Análise crítica dos votos distritais no Brasil e no mundo

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Voto Distrital e Crise nos EUA

O impasse político na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos que resultou na aprovação, na 25ª hora, de uma proposta (meia-boca) que evitou o calote de dívida em 2011 tem como principal causa política o voto distrital. O conflito e a radicalização entre republicanos e democratas continuará. Há 437 deputados federais e, destes, pouco menos de 400 são eleitos por distritos certos, isto é, distritos nos quais sua eleição está praticamente assegurada. Assim, a principal disputa para um candidato republicano ou democrata não é a eleição, mas a primária que é realizada em seu distrito. Se você for republicano e disputar a eleição em um distrito republicano, sabe que o grande desafio é ser escolhido no dia das primárias. O mesmo vale para um democrata em um distrito democrata. Passada essa barreira, você praticamente pode se considerar eleito muito antes do dia da eleição.
Vale perguntar o que é preciso para vencer nas primárias. Quem escolhe o candidato de um partido são os militantes mais aguerridos daquele partido, as pessoas mais empenhadas, as pessoas que mais participam das atividades políticas, aqueles que estão mais mobilizados. Na maioria dos casos, essas pessoas ou são republicanos radicais ou democratas radicais. Assim, para que você seja o escolhido para concorrer em seu distrito, terá que agradar não aos seus eleitores, mas à maioria radical que vota na primária republicana ou democrata. O grande incentivo, portanto, dos deputados federais -americanos é para a radicalização. Exatamente o espetáculo que acabamos de ver há duas semanas. Não há nada no DNA daqueles representantes que os torne radicais. O que há são instituições políticas que levam a isso, em particular o voto distrital e a manipulação dos limites de cada distrito para diminuir o risco de não serem reeleitos.
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Qualquer americano sabe o que significa “gerrymandering”. Originalmente escrito “Gerry-mander”, o termo foi utilizado pela primeira vez pelo “Boston Gazette” em 26 de março de 1812, quando o então governador de Massachusetts, Elbridge Gerry, manipulou os limites dos distritos de seu estado com o objetivo de beneficiar seu partido. Um dos distritos ficou com o formato de uma salamandra. Combinando-se Gerry com “salamander” tem-se hoje o consagrado termo “gerrymandering”, que é sinônimo de definir o distrito eleitoral de maneira a assegurar a eleição de um determinado candidato.

