A América Latina e a nova ofensiva imperial: Entrevista com FC Leite Filho

O final da década de 90 e início do século XXI na América Latina foi marcado pela ascensão de governos progressistas, em maior ou menor grau, em diversos países. Dedicados a construção de uma alternativa a doutrina neoliberal imposta pelo império de Washington, o fato é que conseguiram imprimir nova direção ao continente com políticas que favoreceram principalmente os cidadãos mais pobres.

Absorto em outras questões e julgando ter conseguido impor uma ordem unipolar ao mundo, os EUA se depararam com um movimento político pouco disposto a ceder a seus caprichos. O fortalecimento de instituições multilaterais como Mercosul, Alba e Unasul impulsionou a integração latino-americana que por sua vez isolou Washington em diversas frentes, como no caso de Cuba em que se viu obrigado a mudar minimamente sua política por conta do total descrédito em que caíram.

No entanto, a vocação de uma potência hegemônica, ainda que declinante, tornou a se manifestar e agora os EUA inauguraram nova rodada de hostilidades contra a América Latina, como no caso em que declarou ser a Venezuela uma ameaça a sua segurança nacional, decretando inclusive sanções contra alguns cidadãos do país bolivariano. A aprovação do aumento de tropas no Peru e a ressurgimento da IV frota evidenciam a guinada norte-americana no sentido de pôr ordem no que consideram “seu quintal”.

É diante desse panorama que o Blog dos Desenvolvimentistas entrevistou FC Leite Filho, jornalista e editor do blog Café na Política. FC nos adverte que a postura beligerante dos EUA se dá por sua ambição de dominar mercados e recursos. Discorre sobre as lideranças que impulsionaram a integração latino-americana e sobre os vários acontecimentos recentes que desestabilizaram os governos progressistas.

Confira a íntegra:

Como entender a desestabilização que alguns países da América Latina, principalmente Venezuela, Argentina e Brasil, têm sofrido? Que interesses estão por trás disso?

A integração latino-americana desatada pelo presidente Hugo Chávez, presidente da Venezuela, a partir de 1999, quando se instalou no Palácio de Miraflores, fez os países do subcontinente priorizar seus negócios entre si e não mais dependentes dos Estados Unidos e Europa. Eles começaram a trocar petróleo por frutas, gado, alimentos e a contratar empresas brasileiras, argentinas e colombianas para fazer suas pontes, estradas, metrôs, portos, petroleiros etc. Isto, naturalmente, traduziu-se em prejuízos às empresas americanas, acostumadas que estavam a ganhar automaticamente todas as licitações nesse terreno ou mesmo dispensando estas.

Há ainda o aspecto geoestratégico. A Venezuela, por exemplo, era, antes de Chávez, um protetorado dos Estados Unidos, que dominavam sua política, sua economia e, particularmente a energia, ou seja, suas imensas jazidas de petróleo e gás, consideradas as maiores do mundo. No Brasil, a descoberta do petróleo na área ,do pré-sal, cuja capacidade não foi de todo definida mas beira aí alguns bilhões de barris despertou a velha cobiça das Sete Irmãs, que hoje são em menor número, mas continuam com a mesma gula e poder. Acresça-se o fato de os Estados Unidos terem sempre atuado por aqui como donos do pedaço. Quando o coronel Vernon Walters, designado pelo presidente Kennedy, em 1962, para articular o golpe militar de 1964 no Brasil, alertou: “Não podemos perder o Brasil, porque o Brasil não é uma Cuba, o Brasil é uma China”. Já a Argentina foi ao longo da história (à exceção dos períodos Perón e Kirchner) um protetorado do capital financeiro internacional. Então, esses interesses agora se agudizaram, depois de terem sido, em parte, negligenciados em função de outras prioridades americanas no Oriente Médio e na Ásia e tendem a apelar até para a guerra militar, se preciso for, como previu o presidente Nicolás Maduro, sucessor de Chávez.

Porque ao mesmo tempo em que retoma relações com Cuba os EUA alegam ser Caracas uma ameaça a sua segurança nacional? Trata-se de política externa contraditória?

Este foi um golpe de mestre do presidente Barack Obama, para se livrar e desmoralizar a política belicista de seus rivais republicanos na política estadunidense. Obama disse que o embargo de 50 anos à Cuba não produziu nada de benéfico para os chamados interesses ocidentais. Não se deduza daí que Obama esteja sendo bonzinho. Ele visa afastar Cuba da Venezuela e do resto da América Latina e atrelá-la à política de Washington, mas Cuba, que ainda é, entranhadamente, castrista, recusa todos esses mimos e aprofunda cada vez mais seus vínculos com Maduro, pois toda a sua infraestrutura depende do petróleo venezuelano e da tecnologia do Brasil e da Argentina. Tentando se equilibrar com os falcões locais, Obama, ao mesmo tempo dá uma guinada, no que demonstra não estar nem aí para a política de boa vizinhança, decreta as sanções contra Caracas quase que ao mesmo tempo que tentava aproximar-se de Cuba.

