Adilson Paes de Souza é um cara que pode narrar as fissuras de uma das maiores instituições do Estado brasileiro sob uma perspectiva única: de quem esteve lá dentro. Tenente-coronel da Polícia Militar do Estado de São Paulo – aposentado desde 2012 –, Adilson critica com veemência a violência policial e as políticas de segurança pública. Mais que isso, tenta compreender o funcionamento dessa engrenagem repressiva.
Certa vez, questionou-se sobre os motivos que levam um policial a cometer assassinatos. O resultado foi o livro “O Guardião da Cidade” (Escrituras, 2013), que discute o desempenho da polícia em sua função social de proteger os cidadãos e aponta caminhos para construir uma organização mais humana.
Na entrevista, ele aponta a ineficiência da redução da maioridade penal – “mexeríamos somente com a aparência e efeito, e não com a causa do problema” -, e critica a ausência do Estado na garantia dos direitos básicos da população que, pelo pânico generalizado, elegeu o inimigo da vez: as crianças e adolescentes com idade entre 16 e 18 anos.
Brasil de Fato – Digamos que essa lei seja aprovada no exercício ficcional, como o Brasil ficaria daqui há dez ou 20 anos?
Adilson Paes de Souza – Igual ou pior em termos de segurança pública. Eu me filio àquelas pessoas que são contrárias à redução da maioridade penal, afinal, mexeríamos somente com a aparência e efeito e não com a causa do problema. Como podemos falar nisso se o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), criado em 1990, não foi aplicado até hoje? Basicamente, o que foi implantado, e ainda muito mal, é a parte repressiva e o Estado é o próprio culpado por essa não implementação. A criança ou o adolescente que comete um crime deve ser tipificada através de um ato infracional, o que é diferente de um crime cometido por um adulto. Por isso, o adolescente não deveria passar pela delegacia. Criança e adolescente infrator, como diz o ECA, não é caso de delegacia. Após o registro, o caso deve receber um tratamento adequado. Mas esse sistema não existe. O que acontece, atualmente, é que a infração vira uma ocorrência, como outra qualquer envolvendo maior de idade, e é apresentada na delegacia. Da delegacia o adolescente é encaminhado a uma unidade da Febem, Fundação Casa, ou como você queira chamar. Isso está errado.
Na prática, portanto, não existe uma maioridade penal?
Exato. Crianças de 12, 13 e 14 anos, por exemplo, já são levadas e confinadas em salas de delegacias, muitas vezes no mesmo compartimento dos maiores de idade, por falta de estrutura adequada. Ou seja, o tratamento penal dado ao adolescente infrator já existe. O que estão querendo fazer agora é institucionalizar a redução da maioridade penal para adolescentes de 16 a 18 anos, tratando as infrações como processo criminal. As medidas sociais de prevenção que envolvem a família da criança e do adolescente, principalmente as que estão em situação de risco, não foram implantadas. Dados da Fundação Casa constatam que a maioria dos jovens detidos não tiveram acesso à escola ou, então, evadiram. Além disso, eles não têm emprego e vivem em carência extrema. Um caos social. O que o Estado fez para evitar isso? Nada, se ausentou. Agora, no sistema posto, o Estado aparece justamente para reprimir. As consequências, salvo exceções, é que as Fundações Casa são uma espécie de mini-presídios, onde denúncias de torturas e maus tratos não faltam.
“A redução da maioridade penal é uma política de eliminação de raça”
O pensamento da sociedade é punitivo. Cometeu um crime deve-se pagar por ele. Como construir políticas humanas e de ressocialização?
A questão é: como eu vou ressocializar ou reeducar uma pessoa que não teve uma base porque lá atrás o Estado já se omitiu? É apenas uma questão de semântica. Não é questão de um “tratamento diferenciado” pela característica do ser menor de 18 anos. Pense: ele é colocado para se reeducar em um mini-presídio, mas lá há inúmeras denúncias de tortura e maus tratos. Inclusive, existem vazamentos de cartas de menores infratores dessas instituições relatando os mais variados tipos de tortura. Uma coisa espantosa! “Ah, mas o adolescente que praticou crimes hediondos é um monstro”. Não, ele é um ser humano que necessita de atenção especial do Estado. Temos que criar um sistema que acredite nesse ser humano e reestabeleça suas condições de viver em sociedade. Aliás, as estatísticas mostram que adolescentes envolvidos em crimes hediondos representam apenas 1%. É uma mentira falar que eles são responsáveis pelo aumento da criminalidade.
