Os editoriais e a construção de legitimidade do golpe

 

Quarta-feira, 11 de maio, o dia que não acabou. Insones, jornalistas acompanharam a votação, pelo Senado, da admissibilidade do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. O resultado só se deu na manhã da quinta-feira (12), motivo de atraso de alguns dos principais jornais da mídia hegemônica brasileira.

 

Os editoriais de O Globo, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, cada qual à sua maneira, constroem a noção de legitimidade do impeachment. O próprio nome utilizado, ao invés de “golpe”, como denunciado por Dilma em seu discurso após o resultado da votação no Senado, já dá o tom das narrativas.

 

Com o título “Novo marco de defesa da responsabilidade fiscal”, o editorial d’O Globo compara o impeachment de Dilma com o de Fernando Collor de Melo, sendo que o dela seria “o teste mais duro para as instituições, relacionado de alguma forma ao desmonte da ‘organização criminosa’ criada pelo lulopetismo”.

 

O texto não poupa expressões e adjetivos pejorativos para se referir a Dilma, Lula e ao PT. “Visão ideológica tosca de mundo”, “visão sectária”, “­cacoetes ideológicos”, “arrogantes”, “ato monárquico ou stalinista” são alguns dos exemplos.

 

O “stalinismo” também é citado pelo editorial do Estadão, cujo título “Retorno à irrelevância” responsabiliza a “descomunal vaidade de Lula” pela “profunda crise” que o país enfrenta. Para O Estado, Dilma foi apenas uma criatura que, em algum momento, “como acontece em todo conto de terror”, resolveu pensar por conta própria. Sua única importância seria “ter arruinado o País”.

 

Para a Folha de S.Paulo, o modelo representado por Dilma Rousseff seria “regressivo e cínico”, “imobilista e acomodatício”. Além disso, “o retrato não corresponde apenas a Dilma Rousseff. É também o de Lula, é o do PT, é o de tantos que, desde o mensalão, adiaram seu encontro com a verdade”.

 

Os três jornais, dessa forma, constroem uma identificação entre Dilma, Lula e o Partido dos Trabalhadores, mas não só isso. Também colocam nesse mesmo campo o conjunto da esquerda brasileira, ignorando as divergências nesse espectro ideológico e até mesmo a contestação feita por partidos e organizações que vinham se afirmando como oposição de esquerda de que Dilma e Lula (ou até mesmo o PT) ainda possam ser caracterizados dessa maneira.

 

Essa associação é feita ao ligar toda a esquerda a “mofados preconceitos doutrinários”, como afirmou a Folha, e ao “stalinismo”, numa evidente tentativa de evocar também uma aproximação com o retrocesso e o autoritarismo.

 

A Folha de S.Paulo foi o único dos três que pôs em xeque também a legitimidade do governo Temer e suas chances de tirar o país da atual crise, citando inclusive que seus aliados são considerados suspeitos pela Operação Lava Jato.

 

Postura bem diferente tem o editorial d’O Globo, que associa a ascensão de Michel Temer à presidência com o “princípio civilizatório da responsabilidade fiscal”. O jogo de sentidos está dado: se Temer representa a civilização, o governo Dilma seria o caos.

 

O editorial d’O Globo foi o que mais dialogou, implicitamente, com os argumentos usados por quem se posicionou de forma contrária ao golpe. Cita que embora o impeachment não se relacione diretamente com a Lava Jato, ela teve papel político no processo de suspensão de Dilma e que ela cometeu sim crimes contra o Orçamento.

 

A negativa de que cometeu crimes foi a tônica do discurso de Dilma Rousseff, veiculado pela NBR e retransmitido ao vivo por outras emissoras no fim da manhã de quinta-feira.

 

Segundo ela, “é a maior das brutalidades que pode ser cometida contra qualquer ser humano: puni-lo pelo crime que não cometeu”. Afirmou ainda que “quando uma presidenta é afastada por um crime que não cometeu, no mundo democrático, o nome disso não é impeachment, é golpe”, evidenciando a disputa por sentidos na forma como se nomeia o seu processo de impedimento.

 

Dilma também buscou mostrar que tal processo não tem legitimidade, sendo fruto de uma “farsa jurídica”, com o “objetivo de tomar à força o que não conquistaram nas urnas”, que foram os 54 milhões de votos dados a ela. De acordo com a presidenta impedida, “o que está em jogo não é apenas o meu mandato, é o respeito às urnas”.

 

Esse foi o sentido que as manifestações contra o impeachment tentaram imprimir, o de defesa da democracia, embora as coberturas jornalísticas das Organizações Globo tenham insistido em caracterizá-las sempre como formadas apenas por petistas e movimentos sociais ligados a eles, num esforço por, em oposição, construir os protestos antiDilma como espontâneas manifestações do povo brasileiro.

 

Nessa quinta-feira, O Globo publicou em sua página na internet o aviso de que a edição sairia um pouco mais tarde, para que o jornal fizesse uma publicação que desse conta do “momento histórico”: “O GLOBO permaneceu acordado esta noite, vigilante, de modo a entregar ao leitor um conteúdo de qualidade, que possa ser guardado como um livro de História”.

 

Numa operação entre passado e presente, O Globo criou uma relação entre o impeachment de Collor e o de Dilma, afirmando que a corrupção no último governo do PT “supera de longe as falcatruas de PC Farias”, o tesoureiro de Collor. Também criou a oposição entre civilização (Temer) e barbárie (Dilma e toda a esquerda); entre povo e militantes. Entre os que defendem, de forma isenta, a pátria e o bem e aqueles que têm projetos político-ideológicos ligados ao stalinismo.

 

O desafio de historiadoras e historiadores que escreverão sobre os últimos acontecimentos políticos é enorme. Considerar os jornais conservadores como fonte histórica sem inserir seu papel de agentes políticos na construção da narrativa da crise – e da própria crise – seria um erro crasso.

 

Em vez de serem guardados como livros de História, O Globo, O Estado e a Folha de S.Paulo devem servir como indícios do papel político da imprensa na sexta-feira 13 de terror que se anuncia.

 

*Mônica Mourão é jornalista e integrante do Coletivo Intervozes

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