Sem sinais de retomada, uma economia na contramão do mundo, por Laura Carvalho

Os sinais do governo interino de Michel Temer, desde os primeiros minutos, foram de se dirigir na contramão da retomada do emprego e da renda. “O governo agora está mais preocupado em garantir a percepção positiva do mercado com as medidas que eles chamam de reformas de longo prazo”, afirma a economista e professora da USP Laura Carvalho, para quem a ausência de uma agenda do crescimento mostra o empenho do governo em adotar políticas de redução do tamanho do Estado na economia. Entre as medidas de longo prazo a que ela se refere estão a reforma da Previdência e a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, que fixa pelo período de 20 anos um teto de gastos para o setor público, definindo pela inflação do ano anterior.

Nesses 100 dias de interinidade, Temer conseguiu aprovar no Congresso, ao fim de maio, a revisão da meta fiscal, admitindo um déficit primário de até R$ 170,5 bilhões para este ano, enquanto a meta deixada por Dilma era de superávit de R$ 30 bilhões. Isso, por si só, segundo Laura, reflete uma mudança de postura da mídia e do mercado financeiro em relação ao governo, que antes era criticado por ter rompido, com a crise, a série histórica de superávits nas contas primárias.

Essa ampliação do déficit permite algumas manobras desconcertantes. Uma delas, aumentar as despesas com juros em plena recessão e queda de arrecadação. Ao manter a taxa básica anual em 14,25% ao ano, o ganho real do capital especulativo que enriquece com títulos públicos aumenta perto da casa dos 50%. Se há um ano estava entre 3 e 4 pontos percentuais acima da inflação, esse ágio está entre 5 e 6 pontos.

Talvez por isso mesmo os chamados “agentes do mercado” não condenam o déficit ampliado em relação ao resultado estimado por Dilma. “Em alguma medida, é verdade que a gente não vai estar falando de uma recessão tão forte (este ano) quanto a de 2015, que foi em boa parte causada por aquele ajuste (iniciado ano passado, por Joaquim Levy), demandado e exigido pelos analistas do mercado financeiro e economistas que agora, de uma hora para outra, parecem estar muito mais tranquilos com a situação fiscal”, critica a economista.

Temer aprovou no Congresso e sancionou a lei de nomeações das estatais, inspirada na ideologia da criminalização da política. Depois de ameaçar reduzir, aumentou o valor do Bolsa Família em 12,5%, ante os 9% que Dilma havia indicado com base no orçamento previsto; e ventilou na imprensa ideias para a reforma da Previdência, defendendo maior convergência entre os regimes de homens e mulheres, de trabalhadores rurais e urbanos, e propondo adoção de idade mínima para a aposentadoria.

Também estão no escopo dos 100 dias a renegociação da dívida dos estados, aprovada na Câmara não sem recuo do governo, que intencionava com o projeto congelar os vencimentos dos servidores públicos por dois anos; e a relevância dada a projeto do senador José Serra, atual ministro interino das Relações Exteriores, para securitizar (vender) a parte recebível da dívida pública, que seria transferida aos bancos com deságio de 50% – segundo o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, uma forma de o governo dar liquidez a essa dívida. Mas que ao mesmo tempo cria movimentações financeiras favoráveis aos bancos.

O mais grave nessa história, no entanto, é a PEC 241 que muda a trajetória de investimentos públicos nos últimos anos e elimina os aumentos reais em áreas de assistência social, que marcaram as gestões de Lula e Dilma. Ousada e sem paralelo no mundo, a PEC chega até mesmo a quebrar as vinculações constitucionais, como em saúde e educação, permitindo prever um futuro “engessado” para a economia e retrocesso em programas sociais, que não poderão acompanhar o crescimento das demandas da população.

“A PEC 241 inviabiliza uma agenda de investimentos públicos, em infraestrutura, que foi um dos pilares que no governo Lula fizeram com que a economia brasileira tivesse uma retomada, em 2009 (ano seguinte à explosão da crise de dimensões globais), muito mais rápida do que outros países, mas também foi um dos pilares que dinamizaram o mercado interno e fizeram com que a gente tivesse as taxas de crescimento mais altas dessas últimas décadas”, afirma Laura Carvalho.

A professora lembra que no primeiro mandato da Dilma já havia a postura de abandonar a expansão dos investimentos públicos. “Houve uma aposta em desonerações fiscais, e medidas de estímulo ao setor privado que não obtiveram resultados desejados.” Mas agora, com a PEC, segundo a professora, “você praticamente coloca no papel o fim desse pilar de desenvolvimento, o que é curioso porque vai na contramão do mundo. No momento atual, a plataforma democrata nas eleições norte-americanas procura resgatar um programa de investimentos públicos, de infraestrutura, vultoso, financiado pelo aumento de tributação sobre os mais ricos. É algo que agora a gente vê na plataforma de Hillary Clinton, elogiada por setores conservadores brasileiros, mas aqui isso está fora de cogitação e o que se propõe é essa PEC”, afirma.

Período contraditório

Para Laura Carvalho, os 100 dias de Temer “são contraditórios no sentido de que ao mesmo tempo ele acena para agradar o mercado com medidas de longo prazo, como essa PEC e a reforma da Previdência, por outro lado, para garantir sua estabilidade e também para parar de aprofundar a recessão ele precisou aprovar um déficit fiscal muito maior do que aquele que estava em jogo, tanto para este ano como para o ano que vem, mas o mercado parece ter ouvido de forma tolerante esses sinais contraditórios, ainda que haja pressão crescente, inclusive em atas do Banco Central, para a aprovação de fato dessas medidas de longo prazo”.

“Há economistas no campo de apoio ao governo que já começam a se preocupar com a aprovação dessas medidas, e estão usando todas as cartas para isso, porque no fim das contas é a única vitória que eles têm, mas eu não enxergo nenhuma agenda, o tema do emprego e do crescimento é algo que não surge, ou surge apenas como se a aprovação dessas medidas fosse de forma mágica estimular o investimento privado, uma coisa que nunca vimos em nenhum país do mundo”, afirmou.

“Além disso, há uma percepção equivocada de que a Bolsa, o dólar, os ativos estão se valorizando no Brasil, o que mostraria o sucesso do golpe”, destaca. Segundo ela, esses ativos estão se valorizando em todos os países emergentes. “Está vindo de um fluxo financeiro internacional, não tem nada a ver com o golpe e mesmo se tivesse não implicaria em melhora necessariamente para a economia real.”

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