Autonomia política e ativismo estético: outras formas de pensar a representação política. Entrevista com Barbara Szaniecki

 

“Em tempos de eleições municipais, o design pode ser uma importante ferramenta para democratizar a democracia”, afirma a pesquisadora.

Por Patricia Fachin

Três anos depois da efervescência de junho de 2013, em que milhares de pessoas foram às ruas reivindicar uma série de demandas relacionadas a serviços como transporte, saúde, educação, de um lado, e à recusa aos atuais partidos políticos, de outro, “são as ocupações mais do que as manifestações que, hoje, melhor expressam as demandas da população”. Isso porque as ocupações “exigem uma participação cotidiana, típica do tempo ordinário e atrelada às demandas da comunidade em contínua formação, no caso, a dos estudantes ‘ocupantes’, mas não apenas; enquanto as manifestações, pela efemeridade e extraordinariedade de seus laços, nem sempre alcançam a consistência e a articulação necessária à transformação”, diz Barbara Szanieckià IHU On-Line.

Formada em Design, atualmente Barbara Szaniecki pesquisa a relação entre autonomia política e ativismo estético, a fim de analisar como essas duas áreas se relacionam na conjuntura atual. Segundo ela, “experimentações estético-políticas” têm surgido das manifestações dos últimos anos, a exemplo de coletivos, como o “coletivo Projetação”, que “foi um de seus expoentes e teve sucesso imediato pela maneira como permitia, por meio de projeções, uma recepção visual coletiva dos dizeres individuais”.

Para ela, “‘Amar é a Maré Amarildo’ foi uma imagem emblemática da formação de uma imensa comunidade sensível a partir da tortura e morte do pedreiro Amarildo por policiais da UPP da Rocinha e do assassinato de uma dezena de pessoas na Maré”. A partir dessa imagem, menciona, “uma subjetividade monstruosa conectou a cidade de ponta a ponta. Muitos outros coletivos surgiram no contexto da arte e da cultura, mas as experimentações estético-políticas certamente os extrapolaram”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Barbara também comenta as contribuições que o design pode oferecer para sair da crise de representação política a partir do “design de participação cidadã, onde o designer, numa postura menos autoral (e às vezes autoritária) deixa de tomar todas as decisões para participar dos processos decisórios, com seus skills específicos, junto com parceiros. Talvez a representação política possa se inspirar nessa transformação para a sua própria reformulação. Em tempos de eleições municipais, o design pode ser uma importante ferramenta para democratizar a democracia”, conclui.

Barbara Szaniecki estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU na noite de hoje, 08-06-2016, ministrando a palestra Autonomismo político e ativismo estético: o design nas metrópoles contemporâneas. A palestra integra o 3º Ciclo de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum.

Barbara Szaniecki é professora na Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. É graduada em Comunicação Visual pela École Nationale Supérieure des Arts Décoratifs (França), mestra e doutora em Design pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. Atualmente é coeditora das revistas Lugar Comum, Multitudes e Redobra. É autora dos livros Estética da Multidão (editora Civilização Brasileira, 2007) e Disforme Contemporâneo e Design Encarnado: Outros Monstros Possíveis (editora Annablume, 2014).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Desde a nossa última entrevista, em 2013, algo mudou em relação à estética das manifestações que vêm ocorrendo no país, considerando que surgiram diversas novas manifestações nos últimos três anos?

Barbara Szaniecki – Em 2013, teve início uma série de manifestações multitudinárias. A faísca foi o protesto contra o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo, mas muito rapidamente ela se alastrou por outras capitais e arrastou outras demandas.

Eram muitas as demandas, pois eram muitos os atores envolvidos: não massa, e sim multidão entendida como articulação de singularidades articuladas em um comum.

Eram muitas as demandas, mas elas não apenas compartilhavam o desejo comum de uma política menos representativa e mais participativa, como também compartilhavam uma forte concretude por estarem atreladas ao difícil cotidiano da população nos centros urbanos: transportes urbanos ineficientes, saúde e educação indignas dos cidadãos.

