Crônica de Cândido Grzybowski: Só a cidadania pode tirar o país do atoleiro

27 de junho de 2016

Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase

Estamos vivendo um impasse democrático que nos paralisa. Da mesma forma que algo é decidido hoje, amanhã pode ser desfeito, porque tudo se tornou volátil pela crise de legitimidade do poder político estatal. A cada dia se desvendam e tomamos conhecimento de novos desdobramentos da profunda crise do poder político instituído. Os desdobramentos do processo de impedimento da presidenta Dilma estão mostrando a ilegitimidade de todo o sistema político que temos. Descobrimos que o problema não é deste ou daquele governo, mas do modo como se organizou e é exercido o poder estatal, seja no Executivo ou no Congresso e, mesmo, no Judiciário. Ele não se comporta como derivado da cidadania, mas age ao sabor de interesses e forças na sombra, sob o manto de oportunistas de plantão e personalidades nada republicanas. O poder foi mercantilizado e está subordinado aos ditames do mercado, especialmente no espaço estratégico do Congresso. Este deveria representar a cidadania, mas de fato representa federações de interesses privados: do boi, da bala, da bíblia, da mineração, de empreiteiras e por aí vai. Pelo financiamento eleitoral e propinas, todo o processo político foi privatizado, de representantes nas diferentes esferas do poder e de presidentes, a governadores e prefeitos. Além disto, nossos sonhos e desejos acabam sendo colonizados pelo que a grande mídia privada pauta e defende como questão no debate público, limitando nossos sonhos e opções. Pouco espaço resta para que a diversidade da cidadania exerça seu verdadeiro papel de base da democracia entre nós.

A economia e o poder constituem os pilares centrais no modo de viver em uma sociedade moderna. Mudanças em um ou outro, ou ainda nos dois ao mesmo tempo, são mudanças estratégicas de grande impacto no modo como a gente vive. Mas uma questão fundamental, que não pode ser ignorada, é quem, afinal, pode mudar a economia ou o poder. Dependendo das circunstâncias históricas, um pode moldar o outro. No entanto, mudanças estruturais acontecem sempre impulsionadas pela cidadania ou, num jargão simples, pelo povo nas ruas. A gente é determinante em última análise. Pode ser de forma violenta, tipo levante popular e revolução, como pode ser de forma pacífica, pela mobilização, pressão e participação cidadã, pelo voto.

Nas democracias, mudanças para valer têm origem na ação direta da cidadania, começando nas ruas, organizando movimentos irresistíveis, votando. A ação direta cidadã se expressa no Estado como instância de poder, instituído pela vontade popular, com legitimidade e capacidade de mudar tanto a economia como a própria forma do poder. A cidadania é a única força instituinte e constituinte nas democracias. “Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido” soa como chavão constitucional formal, mas olhando para a história das sociedades modernas nada é mais verdadeiro. Não que poderes usurpadores da vontade popular não tenham existindo, não existam hoje ou deixarão de acontecer no futuro. Afirmo e reafirmo o poder estatal legítimo e sustentável, com capacidade de prover mudanças duráveis, só se sustenta na cidadania. Tudo mais é golpe, mesmo quando segue rito legalmente estabelecido. Em todo caso, para vingar, precisa da anuência e legitimação da cidadania.

O poder estatal legítimo, com capacidade de prover mudanças duráveis, só se sustenta na cidadania.

Tudo isto é possível afirmar e sustentar teoricamente, pela análise da história passada. Porém, a prática se dá no aqui e agora segundo circunstâncias que ninguém escolheu. A gente precisa se reinventar para os desafios reais e únicos no concreto de nosso cotidiano, Brasil de 2016, em profunda crise econômica e política, de desencontros e falta de uma agenda pública minimamente agregadora da enorme diversidade do que somos. Para onde olhar? Em que se agarrar? Com quem se juntar para agir? Que sonhos sonhar? Que projeto de país defender? Como? Onde? Quando? As perguntas ocupam nosso cotidiano em casa, no trabalho, no bar, onde estamos. Descobrimos que respostas não existem para uma situação totalmente nova, elas precisam ser criadas coletivamente.

Há um agito no ar e vozes que não se calam. Mas é mais ruído e insatisfação do que movimentos portadores do amanhã. O desafio de avaliar tudo e definir rumos é, ao mesmo tempo, um desafio de nos recriarmos como cidadania. Tarefa complexa, trabalhosa, de muita paciência. Mas a gente precisa, primeiro, acreditar que é possível. Depois, precisa sonhar de olhos abertos e coletivamente. Para mover montanhas – pois é disto que se trata – precisamos ousar e agregar muita vontade coletiva num movimento irresistível. Trata-se de retomar em nossas mãos, de cidadania, a tarefa de reconstrução democrática e de legitimidade do poder que só nós podemos fazer, sem delegação ou representação. Tarefa difícil e de duração imprevisível, como tudo na história humana.

Na atual conjuntura dolorosa e sem horizonte à vista, descobrimos que tudo pode ruir com a maior facilidade e o que vem no lugar nada tem de algo durável. A gente vai levando esta vida, como diz a canção, mas parece que não temos muita opção no cotidiano. Na verdade, a ventura de viver é assim mesmo, um eterno recomeço sem certezas sobre o amanhã. Mas existe um tecido social, um modo das coisas acontecerem, um cuidar, um conviver e um compartilhar que funcionam e nos deixam dormir em paz, apesar de tudo. Só que há momentos, como o atual, que tudo parece se desfazer e nada surgir no seu lugar. O trabalho é incerto e inseguro, o dinheiro ficou curto para cobrir os gastos normais do dia a dia, a gente parece não ter escolha sobre o que fazer. Na volta, a pobreza e a miséria aumentam de modo visível e agente se sente impotente. A violência e a insegurança parecem ter explodido por todo lugar. Enfim, mesmo sabendo que com tais problemas temos convivido por muito tempo, pois estruturais, agora parece que tudo saiu dos trilhos e algo como um tsunami simbólico de grande poder destrutivo avançou sobre nossas vidas. O certo é que não temos solução à vista. “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. E aí?

Para recuperar força e esperança precisamos nos refazer como cidadania e acreditar que tudo depende de nós mesmos, em última análise. Não adianta esperar. Quanto antes agirmos, refazendo-nos como cidadania ativa, a partir dos nossos locais de vida e trabalho, dos territórios que ocupamos, mais rápido algo de novo pode surgir. Precisamos de um projeto agregador e irresistível, de um vigoroso imaginário mobilizador da energia da cidadania para renovar e radicalizar a democracia como força de transformação legítima, participativa, justa e sustentável. O tempo em que o Brasil vai patinar no atoleiro somos nós que podemos determinar, ninguém mais.

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