O olhar da imprensa internacional sobre o impeachment no Brasil

 

Por Camila Nóbrega*

Diversidade de narrativas e análises sobre a crise política não faltam no Brasil, mas ela segue engolida pelo monopólio dos veículos tradicionais. Em tom bastante conservador e politicamente localizada à direita, a narrativa que pauta o noticiário do país faz desaparecer boa parte das nuances e oculta personagens e fatos importantes da crise. Neste contexto, a cobertura internacional ganha holofotes e acende o alerta sobre o perigo da concentração da chamada grande mídia brasileira. Protegidos pelo distanciamento e pautados por analistas políticos, pela mídia alternativa nacional e por movimentos sociais, alguns veículos estrangeiros têm chamado atenção por terem mudado seu próprio discurso. Se inicialmente a imprensa internacional acompanhava a ode aos protestos pró-impeachment criada pelos grandes conglomerados da imprensa nacional, houve uma meia-volta significativa. A mudança, que marcou a cobertura da votação na Câmara no dia 17 de abril, tem repercutido.

“O deputado votou ‘sim’ pela abertura do processo de impeachment e disse que fez a escolha pelo futuro do Brasil e por sua esposa e filhos”, traduzia um repórter da BBC Internacional, em flash com imagens diretas da Câmara dos Deputados no domingo 17 de abril, seguido de uma análise sobre a ausência de argumentos relacionados às acusações feitas à presidenta nos discursos dos parlamentares.

“O presidente da Câmara brasileira, Eduardo Cunha, que conduz a votação no dia de hoje, é acusado de corrupção e alvo da Lava Jato”, explicava o canal Euronews. “Milhares de pessoas estão nas ruas, divididas; enquanto há quem comemore, são muitos os brasileiros e brasileiras que denunciam um golpe em curso”, esclarecia a jornalista da Al Jazeera ao vivo, apenas alguns minutos antes da confirmação da abertura do processo.

Durante as cerca de oito horas de votação, o Brasil esteve nas notícias mais importantes (“breaking news”) de centenas de canais de televisão, jornais, rádios e sites de todo o mundo.

E, durante todo este tempo, jornalistas enfrentavam em diferentes sotaques o desafio de explicar o emaranhado de relações de poder e alianças no Congresso brasileiro e a construção de um discurso conservador e autoritário, no caminho que levou à abertura de processo para julgamento de um possível impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

Entre os veículos de comunicação que adotaram uma linha mais crítica e apostaram na apuração jornalística própria, especialmente com correspondentes enviados ao Brasil ou até mesmo a partir de escritórios instalados no País, os obstáculos não eram menores.

Afinal, imagine o desafio de explicar que vários dos parlamentares que tinham direito ao voto naquele momento figuravam na lista da operação Lava Jato sob graves acusações de corrupção, incluindo o presidente da Casa.

Se a tarefa de esclarecer a situação é árdua entre brasileiros, imagine o fardo de quem precisa fazer isso para pessoas que não estão sequer familiarizadas com o contexto político do País, apresentando a biografia extensa desses parlamentares que ali vociferavam contra a “corrupção”.

Some a isso a necessidade de traduzir, além de centenas de dedicatórias a filhos e esposas, declarações como a do deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que homenageou Brilhante Ustra, primeiro militar reconhecido pela Justiça Brasileira como torturador.

Em meio às dificuldades – e também às facilidades, é bom lembrar – impostas pelo distanciamento, a cobertura internacional de um dos principais momentos na história recente brasileira marcou grandes diferenças em relação ao que figurou na mídia tradicional nacional. E, acima de tudo, marcou uma virada.

Onde, apenas um mês atrás, veículos descreviam os protestos nas ruas com um certo glamour de luta contra a corrupção, os espaços de questionamento cresceram. Veio à tona o fato de que os motivos para a abertura de um processo de impeachment são, no melhor dos casos, duvidosos, assim como a credibilidade e idoneidade dos deputados que estavam à frente do processo.