Nesse momento, 2013, o caráter multitudinário das manifestações era de fato visível a olho nu. Sua estética – no sentido do meramente visível – era a da pluralidade de corpos, cores, vozes, slogans, cartazes, faixas, desejos que ganhavam consistência mais do que organização. Foi a multiplicidade de atores e expressões, muito diferente da unidade das manifestações tradicionais, que me levou a chamá-las de multiformances. E foi essa falta de organização que as levou a serem consideradas perigosas por todo o espectro político.

De 2013 a 2016

2013 foi um monstro que a agenda política de 2014 – da realização de Copa do Mundo em 12 capitais até as eleições no país – procurou domar. A partir da agenda, entrou em cena a binarização. Ao #NãoVaiTerCopa da multidão, o governo lançou como resposta o #NãoVaiTerProtesto. O “nós” contra “eles” veio na sequência com base numa ideologização sem relação com demandas concretas. Com efeito, alianças entre partidos com vistas à própria reprodução enquanto casta no poder e sem comprometimento com as reivindicações populares eram justificadas com o mote “a esquerda” contra “a direita”.

Este conflito estava posto e presente, não há como negar, mas a polarização ideológica contrastava fortemente com o pragmatismo político que vinha sendo adotado pelos governos em todos os níveis e, de modo particular, aqui no Rio de Janeiro, onde a aliança PMDB com PT gerou uma gentrificação da cidade – gentrificação das comunidades e áreas populares com remoções, gentrificação da cultura com a museificação e gentrificação do lazer com um Maracanã inacessível à população –, que dificilmente poderia ser tida como “de esquerda”.

A polarização foi sendo acirrada ao longo de meses, nas ruas e nas redes, por meio da repressão, da criminalização e da manipulação. A monstruosa subjetividade gestada pelas manifestações, prenhe de nuances e ambiguidades, foi levada paulatinamente ao mais subserviente dos alinhamentos psicopolíticos. Foi ele quem ganhou as ruas em 2015. No lugar da multidão multicolorida e sem bandeiras partidárias, surgiu, por um lado, o bloco verde e amarelo organizado por movimentos como MBL e Vem Pra Rua, assim como partidos de oposição, e, por outro lado, o bloco vermelho organizado por movimentos como MST e MTST, centrais sindicais e partidos da base aliada do governo. A polarização ganhou expressão máxima ao longo da votação do processo do impeachment da presidente Dilma.

Contudo, para além dessa estética mais evidente, mais imediatamente visível, outras possibilidades estéticas surgiam. De certa forma, foi a própria crise da representação originada pelo afastamento da classe política de bases sociais e de suas demandas concretas que suscitou outras estéticas. Da crise da representação política, mas não apenas dela, surgiu algo como um desejo por uma outra partilha do sensível por meio da construção, ou melhor, da mobilização de comunidades sensíveis.

“2013 foi um monstro que a agenda política de 2014 – da realização de Copa do Mundo em 12 capitais até as eleições no país – procurou domar”

IHU On-Line – Em que se diferencia a estética das manifestações contra e pró-governo e as manifestações em relação à gestão das cidades, por exemplo? Quais são os expoentes das diferentes manifestações que estão ocorrendo no espaço urbano hoje e a que atribui esse fenômeno de novas manifestações?

Barbara Szaniecki – Como eu dizia antes, a polarização partidária-política se refletiu no verde-amarelo de um lado e vermelho de outro e, sobretudo, na cobrança de um alinhamento ao invés do incentivo a traçar outras linhas, linhas de luta, linhas de fuga. A própria recusa a participar da binarização – apoio versus acusação ao governo – foi patrulhada e desqualificada como “isenção” quando é, na realidade, crítica à representação política. Se crise é oportunidade, a oportunidade só pode vir da prospecção dos possíveis para além da dicotomia presente. Jacques Rancière [1] diria que se trata do momento oportuno para a emergência de comunidades sensíveis.

