CPI dos crimes cibernéticos ameaça Marco Civil, afirma especialista

 

‘Segurança cibernética e grandes eventos’ é o tema da última audiência pública do ano da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Crimes Cibernéticos, que começou a funcionar em agosto. Criada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), ela tem como base a operação da Polícia Federal IB2K, que desarticulou uma quadrilha que desviou R$ 2 milhões pela rede.

No entanto, ao longo dos meses, o objetivo da CPI não está claro e seu escopo tem sido ampliado, pautando desde crimes que tiveram grande repercussão midiática – como recentes casos de racismo sofridos por atrizes negras -, até casos que são do interesse dos deputados que compõem a comissão – como levar Jeferson Monteiro, criador do perfil Dilma Bolada, a depor; além de realizar atos contra o governo nas sessões da comissão.

Formada por maioria de deputados conservadores, como Jair Bolsonaro (PP-RJ) e Marco Feliciano (PSC-SP), a comissão esconde um perigo à sociedade brasileira, aponta Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e membro da comunidade do software livre.

Ele afirma que, ao misturar o conservadorismo dos deputados a uma ignorância sobre as tecnologias atuais, há uma tentativa de retirar direitos fundamentais que foram obtidos com o Marco Civil da internet. “Essa CPI é genérica, e vai ficando claro que o objetivo é a regulação na internet, permitindo uma agenda que destrua as conquistas do Marco Civil da Internet em relação à liberdade, neutralidade e privacidade da rede”, diz.

Segurança para quem?

A visão majoritária da CPI é que os crimes cometidos na internet estão dissociados da legislação penal que o país tem atualmente. Por conta disso, deputados na comissão discursam a favor de a polícia não precisar de autorização para acessar dados pessoais de suspeitos.

O deputado e delegado Éder Mauro (PSD-PA) declarou que “nos crimes de estelionato, pedofilia e outros, que são feitos não pelos meios móveis, mas pelos meios fixos, como é o caso dos cyber, dos notes, dos computadores fixos, que só são identificados também pelos IPs, a meu ver também não é preciso autorização policial para conseguir os dados cadastrais, bastando a autoridade policial requerer às operadoras”.

Segundo Amadeu, essa distinção é errônea, pois a internet também faz parte do espaço público, e os crimes cometidos nela estão sujeitos à legislação e procedimentos do código penal. “A violação dos direitos e crimes na rede devem ser considerados crimes pelo código penal. O que alguns deputados pensam é em reduzir os direitos das pessoas na internet sob o argumento de aumentar a ação da polícia e ter mais segurança, o que não funciona na prática. Para entrar na casa de alguém, o policial precisa de ordem judicial. Se eu pegar a conta de e-mail de uma pessoa, aliado aos seus dados de navegação, vou ter uma quantidade de informações muito grande sobre a pessoa. Acessar essas informações anularia a sua privacidade, então por que a ordem judicial não seria necessária também?”, questiona o sociólogo.

Vigilância

Sob o discurso de querer fornecer mais segurança e proteção aos internautas, os deputados já defenderam que as regras para se cadastrar em redes sociais e navegar na internet sejam mais rígidas. “Por que no cadastro das contas [em Facebook, Twitter, Yahoo….] não pedem ficha corrida com telefone, endereço, CPF, RG? Assim ficaria muito mais fácil detectar as pessoas depois do ataque a outras”, afirmou o deputado Marco Feliciano em uma das reuniões.

Sérgio garante que uma medida como essa não só não faria nada para aumentar a segurança dos usuários na rede, como deixaria todas as pessoas que navegam mais vulneráveis.

“Se eu falasse que todo mundo fosse obrigado a andar na rua com nome, RG e CPF estampado nas roupas, visíveis, todo mundo ia ficar indignado, porque isso não resolve nada. Um criminoso de alta periculosidade na rede sabe que tem que usar tecnologias de anonimização, apagamento dos rastros, se esconder. Quem ficaria vulnerável com isso é o cidadão comum. Na internet é a mesma coisa. E fornecer mais dados só aumentaria o problema. Iríamos deixar CPF e RG, junto com dados de navegação, para que criminosos tenham mais chance de utilizar esses dados e realizar chantagens com eles”, explica Amadeu.

Recomendações perigosas

O relatório final da CPI pode recomendar a diversos órgãos do governo que altere pontos do Marco Civil, que entrou em vigor em 2014 através da Lei 12.965/14; assim como pode sugerir a aprovação de projetos de leis (PLs) relacionados à rede em caráter de urgência. Para Sérgio, esse é o maior perigo.

“Uma lei que pode ser votada com urgência é o PL 215, conhecido como ‘PL espião’. Um dos dispositivos da lei permite que as pessoas que criticarem deputados, autoridades, possam ter sua pena dobrada se a crítica for considerada injúria, calúnia ou difamação. O curioso é que ao mesmo tempo que a CPI quer tornar a vida do cidadão completamente transparente para o estado e corporações, o estado e as corporações são cada vez mais opacos na sociedade. É o contrário. Temos que ter privacidade para os fracos e transparência total para as ações dos poderosos”, defende.

O especialista acredita que não são leis mais rígidas e restrições à forma de navegar na rede que vão resolver a questão da segurança. “Segurança na internet é um processo, é estar o tempo todo entendendo que existem técnicas de roubar informações, links que põem intrusores na máquina, roubam senhas etc. As pessoas precisam ter informação sobre isso, uma CPI nunca vai resolver esse fenômeno”, conclui.

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