Não há político que não queira assegurar sua eterna sobrevivência eleitoral. Isso vale para brasileiros e americanos. Quando o sistema eleitoral é distrital, a eterna reeleição é um objetivo bastante fácil de ser atingido. Basta definir o distrito de tal maneira que bem mais do que 50% dos eleitores votem sistematicamente republicano ou democrata. Nos Estados Unidos, o perfil básico de um eleitor republicano é bem conhecido: renda mais elevada, morador de subúrbio e, muitas vezes, de áreas populacionalmente menos densas. O eleitor democrata tende a morar em lugares densamente habitados, tem renda mais baixa e está mais presente nas “inner cities”. Adicione-se a isso que, dentro de certos limites jurídicos, são os políticos que definem os distritos nos Estados Unidos.
Os dois principais limites jurídicos nos Estados Unidos são: todos os distritos precisam ter rigorosamente o mesmo número de eleitores e as minorias étnicas não podem estar diluídas nos distritos ao ponto de não conseguirem eleger um representante. É importante mencionar que os americanos precisam redistritalizar todo o país a cada dez anos com base nos dados do censo. Como a população se muda com frequência, há áreas que perdem habitantes e outras que ganham. Assim, a redistritalização é feita a cada década para assegurar ao máximo que seja cumprida a determinação de “um homem, um voto”, de que todos os distritos tenham exatamente o mesmo número de eleitores (esse princípio, se aplicado ao caso brasileiro, levaria o Estado de São Paulo a passar dos atuais 70 deputados federais para aproximadamente 120, como demonstrei em artigo aqui publicado).
Aqui estão todos os ingredientes do “gerrymandering”. Na figura “a”, os três distritos tiveram seus limites definidos de tal maneira que em todos eles venceria um candidato republicano (azul). Três regiões de cada distrito votam sistematicamente em um republicano (como se fosse a região dos Jardins, em São Paulo, votando em um candidato do PSDB, enquanto as outras duas regiões votariam no candidato do PT). A figura “b” tem a mesma distribuição de eleitores, mas os limites dos distritos são diferentes. Neste caso, os republicanos elegeriam dois deputados e os democratas passariam a eleger um deputado. Há ainda outra possibilidade (figura “c”), na qual os novos limites dos distritos levariam a dois deputados democratas (vermelho) e um republicano. A definição dos limites dos distritos é uma questão de força política. De maneira geral, nos Estados onde os republicanos controlam o governo estadual, no ano da redistritalização há a manipulação que leva a mais distritos onde a eleição de um deputado federal republicano é certa. O mesmo vale para governadores democratas.
Há ainda uma terceira possibilidade: deputados federais republicanos e democratas em exercício de mandato, de um determinado Estado, fazem um acordão, de tal maneira que cada um terá seu distrito certo, onde cada um, independentemente do partido, terá a reeleição garantida. Foi assim que, em 2002, de todos os deputados que disputaram a reeleição nos Estados Unidos somente quatro foram derrotados. Algo vergonhoso para o país que mais defende a competitividade econômica. Não há competitividade política. Isso é obra e graça do sistema distrital combinado com “gerrymandering”.
Se você for um deputado federal americano e quiser redesenhar seu distrito de maneira a tornar mais fácil ainda sua reeleição, basta comprar, por US$ 7.500, o programa de computador “Maptitude for Redistricting”. Trata-se de uma completíssima base de dados georreferenciada: dados eleitorais, de renda, resultados de primárias, população, número de transações imobiliárias e todas as estatísticas que pudermos imaginar. Esse programa facilita sobremaneira a definição de um distrito no qual o deputado com mandato jamais perderá a reeleição. A quantia de US$ 7.500 é muito pequena, quando se pensa no benefício esperado desse programa de computador.
O quarto distrito de Illinois é uma vergonha em termos de “gerrymandering”, e manipulação para perpetuação no poder de um deputado federal democrata. Pode-se ver na figura duas áreas verdes, ao sul e ao norte. As duas áreas contêm o voto hispânico, predominantemente democrata, e estão ligadas por uma faixa muito estreita, com dois quilômetros de extensão, que passa exatamente em cima do asfalto da rodovia interestadual 294, ou seja, um trecho onde não existe sequer um eleitor. Trata-se de um “gerrymandering” tão escandaloso quanto o que eu chamaria de “distrito dos surfistas”, o 23 ºda Califórnia, que também eterniza no poder um representante democrata. É formado por uma estrita faixa litorânea, densamente povoada por surfistas, que desce de San Luis Obispo até Port Hueneme. Manipulação não é, evidentemente, monopólio dos democratas. O 22º distrito do Texas foi redesenhado, em 2003, para favorecer, o que acabou acontecendo, o republicano Tom DeLay. Graças a vários recortes esquisitos, foi possível retirar da área contígua eleitores tradicionalmente democratas.
O fato é que, na eleição de 2002, em pouco mais de 80 distritos houve somente um candidato, ou seja, quase 20% de toda a Câmara dos Deputados foram conquistados sem competição alguma. Hoje, a Câmara é um local fossilizado e radicalizado. A grande demonstração para o mundo desse fato ocorreu há duas semanas, porque dizia respeito a uma votação que tinha impacto na vida de todos os países. A radicalização, porém, é a regra.
Penso que muitos defensores do voto distrital no Brasil o façam porque ignoram completamente como ele funciona em outros países. A manipulação não é monopólio dos Estados Unidos. Acontece em todos os lugares onde há deputados eleitos em distritos: Alemanha, Canadá etc. Toda vez que se ignora o funcionamento de um sistema político, é mais fácil idealizá-lo como algo perfeito. É preciso enfrentar a realidade: o sistema distrital leva à redução drástica da competitividade do sistema.
É melhor acreditar em Papai Noel do que acreditar que nossos políticos não farão o mesmo no Brasil. Serão escândalos de corrupção para manipular distritos que nos deixarão com saudades do mensalão, do Ministério dos Transportes de Alfredo Nascimento e de outros escândalos considerados inaceitáveis. Afinal, nada mais valioso do que perpetuar-se no poder.
 