A narrativa na imprensa internacional

Enquanto a imprensa brasileira seguiu retratando a votação do impeachment como um jogo de futebol, ficou a cargo da mídia internacional o chamado a reflexões e à garantia de princípios jornalísticos de apuração.

Ganharam espaço detalhamentos sobre o processo da votação em si, o que aconteceria daqui para frente e o fato de que a crise política não se encerraria na votação, independentemente do resultado.

Foram órgãos de mídia internacionais também os responsáveis por pautarem e explicarem os motivos que levam uma grande parcela da população brasileira a denunciar um golpe em curso.

Assim seguiu a semana com uma cobertura mais equilibrada vinda dos meios de comunicação estrangeiros. Entre os impressos, o jornal britânico The Guardian, após o resultado da votação na Câmara, optou por reportar a situação dando espaço à fala do líder do governo na Câmara, José Guimarães, que pediu aos brasileiros e brasileiras contrários ao golpe que permaneçam mobilizados.

O jornal é um dos poucos a dar nome e sobrenome ao processo. Afirmou abertamente que há uma ansiedade da oposição em conseguir o impeachment de Dilma Rousseff a fim de instalar no Brasil o primeiro governo de centro-direita em 13 anos.

O periódico é um dos que também tem feito questão de ressaltar as acusações nas costas do presidente da Câmara.

Aliás, se a ficha de Cunha está longe de ganhar destaque no Brasil, ela é considerada elemento central por muitos veículos da mídia internacional. A versão brasileira do jornal El País também ressaltou na última semana o preço que a oposição aceitou pagar para que o impeachment passasse, em referência à aliança com Cunha e à ocultação de seus milhões não declarados no discurso que passou a apontar apenas a presidenta e o ex-presidente Lula como focos dos escândalos.

Os mesmos questionamentos também ganham espaço nos três principais jornais norte-americanos, de linha liberal: The New York TimesThe Wall Street JournalThe Washington Post, que têm destacado as suspeitas de corrupção contra vários parlamentares à frente do impeachment.

Já a revista alemã Der Spiegel, apesar de manter em seu site um vídeo da votação mostrando apenas as manifestações verde-amarelas, descreveu o processo de votação como “a insurreição dos hipócritas”.

Na América Latina, a cobertura dos jornais hermanos também têm tido um papel importante. O colombiano El Espectador ressaltou a falta de argumentos dos deputados durante a votação, apontando que falas com cunho religioso e até mesmo contra “o comunismo” foram feitas de forma absolutamente descontextualizada.

La Nación, da Argentina, afirmou que a crise política está longe de acabar e apontou que o País tem uma presidência “na porta da saída de emergência, um Congresso que festeja com euforia a crise política que divide o País e um novo eventual mandatário também suspeito de corrupção”.

Agências independentes de notícias como a Pressenza – International Press Agency, que tem foco na América Latina – ficam a cargo de análises mais aprofundadas e questionamentos que posicionam a crise política no cenário e de interesses econômicos internacionais.

A crítica internacional à mídia brasileira

A emissora do Catar Al Jazeera trouxe como alvo de questionamentos a própria mídia brasileira, fazendo crescer a discussão sobre o cenário de concentração dos meios de comunicação no Brasil e tocando no calcanhar de Aquiles dos principais veículos do País.

A Al Jazeera foi uma das primeiras a utilizar com mais clareza a palavra “golpe”, explicitando o posicionamento crítico de grande parcela da população em relação à tentativa da oposição de centralizar acusações e investigações sobre o Partido dos Trabalhadores e sobre a presidenta, passando por cima de processos e instituições democráticas e protegendo um número considerável de parlamentares envolvidos nos escândalos da Lava Jato.

A publicação online norte-americana The Intercept também têm colocado a mídia nacional em xeque, principalmente por meio das reportagens do jornalista Glenn Greenwald, que mora no Brasil e se tornou conhecido após publicar reportagens sobre os documentos revelados por Edward Snowden.