Quais reais motivos movem Washington a escalar as hostilidades contra Venezuela e seu governo bolivariano?

A pergunta está em parte respondida no primeiro item. Mas Washington, na realidade, sempre hostilizou a política chavista. Para isso, utilizou todo o seu aparato, que vai das sabotagens econômicas e das várias tentativas de golpe, à mobilização da mídia internacional para desmonizar e desmoralizar o bolivarianismo. Observe o noticiário da grande imprensa no Brasil, na Argentina, na Colômbia e até na Espanha. Eles acharam que derrubariam fácil o Maduro, em quem viam um líder fraco e mesmo trapalhão. Mas Maduro é um quadro importante. Ele teceu, durante seis anos como chanceler de Chávez, toda a teia latino-americana, chinesa e árabe, pela qual certos golpes, como a queda do preço do petróleo não mais afeta de morte o regime. Nicolas Maduro ainda revelou ser um bom ganhador de eleições, mais até do que o Chávez, apesar de não ter o carisma deste. Outro ponto para ele foi o de neutralizar a mídia local, coisa que o Chávez tampouco conseguiu. Finalmente, seria interessante observar o que está acontecendo na Espanha. O movimento popular Podemos, de Pablo Iglesias, credencia-se para ter importante papel nas eleições nacionais de 20 de dezembro, podendo até fazer o primeiro-ministro, se não agora, pelo menos nos próximos anos. Ironia das ironias: o Podemos tem suas raízes no bolivarianismo e na experiência e defesa dos governos populares de Chávez, Evo Moralez, Kirchner, Lula, Daniel Ortega e Rafael Correa.

Sobre a Argentina. Qual foi o desfecho do conflito com os fundos abutres? Ele teve alguma influência nas relações bilaterais Buenos Aires – Washington?

Os fundos abutres quiseram quebrar a Argentina com aquela conversa do juiz Griesa, de Nova York. Chegaram mesmo a declarar o default do país. Cristina resistiu bravamente, como tem resistido e ganhado todas as batalhas com a mídia de lá, dominada pelo Grupo Clarín. Ela simplesmente não pagou cerca de 1,3 bi de dólares, por uns títulos podres que os abutres haviam comprado por uma bagatela dos enganados pelo corralito. Cristina simplesmente afirmou, quando revidou o achaque dos buitres (é assim como eles são chamados em Buenos Aires): “Amanhã vai ser um dia normal e tudo vai continuar como nos outros dias. E foi o que aconteceu. A Argentina não quebrou e sua economia está bem melhor do que a nossa. Nós precisamos de líderes deste talante, que não se dobram, pelo contrário, vão em frente, com a soberania, a independência e, principalmente, os interesses de nossos países.

O caso Nísman permanece sem desfecho. É possível que o governo argentino tenha envolvimento na morte do promotor? Quem se beneficiou com sua morte?

Este caso é outra crise fabricada pela mídia, tendo a auxiliá-las os fundos buitres, que agem como irmãs siamesas. O promotor Alberto Nisman dominou a cena midiática durante quase dez anos como pretenso defensor das vítimas do atentado à associação israelita AMIA, que redundou em 85 mortos e quase 300 feridos. Não fez nada pelas vítimas nem pelas investigações do caso, que até hoje, depois de 21 anos, não saíram da estaca zero. Era também um homem muito ligado à embaixada dos Estados Unidos, em Buenos Aires, a quem submetia seus relatórios, antes de encaminhar às autoridades (isto foi comprovado pelos documentos da embaixada vazados pelo Wikileaks). Depois, ele se envolveu numa denúncia sem pé nem cabeça contra a presidenta Cristina Kirchner. Seu papel inseria-se num plano diabólico, com base numa espécie de megafactoide, que queria aproveitar a comoção do Charlie Hebdo com aqueles milhões que percorreram as ruas da França, para transplantá-la para Buenos Aires. Era algo megalomaníaco, mas que poderia funcionar se se defrontasse com uma presidenta débil. O objetivo era derrocar a presidenta Cristina Kirchner ou, no mínimo, abalar a performance de seu partido na eleição presidencial do próximo 20 de outubro. O promotor acabou pagando com a morte, não se sabe se por suicídio unilateral ou induzido ou mesmo assassinado, pois a causa envolve interesses imperscrutáveis da CIA, do Mossad israelense e do submundo dos serviços secretos da Argentina. Como se sabe, até o incidente Nisman, esses serviços eram dominados por egressos da ditadura. Cristina aproveitou a oportunidade para fazer uma limpa no organismo e depois foi inocentada da denúncia mal-ajambrada de Nisman. Aquilo que era um golpe em seu prestígio político acabou por alça-la ainda mais na simpatia dos argentinos. Segundo as últimas pesquisas, seu prestígio situa-se acima dos 45%.

