afirma que o Brasil precisa de uma redistribuição fiscal que faça com que aqueles que têm mais dinheiro paguem a maior parte dos tributos.

Hoje, a situação é inversa. Números da OCDE mostram que, em 2013, 44% da arrecadação tributária nacional vinha dos bens de consumo enquanto apenas 21% incidiam sobre a renda do cidadão. Na média da OCDE, que reúne os países mais desenvolvidos do mundo, as duas fatias representam 33% do montante. Mas qual o problema dos impostos brasileiros serem baseados no consumo e não na renda? Por que nosso sistema pune os mais pobres e não taxa os muito ricos? O que realmente querem movimentos como o capitaneado pelo empresariado paulista? Para responder estas perguntas, Apuro conversou com a assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e especialista em orçamento público, Grazielle Custódio David. Leia a entrevista abaixo.


Por que o sistema tributário brasileiro é injusto?

Ele é injusto por ser regressivo. Proporcionalmente pobres e a classe média pagam mais impostos do que as pessoas mais ricas e, entre elas, os super-ricos são os que menos pagam imposto no Brasil. Existem três grandes grupos de tributos: consumo, renda e patrimônio. Quanto mais você tributa o consumo, mais penaliza os pobres porque o tributo é igual independentemente de qual seja a sua renda. Quem ganha um salário mínimo gasta praticamente tudo em consumo e está sendo fortemente tributado de forma direta.

Além disso, o tributo sobre renda, que é mais progressivo, também não promove justiça fiscal porque há poucas faixas de tributação e o teto da última faixa é muito baixo. Colocamos grupos distantes em uma mesma faixa de tributação. Uma pessoa de classe média que ganha R$ 5 mil por mês é cobrada no máximo do Imposto de Renda, na mesma proporção que um super-rico, que ganha infinitamente mais. Os tributos sobre a renda penalizam a classe média enquanto os tributos sobre consumo penalizam os pobres. E nos dois sistemas, os super-ricos são beneficiados.

E ainda há um agravante. A renda sobre o trabalho é taxada no Imposto de Renda, mas os ganhos com lucros e dividendos das empresas é isento desde 1995. Então quem trabalha de carteira assinada paga e os super-ricos, como grandes diretores e sócios de empresas, não.

Qual o objetivo de movimentos como o ‘Não Vou Pagar o Pato’, da Fiesp?

A vontade de reduzir a carga tributária é uma atitude ideológica porque deixa implícita a intenção da formação de um Estado mínimo, que não seja garantidor de direitos sociais. É essa defesa que faz quem pede carga tributária baixa. A carga tributária não é determinada por quanto se quer pagar de imposto, mas pela necessidade do povo. As pessoas querem saúde pública, educação pública, transporte público? Então é preciso ter uma carga tributária mais alta, é a única forma de garantir isso.

A ideia de que a carga tributária no Brasil é alta não é real. Nossa carga hoje está dentro da média da OCDE. Mais grave do que isso é que nunca se fala em como ela é desproporcional. Famílias com renda menor sofrem mais com a carga tributária. É uma maldade. Quem propaga o discurso de que a carga tributária é alta é justamente quem menos paga imposto no Brasil. Quem de fato está sentindo o peso da carga tributária são os pobres, mas que precisam do Estado fazendo política pública. É uma situação desesperadora porque eles não podem querer a diminuição da carga, mas aguentam o peso praticamente sozinhos. Enquanto se fica nesse discurso, estamos inviabilizando o discurso mais importante que é sobre a má distribuição da carga.

Como você avalia o movimento da Fiesp?

A Fiesp é a porta-voz desse grupo que tenta inviabilizar a discussão necessária de redistribuição da carga tributária, de ampliação dos tributos sobre renda e patrimônio. Eles manipulam e distorcem informações para enganar a população com base em um discurso fácil contra os impostos que terá um resultado extremamente prejudicial. E o pior é que fazem isso mesmo tendo telhado de vidro, como esse diretor da Fiesp que é um dos maiores devedores da Dívida Ativa. Aqueles que mais defendem o Estado mínimo são os que mais mamam na teta do Estado, não pagam seus tributos, vivem na dívida ativa, esperando um refinanciamento, perdão de dívidas. Não querem nada de Estado para o povo e garantem que o fundo público seja todo deles.

E quais são as propostas dessa campanha?

A proposta deles é pegar todos os impostos sobre consumo e criar um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) com um valor muito baixo. Só que para você fazer isso, você acaba com a arrecadação. Não dá para derrubar os impostos sobre consumo e não fazer uma redistribuição. Se você pensar em garantir justiça fiscal você tem que reduzir a tributação sobre o consumo, mas também ampliar a tributação sobre renda. Tornar o Imposto de Renda mais isonômico, com novas faixas, e melhorar a tributação sobre patrimônio. Essa medida que eles defendem com criação de imposto único e eliminação de todos os outros vai provocar uma redução gravíssima na arrecadação e vai ser necessário cortar o Estado. E essa intenção de desmontar o Estado de bem-estar social está clara na PEC 241, que estabelece limite de gastos do governo.