A sensação que se tem é que há um clamor social, talvez construído, por medidas mais duras. Como entender isso?
Existe a mídia, sobretudo a tradicional, que realiza uma cobertura sensacionalista. Fazem um fato ganhar uma intensidade dez vezes maior do que realmente foi. Martelam isso. Além disso, a sociedade se sente abandonada. É quase como se dissesse: “agora é cada um por si”. E as vozes das periferias respondem “não temos o Estado garantindo e provendo direitos, mas somente para reprimir”. Em 2013, quando os moradores dos Jardins e da Paulista, que não estavam habituados com a violência da polícia, começaram a apanhar nas manifestações, o pessoal da periferia falou: “vocês estão reclamando agora? Isso acontece todo dia lá com a gente. Aqui a bala é de borracha, lá não. E poucos ficam vivos para contar a história”. As pessoas querem um Estado que não se apresente apenas para cobrar tributos ou reprimir, mas para garantir direitos básicos. E quando o Estado abandona a sociedade à sua própria sorte, o pânico e o medo é disseminado. Com isso a sociedade vai em busca de super-heróis, de leis esdrúxulas e de medidas absurdas como a redução da maioridade penal. As pessoas estão desesperadas e, a partir disso, vão procurar qualquer coisa que resolva seus problemas. E com esse desespero e por existir uma estrutura de Estado que necessita de um inimigo, se elegeu o inimigo público “número um” da nação: o jovem entre 16 e 18 anos. Ninguém quer analisar a estrutura colocada, somente agir com viés meramente repressivo, como se isso fosse resolver.
Alguns críticos da PEC 171/1993 apontam seu caráter simbólico: mostrar ao governo que as forças conservadoras estão crescendo no poder. Outros também apontam interesses econômicos de parlamentares financiados por gestores de presídios privados.
Sim, há interesses, com mais presos haverá a necessidade de se criar mais presídios e se investir mais em equipamentos de segurança. Quanto aos simbólicos, analiso que o nosso governo, em termos federais, é conservador. Embora há falas no Poder Executivo Federal contrárias à redução da maioridade penal, não existe uma ação incisiva. Com a maioria no Congresso, era para o governo estar tranquilo. Mas há uma preocupação com os votos dos eleitores conservadores e com os acordos eleitorais que fizeram, que abarca várias tendências em um mesmo governo. Qualquer oposição à redução pode ferir os interesses desses grupos conservadores. No entanto, há de se lembrar que essa PEC é inconstitucional. Os princípios e garantias individuais não são apenas aqueles garantidos no artigo 5º da Constituição, que afirma que a maioridade penal se dá com 18 anos. Há vários outros no corpo do texto. Para mudar isso só com uma nova Constituição, vinda de uma Constituinte que criaria outros valores. Não é por meio de uma PEC. Senão, daqui a pouco vamos ter que reduzir a maioridade penal para 14, para 12, para dez, até jovens de determinada faixa etária e região do país já nascerem presos.
Imagino que o senhor se refira a jovens negros, pobres e moradores de regiões periféricas…
Essa medida da redução da maioridade penal é eugenia. É um termo forte, mas é uma questão de eugenia. A redução da maioridade penal é uma política de eliminação de raça. “Eu rotulo o inimigo e faço de tudo para contê-lo”. Hitler fez isso quando criou o partido nazista e elegeu os judeus como os grandes culpados pelas mazelas do mundo. No seu ideário estava fazendo um bem. Temos que tomar cuidado com essas ideias totalitárias, que estão sempre pululando. Foram discursos como esse, de inimigo, que embasou a Ditadura Militar no Brasil. Comunistas ou quem criticava o governo era considero inimigo da nação e tinha que ser eliminado. O relatório da Comissão Nacional da Verdade aponta o que foi esse aparelho repressor do Estado. A Doutrina de Segurança Nacional, que embasou o Golpe de 1964 e deu suporte para Ditadura, não foi desmontada no processo de redemocratização do país. Se estivéssemos em um Estado democrático de direito, de fato, a primeira coisa que faríamos seria romper com os instrumentos incompatíveis com a democracia. Desde 1983, temos a mesma Lei de Segurança Nacional. É por isso que não acredito que vivemos em um Estado democrático de direito. Mas prefiro ver o copo meio cheio. A discussão sobre a redução da maioridade penal tem um lado positivo: escancara que vivemos sob a égide da Lei de Segurança Nacional.