Manifestações são essenciais para as lutas, mas em um momento em que toda expressão política é direta ou indiretamente manipulada não apenas pela grande mídia, como também pela blogosfera e pelas redes sociais – manipulações de manipulações de manipulações –, experimentações políticas a partir de novas partilhas do sensível se mostram necessárias. No lugar da adesão acrítica, surgem inquietações rancerianas: quem é e quem não é visível na cidade? Quem pode e quem não pode tomar parte da política? Qual é a parte dos sem parte na política representativa?

Evidentemente, algumas experimentações estético-políticas nasceram imediatamente no contexto artístico e cultural. Alguns coletivos emergiram diretamente das manifestações. O coletivo Projetação foi um de seus expoentes e teve sucesso imediato pela maneira como permitia, por meio de projeções, uma recepção visual coletiva dos dizeres individuais. “Amar é a Maré Amarildo” foi uma imagem emblemática da formação de uma imensa comunidade sensível a partir da tortura e morte do pedreiro Amarildo por policiais da UPP da Rocinha e do assassinato de uma dezena de pessoas na Maré. Uma subjetividade monstruosa conectou a cidade de ponta a ponta. Muitos outros coletivos surgiram no contexto da arte e da cultura, mas as experimentações estético-políticas certamente os extrapolaram.

Apesar de sua potência, o ciclo de manifestações não resistiu à manipulação e à mentira que o ciclo eleitoral impunha. O desejo de fazer política por outros meios parecia definhar, mas ressurgiu em outras formas, algumas delas inspiradas pelos movimentos que emergiram do 15M na Espanha, se articularam em torno ao partido Podemos e, sobretudo, em torno de candidaturas cidadãs. Elas obtiveram importantes vitórias eleitorais em 2015, com Ada Colau na prefeitura de Barcelona e com Manuela Carmena na Prefeitura de Madri. Não deixemos de notar que as suas campanhas eleitorais se desdobraram em expressões criativas fora dos cânones do marketing eleitoral. E não deixemos de afirmar a importância desse sucesso aqui no Brasil onde certos movimentos sociais se deixaram cooptar pelos governos da última década e parte do ativismo de 2013-2014 passou a recusar qualquer experimentação partidária e mesmo qualquer tentativa de constituição de cidadania que não fosse por meio de manifestações. Algumas assembleias resistiram.

Novas plataformas

Apesar dessas dificuldades e divergências, ao longo de 2015 formaram-se plataformas visando eleições, tais como Cidade que Queremos, e também comunidades com diferentes finalidades ou com finalidades construídas nos encontros, tais como os Círculos de Cidadania. Em alguns casos, trata-se de iniciativa de vizinhança para compartilhar vivências num bairro (como, por exemplo, o Círculo de Cidadania do Bairro de Fátima e Vizinhança), em outros, de associação de trabalhadores para defender direitos em tempos de conflito com seus próprios sindicatos (como, por exemplo, o Círculo Laranja constituído por garis da Comlurb que foram exonerados depois da greve de 2014). Existem certamente diferentes possibilidades de articulação entre política participativa e política representativa, apesar da tensão entre suas temporalidades.

As acampadas espanholas e o occupy americano também seguiram sendo fonte de inspiração e, recentemente, irromperam inúmeras ocupações de escola em várias cidades brasileiras. São elas as “novas manifestações” no espaço urbano. Talvez nem sejam tão novas assim se considerarmos que nossas “ocupações” – em suas diferentes configurações: dos assentamentos informais das periferias às favelas, passando pelas ocupações de prédios públicos em centros urbanos ou de terras em zonas rurais – são históricas. Em todo caso, são as ocupações mais do que as manifestações que, hoje, melhor expressam as demandas da população. Por quê? Talvez porque as ocupações exigem uma participação cotidiana, típica do tempo ordinário e atrelada às demandas da comunidade em contínua formação, no caso, a dos estudantes “ocupantes”, mas não apenas; enquanto as manifestações, pela efemeridade e extraordinariedade de seus laços, nem sempre alcançam a consistência e a articulação necessária à transformação.

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