De que forma EUA e União Europeia encaram a ascensão de instâncias multilaterais como BRICS, Unasul e ALBA? Preocupa-lhes o fato de não estarem sobre sua tutela?

Estas instituições é que têm garantido a sobrevivência dos governos populares, na medida que previnem golpes e sustentam suas economias e políticas sociais dos ataques especulativos, das guerras econômicas e da sabotagem midiática. O BRICs, que chegou a ser esnobado como “piada” pelos doutos de Washington e Londres, é que está suprindo, com empréstimos a longo prazo, os prejuízos com a queda do petróleo, os quais afetaram dramaticamente a Venezuela e mais ainda a Rússia. É outro sinal de independência em relação aos antigos mercados cativos desses dois centros financeiros e uma prova de que o mundo multipolar e não mais unipolar, como querem os americanos, é possível. O plano dos mercados era baixar o preço do petróleo a menos de 30 dólares, mas agora, com essa crise do Yemen, grande país exportador do ouro negro e passagem dos navios petroleiros do mundo árabe, tudo pode acontecer, inclusive o petróleo voltar a subir.

Como o Brasil se insere nesse contexto de formação de uma ordem mundial multipolar? Quais os cuidados e contribuições que o Brasil pode adotar nesse caminho?

O Brasil avançou muito neste papel durante o governo Lula. A Dilma travou um pouco este processo, no primeiro governo, mas agora parece empenhada em participar mais, tanto da Unasul como dos BRICs. Seu apoio à Venezuela, neste momento, é crucial para a sobrevivência dessa política de integração dos emergentes. Seja como for, o Brasil, pelo peso de sua economia e amplitude de seu território, além da afinidade de que desfruta com os hermanos latino-americanos, é uma peça decisiva nesse xadrez.

O entendimento e cooperação entre os Estados latino-americanos está acontecendo? A quantas anda o processo?

A integração ainda está no seu estágio inicial. A morte de Chávez e o recolhimento do Lula diminuíram um pouco a seu vigor. Chávez e Lula eram dois caixeiros-viajantes que, com sua presença física constante nos diversos países, impulsionavam esse processo. Mas como atingiu uma dinâmica própria, creio que deve progredir, ainda que em ritmo mais lento. Vamos ver a eleição na Argentina. Se a Cristina fizer seu sucessor, ela terá mais tempo de substituir o Hugo Chávez nesta articulação. Essa mulher tem muita garra e é corajuda, como dizem nossos hermanos.

Quanto aos milhares de marines autorizados a desembarcar no Peru. Eles representam ameaça à América do Sul? Que objetivos esse contingente possui?

O Peru está como o México, super atrelados aos americanos. Seu presidente, Olanta Humala, que era chavista além de militar, entregou-se tal modo ao sistema de dominação americano-europeu, que privatizou tudo, desde a Petroperu até o Banco de la Nación. Agora, ele abre as portas para os soldados estadunidenses instalarem bases e cruzarem o território, sem necessidade sequer de apresentar documento. Mas isto também tem seus influxos. Você se lembra das sete bases que os Estados Unidos queriam instalar na Colômbia. Onde estão essas bases. Isto é mais para nos infundir medo.

Quais as perspectivas diante desse quadro geopolítico internacional? Que fazer para deter a investida contra os governos não-alinhados da América Latina?

Eu só espero que a Dilma não dê uma de João Goulart, querendo se compor com a direita. O Brizola aconselhou-o muito as e voltar para as suas bases. Jango era, por natureza, um tipo conciliador, que ouvia o embaixador americano, Lincoln Gordon, o golpista-mor, digamos assim. Por isso, foi atropelado pelo golpe de 64. É claro que a situação é outra e a Dilma tem uma tradição de enfrentamento. O perigo no momento é midiático. A matriz de opinião da mídia consegue se infiltrar na sociedade e impor sua narrativa. Você quer um exemplo? Outro dia fui falar para uma amiga dos riscos que estamos sofrendo com uma nova privataria do tipo FHC, que, como você sabe, rebentou no México e Peru. Sabe o que ela me respondeu? “Ora, mas não é a Dilma que está querendo privatizara a Caixa Econômica?” E eu fiquei sem argumentos. Como é que a Dilma entra numa dessas. Como é que ela coloca contra si 200 mil funcionários da Caixa, que seriam seus potenciais defensores e aliados na luta contra o golpismo? Prefiro crer que isso seja boato. Mas sou um otimista e acho que uma mobilização maciça das forças progressistas, inclusive partindo da internet, pode ganhar as ruas e reverter esta arremetida golpista. O Lula tampouco pode continuar calado e o Cid Gomes parece estar surgindo aí para abrir um flanco na classe média.

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