No último mês, Greenwald publicou textos no The Intercept sobre a concentração da mídia brasileira e o papel dos veículos do País na construção do discurso conservador contra a corrupção e a favor da retirada de Dilma Rousseff.

The Intercept também apontou, na última semana, a possível investida do vice-presidente Michel Temer em angariar apoios de setores nos Estados Unidos, por meio de uma viagem de um senador Aloysio Ferreira Nunces (PSDB-SP) ao País.

Por esses exemplos e outros mais, a cobertura internacional tem desempenhado um papel importante nesse momento da história brasileira e tem ganhado status de mais equilibrada, contundente e aprofundada.

A situação, porém, está longe de ser ideal. Os casos relatados acima ganharam repercussão aqui no Brasil exatamente por conterem informações ocultadas pela mídia brasileira. No entanto, a maior parte do que é divulgado sobre a crise política no País ainda se limita a reproduzir fragmentos de agências internacionais e a superficialidade da cobertura dos canais nacionais.

A agência Press Trust of India, principal daquele país, limitou-se, por exemplo, a falar da votação. A leitura descontextualizada não dá sequer a dimensão da divisão de opiniões.

A cobertura restrita se repete também nas agências de notícia russas, que só agora começaram a falar do tema, após semanas de silêncio. A Russian Information Agency só deu espaço ao caso no Brasil após a votação do impeachment na Câmara.

Logo após, o jornal Russia Today publicou uma matéria intitulada “As Olimpíadas serão um sucesso, independentemente do impeachment”, tentando apaziguar os ânimos para os jogos.

Alguns russos têm interpretado o silêncio da imprensa local sobre o que se passa no Brasil como uma tentativa de não trazer ao debate público um caso de impeachment em um dos BRICS – e assim não inspirar críticos de Putin.

Fugindo das armadilhas

Nessa análise sobre cobertura internacional, é importante não cair em algumas armadilhas. Os elogios à cobertura internacional devem ser ponderados, para não resultar em mais retrocessos. Uma coisa é sabida por todo correspondente internacional: é sempre mais fácil falar dos problemas alheios.

É natural que a mídia local tenha mais dificuldades de falar de problemas do próprio território. Com menos relações diretas com poderes locais, às mídias estrangeiras sobra mais liberdade.

Isso não significa, entretanto, que essas mesmas mídias poderão chegar a fazer associações mais amplas, questionando as relações de seus países de origem com escândalos em outras nações, como o que ocorre no Brasil, por exemplo.

Segundo ponto: não faltam exemplos de como a globalização no campo da comunicação também traz prejuízos às narrativas. Nesse olhar geral de contexto mundial faltam, entre outros aspectos, espaço para o esclarecimento sobre o que aconteceu com o Brasil nas décadas que sucederam a ditadura militar e que mantiveram no poder parlamentares que lá estão desde então, assim como as características de coronelismo, que permanecem.

A falta dessas perspectivas a partir de uma mídia brasileira não será suprida por veículos e jornalistas internacionais. Não nos iludamos.

Por fim, um dos maiores erros é olhar para a cobertura internacional como uma idealização em termos de técnica jornalística. As mídias independentes que têm surgido no Brasil são uma boa imagem disso. Se aqui não há espaço para uma boa cobertura, isso nada tem a ver com um padrão de jornalismo. Colocar as coisas nesses termos seria aceitar um enquadramento realizado de fora para dentro, fazendo com que nosso olhar acabe se rendendo a uma análise eurocêntrica.

O que falta no Brasil nesse sentido é uma mudança política, que vem sendo pautada há muito tempo pelos movimentos pela democratização da comunicação. O desafio é a alteração do cenário atual, que viola o direito à comunicação e aos diferentes lugares de fala, absolutamente necessários em um país como o nosso, onde a mídia atribui aos discursos pesos políticos absolutamente desiguais e desproporcionais à composição da população.

 

* Camila Nóbrega é jornalista e integrante do Intervozes.

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