“Temos a grande responsabilidade de dar continuidade ao processo da Constituinte popular e dar respostas às pessoas que votaram no nosso plebiscito”. Esse é, na visão de Paola Estrada, da secretaria operativa nacional, o grande desafio colocado para os ativistas que se reúnem no Encontro Nacional Popular pela Constituinte, que acontece nesta sexta, em Belo Horizonte.
Na mesa de abertura, representantes de algumas das principais organizações e movimentos que articularam o Plebiscito Popular que completa hoje um ano de realização. Na ocasião, 7,5 milhões de pessoas votaram na consulta, manifestando seu apoio à realização de uma constituinte exclusiva para modificar o sistema político ampliando a democracia e a participação popular.
As falas deixaram clara a importância da nova etapa da campanha, que agora passará a promover a discussão nos comitês do conteúdo da reforma política, buscando definir qual o sistema político que queremos. Essa discussão buscará ser ampliada para além dos comitês, com a articulação de Assembleias Populares pela Constituinte, reunindo militantes de todos os movimentos e da população em geral para discutir as mudanças necessárias no sistema político para a construção do Brasil que queremos.
Crise em todas as instituições
A mesa começou com a fala de Júlio Turra, da direção nacional da CUT, que apresentou uma síntese das discussões da Secretaria da Operativa Nacional da Campanha do Plebiscito a respeito da conjuntura política e econômica atual. Analisando a crise política em que se encontra o governo Dilma,Turra avalia que os erros políticos pesam mais na perda de popularidade da presidente do que a ação das forças da direita, que pressionam principalmente com a pauta da corrupção. O maior destes erros foi o afastamento do governo da base popular e dos movimentos sociais que garantiram a eleição a presidenta em outubro de 2014, com a adoção de um programa de ajuste fiscal recessivo, que incluiu ataque a direitos dos trabalhadores.
“O problema não é a direita, ela nunca nos poupará. O problema é a perda de apoio social e popular do governo. Cada um aqui que tem trabalho de base, vê isso. A crítica das pessoas essencialmente é: prometeu uma coisa e fez outra”, disse Turra, lembrando do crescimento do desemprego e outros problemas sociais que contradizem o discurso eleito no ano passado.
Essa situação de perda de apoio ao governo amplia a crise política mais ampla do Brasil, que se traduz numa perda de representatividade e legitimidade das instituições. “Nessa conjuntura, em que o Judiciário se torna ‘todo poderoso’, onde o Congresso tem ainda menos credibilidade que o governo federal, todas as instituições estão em jogo. Não estamos falando apenas de uma reforma eleitoral, mas de uma mudança mais profunda, e a pauta da Constituinte ganha força”, defendeu Turra.
Ele defendeu a importância de se dar novos passos na construção da Constituinte. “É necessário abrir debate sobre que Constituinte queremos, mantendo os comitês populares em atividade, fazendo formação e discussão. Aquele grito das ruas de junho de 2013 está atualizado hoje”, disse o dirigente da CUT, lembrando das grandes manifestações populares que mobilizaram centenas de milhares de pessoas naquele momento.
Turra também defendeu a participação dos militantes da Campanha em outros espaços dos movimentos sociais e populares, defendendo a necessidade da Constituinte e reforçando a luta de outros setores por reformas estruturais, como a reforma agrária, mudanças tributárias distributivas, manutenção da democracia etc. “É nosso dever ampliar essa discussão e também participar de espaços como a Conferência Nacional e Popular em defesa da democracia e por uma nova política econômica, organizada por diversas organizações e movimentos, que acontece neste sábado para cobrar mudanças na política econômica e defender a democracia, contra o golpismo”, afirmou.
Combate ao neoliberalismo
O dirigente do MST Alexandre Conceição contextualizou a crise econômica e política brasileira com mudanças no capitalismo internacional, que, em sua visão, “se reorganiza numa ofensiva para recolocar no continente latino-americano, sobretudo agora no Brasil, a pauta neoliberal”.
“A crise econômica vai aguçando a crise política e afeta diretamente a crise social. Pois para continuar comendo seu caviar, a elite vai querer cortar a rapadura dos pobres, cortar a farinha e a mandioca da gente. Isso faz parte da grande ofensiva do capital internacional sobre as nossa riquezas e as políticas sociais que foram construídas nos governos mais progressistas”, afirmou.
Ele destacou que o âmago do neoliberalismo é o Estado mínimo, que visa “retirar o Estado da indução do desenvolvimento econômico e social, e coloca o mercado para ser senhor dessas políticas”. “Quando o Estado é mínimo, o mercado é máximo, e não sobrará pedra sobre pedra dos povos organizados do mundo”, alertou.
Nesse contexto, Alexandre reafirmou a crítica contra a política econômica do governo federal. “Temos que fazer enfrentamento dessa agenda inclusive dentro do governo, que ganhou com uma pauta neo-desenvolvimentista, que era pra desenvolver o país com mais direitos para o povo brasileiro, e que começou a governar com uma política neoliberal”, lamentou. “Desde o momento da nomeação do Joaquim Levy e do início de sua política de ajuste fiscal, vários economistas da esquerda sempre disseram que esse ajuste nos levaria a uma recessão e isso está acontecendo agora. Muitos direitos foram retirados nos últimos seis meses da classe trabalhadora e esse ajuste vai nos levar cada vez mais a perda de direitos”.