Então, a redução dos impostos sobre consumo é uma pauta comum da Fiesp com grupos que pedem a redistribuição dos tributos.

Grupos como a Fiesp usam o mesmo argumento que nós usamos, criticam o caráter regressivo dos impostos e pedem redução de tributos sobre consumo. Mas eles se aproveitam desse discurso apenas para reduzir os impostos sem fazer redistribuição da carga tributária. É preciso prestar muita atenção porque há muita esperteza nesses grupos de usar o mesmo diagnóstico para justificar ações completamente diferentes para atender aos interesses das grandes corporações, principalmente as que tem envolvimento com o capital estrangeiro e dos super-ricos, o 1% da população.

Um dos tributos que se defende para tornar o sistema tributário mais justo é o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF). Mas críticos dizem que ele ocasionaria fuga de capitais. O que aconteceria?

O tributo de grandes fortunas está em discussão globalmente principalmente depois do livro do Thomas Piketty (O capital no século XXI), que mostrou a importância de tributar o patrimônio porque a riqueza em todo o mundo se concentra nas mãos das mesmas famílias e vai passando de uma geração para outra sem possibilitar ascensão social de fato. Essa acumulação de patrimônio torna o discurso meritocrático uma ilusão, uma falácia. O dinheiro fica na mão de quem sempre esteve e cada vez se concentrando mais. Uma das formas de evitar isso é com o IGF. Em vários países essa proposta já se discute.

O caso da França é normalmente citado por quem é contra esse imposto. Um grande milionário mudou seu domicílio para escapar dessa tributação. Mas isso acontece porque há países que não adotam esse tributo. Se tivermos um movimento global, como se vai fugir? O sistema tributário, com a globalização da economia, precisa de normas globais. Para que uma proposta dessa dê certo precisamos de um corpo internacional nas Nações Unidas para fazer uma reformulação tributária internacional, que evite a fuga de capitais.

Mas a fuga é de pessoas físicas. No caso de empresas, já há estudos mostrando que o sistema tributário não é o principal fator para uma indústria investir em um país e sim a qualificação de pessoal e condições de infraestrutura. E para garantir esses dois pontos precisamos de um Estado presente, que garanta direitos. Quanto mais se reduz o Estado, menores são as chances de que empresas invistam no país.

Para evitar essa concentração de renda sempre nas mãos das mesmas famílias, defende-se uma maior tributação das heranças. É uma opção importante para o Brasil?

Os tributos sobre patrimônio no Brasil estão muito abaixo da média de outros países. E isso envolve as heranças. Mas o principal no país é o Imposto sobre Território Rural (ITR), que não representa quase nada na arrecadação. Num país continental e latifundiário como o Brasil, como esse bem não tem arrecadação decente? Ele deveria ser revisado e ampliado. O valor dele é muito baixo e a fiscalização é mal feita porque o controle passa por outras esferas de governo e, em muitos casos, é o proprietário que indica no registro qual o tamanho da sua terra e coloca uma área muito menor do que a real.

Os governos Lula e Dilma não atuaram para tornar o sistema tributário mais justo. Existe prognóstico de piora do quadro no governo Temer?

Os governos Lula e Dilma de fato não atuaram para tornar o sistema tributário mais justo. Porém, o momento econômico fez com que o Brasil conseguisse melhorar muito sua arrecadação e foi possível fazer uma série de políticas distributivas extremamente importantes. Agora, o novo governo, além de não querer fazer justiça fiscal, também não quer fazer justiça social. Muito pelo contrário, o que ele quer é reduzir as despesas para aumentar o processo de acumulação. O prognóstico é péssimo e extremamente preocupante. Vínhamos com tendência de redução da desigualdade mesmo sem afetar o 1% mais rico. Mas agora o que vemos é o contrário. A política de habitação, por exemplo, teve corte no financiamento para o Minha Casa Minha Vida e aumento no de apartamentos de luxo.

Quais mudanças no sistema tributário estão sendo discutidas hoje no Congresso Nacional?

A carga tributária é alvo de vários projetos de lei e o mais recente está na Comissão Especial da Reforma Tributária. Já há um relatório escrito, mas que ainda não foi lido em plenário. Pelo que já tivemos acesso desse relatório, ele é uma cópia do discurso da Fiesp. Diz que o sistema tributário é regressivo, precisa reduzir impostos sobre consumo e para por aí. Não há proposta de redistribuição. A proposta, portanto, é reduzir a arrecadação e o Estado. Com isso, uma série de direitos serão cortados da Constituição.

Como resistir a esses ataques e propor um sistema tributário mais justo?

Há resistência no Congresso. Conseguimos segurar o processo na comissão, fizemos audiências públicas, conversamos com deputados que querem revogar a isenção de impostos sobre lucros e dividendos. Mas o grande instrumento é o voto. Não votar em quem faz o discurso de uma mera redução de impostos, que é algo danoso para o país. A questão é saber se será possível travar esse debate com uma mídia tão concentrada. Os meios de comunicação também não têm interesse no ajuste da carga tributária porque teriam que contribuir muito mais do que fazem hoje.

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