No Congresso, Alexandre destaca as propostas da Agenda Brasil como um grande risco para os trabalhadores. “Nossa luta contra Agenda Brasil é contra o neoliberalismo. Essa agenda nada mais é que uma roupagem, uma linguagem fácil de comprar para um projeto que é o arcabouço jurídico para que o neoliberalismo seja implementado nesse atual governo. Temos que lutar contra essas articulações que, em nome de uma tal governabilidade que ainda não chegou depois de oito meses de governo, querem vender esse peixe barato, podre, da Agenda Brasil”,
“Temos que discutir a agenda do povo, que não é a do ajuste fiscal, da criminalização dos movimentos sociais, é da articulação e busca de novos direitos. Vamos ter que trocar o pneu com carro andando, porque não fizemos o dever de casa de debater um projeto popular para o Brasil e apresentá-lo para a população e agora vamos ter que fazer isso enquanto fazemos a luta de massa contra o neoliberalismo s as pautas urgentes”, afirma.
Reação conservadora no Congresso
José Antônio Moroni, da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma Política, fez um relato da situação da pauta no Congresso Nacional. Em sua avaliação, o que está sendo discutido no Congresso é apenas uma reforma eleitoral, sem a amplitude das propostas defendidas pelos movimentos populares.
Moroni diz que essas iniciativas de reforma limitada foram tomadas pelo Congresso, entre outros motivos, por conta da própria pressão causada pelo Plebiscito Popular. “Eles tomaram medidas para parar nossa luta e não dar encaminhamento a nossas demandas”, afirma. A pressão foi ainda maior pela opção da OAB de entrar com uma ação no STF para tornar inconstitucional o financiamento empresarial de campanhas.
Por fim, o perfil mais conservador do Parlamento foi reforçada pela fragilidade do Executivo, que não consegue encaminhar as pautas mais progressistas. “O Parlamento sempre foi conservador, mas ainda se via algumas representações de esquerda. Hoje a qualidade desses parlamentares foi mudando e a composição do campo de esquerda não está tão de esquerda assim”, lamenta.
A principal ação da contra-reforma veio da Câmara, liderada por Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que aprovou uma Proposta de Emenda Constitucional que, entre seus principais pontos, legaliza o financiamento empresarial para partidos e acaba com a reeleição para cargos executivos, sem mexer no sistema eleitoral. Além disso, foi rejeitada a proposta que garantiria 10% de representação de para mulheres no Congresso. Moroni classifica como vergonhosa a própria proposta, já que “abre mão da discussão de paridade de gênero ao apresentar uma cota tão reduzida.”, critica.
No Senado, Moroni vê o risco de uma armadilha para os movimentos. “O Senado não está discutindo as PECs que vieram da Câmara, o que foi votado essa semana foi um projeto de lei. Estão intencionalmente congelando a discussão para jogar a pressão sobre a Câmara.
“É uma atitude arbitrária do Parlamento. Reforça que temos que forçar o Senado a votar a PEC que diz respeito ao financiamento empresarial de campanha”, defende.
Entre as pautas do Congresso que representam perigo para os progressistas, Moroni destacou o Estatuto da Família, com forte viés autoritário e conservador. A proposta, que deve ser votada na próxima semana, traz elementos de outras propostas conservadoras, como o Estatuto do Nascituro, que ameaçava direitos das mulheres, e o reforço à discriminação contra homossexuais.
“Isso não é só uma disputa ideológica, vai ter impacto nas políticas públicas, impedir que famílias não convencionais acessem as políticas públicas”, denuncia.
Assembleias populares pela constituinte
A mesa foi finalizada por Paola Estrada, representante da Secretaria Operativa Nacional do Plebiscito, que trouxe os desafios e tarefas concretas colocadas para a campanha nessa conjuntura. Ela contextualizou a crise de representatividade brasileira como um sintoma comum a diversos países da América Latina, causado por problemas no processo de redemocratização da região.
“A raiz da crise é porque o processo de redemocratização do Brasil se deu de forma conservadora e incompleta. Toda a América Latina está sofrendo, pois passou pelos mesmos processos de transição democrática conservadora. A Guatemala está prestes a entrar em uma convulsão social e a bandeira que tem surgido como alternativa é a Constituinte. Para nos defendermos de todas as ameaças de retrocessos, a bandeira da constituinte se faz atual e urgente, mais do que nunca”, afirmou.
Ela sintetiza os desafios da Campanha em sua rearticulação em torno de propostas concretas, a serem discutidas e construídas em Assembleias Populares articuladas em torno dos comitês da campanha. “O desafio central é construir uma meta-síntese concreta, deixar claro onde queremos chegar. Uma meta-síntese comum que organize a militância e amplie ainda mais a campanha, falando com a população ‘desorganizada’ também”, afirmou, ressaltando a importância da articulação das assembleias populares pela constituinte. “Todos os problemas sociais ainda existem e não vamos resolvê-los se não enfrentarmos a luta do sistema”.
Como tarefas concretas para esse processo de retomada dos comitês, ela colocou o desmascaramento da contra-reforma política, esclarecendo esse processo para a população em geral. “Mais do que fazer a denúncia, precisamos construir uma campanha pedagógica para que o povo brasileiro compreenda todo esse processo. A ignorância política e cultural é também uma forma de dominação”, sustentou.