 
Ecos do Voto Distrital em Londres
 
Os defensores do voto distrital no Brasil afirmam que ele é bom porque há mais proximidade entre o eleito e o eleitor. Os distúrbios de Londres eclodiram no distrito de Tottenham, cujo representante é um negro de 39 anos chamado David Lammy nascido e criado em Tottenham. Na eleição de 2010, o comparecimento foi de 58,2%, ou seja, 41,8% dos eleitores não foram votar, talvez porque achassem que os candidatos em disputa não os representavam. Adicionalmente, Lammy teve 59,3% de votos. Isso significa que 40,7% de quem foi às urnas no distrito de Tottenham não têm representante no parlamento britânico. Lammy representa somente 34,5% de todos os eleitores de seu distrito, isto é, 65,5% não têm representantes. Assim, não surpreende que os eleitores que não se sintam representados tenham, utilizando seus aparelhos BlackBerry, organizando os distúrbios que vimos. O sistema eleitoral distrital cria as condições dos distúrbios que aconteceram em Londres porque se trata de uma forma de representação que joga no lixo uma enorme proporção de votos, ou seja, esses votos ficam sem representação no parlamento.
Há muitas interpretações acerca das causas do que ocorreu na Grã-Bretanha e nenhuma delas, até agora, associou a turba urbana ao sistema eleitoral distrital. Sem dúvida, distúrbios daquela natureza têm múltiplas causas. Porém, do ponto de vista das instituições políticas, é possível sustentar que o sistema eleitoral distrital é mais suscetível para gerar tais conflitos do que o sistema eleitoral proporcional. Apenas para recordar, os dois últimos grandes distúrbios nos últimos 20 anos em países desenvolvidos aconteceram também em locais que adotam o sistema eleitoral distrital: Los Angeles em 1992 e França em 2009. Não se trata de mera coincidência, ainda mais quando sabemos que o índice de desemprego da Espanha entre os jovens é maior que 30% e nem por isso são vistas cenas como a que vimos em Londres algumas semanas atrás. O sistema eleitoral espanhol é proporcional.
Em 2004 o livro de Steven I. Wilkinson, professor de Yale, intitulado “Vote and Violence” ganhou o prêmio Woodrow Wilson de melhor livro de ciência política concedido pela Associação Americana de Ciência Política (Apsa). Uma das mais importantes conclusões de Wilkinson, sustentada por meio de dados quantitativos, é que sistemas multipartidários são menos sujeitos a distúrbios do que os sistemas bipartidários gerados pelo voto distrital. É bom lembrar que o principal resultado institucional do sistema eleitoral proporcional é o multipartidarismo, ao passo que o bipartidarismo é quase que inteiramente resultado da adoção do voto distrital.
Wilkinson mostra que toda vez que o partido político majoritário precisa do apoio de outros para formar o governo há menos chances de ocorrência de distúrbios do que quando há um partido capaz de governar sem alianças, isto é, um partido que tem maioria parlamentar para dispensar o apoio de outros. Uma medida simples é o número de partidos efetivos. Sempre que há mais do que 3,5 partidos efetivos, ou os distúrbios não ocorrem ou eles são facilmente controlados. Wilkinson fornece vários exemplos dessa situação: a maioria dos estados da Índia a partir de 2002 (por exemplo, Kerala, Bihar, Orissa), a Bulgária depois de 1990 e a Malásia depois da independência. Todavia, quando há entre 2 e 3,5 partidos efetivos, as chances de distúrbios de difícil controle são muito grandes. Os exemplos dados são o estado indiano de Gurajat em 2002, a Romênia em 1990, os governos estaduais e locais no sul dos Estados Unidos entre 1877 e 1960, os governos locais da Irlanda até 1865 e o governo estadual de Selangor, na Malásia, em 1969. Podemos agora adicionar à lista do autor a Califórnia de 1992, Paris de 2009 e Londres de 2011.
O voto distrital resulta no bipartidarismo – esses são os casos de Estados Unidos, Grã-Bretanha e França. O primeiro autor a mostrar como isso acontece foi Maurice Duverger no seu livro clássico “Os Partidos Políticos”, publicado em 1951. Duverger mostra no capítulo intitulado “número de partidos” que o sistema distrital leva à sub-representação do terceiro partido mais votado. Sempre o terceiro partido acaba com muito menos cadeiras no parlamento do que votos. Por exemplo, é muito comum que quando se tem 25% de votos acabe-se ficando com 5% de cadeiras. Mais recentemente, em um livro de 1989, “Seats and Votes: The Effects and Determinants of Electoral Systems”, Rein Taagepera e Matthew Shugart sofisticaram a análise de Duverger e mostraram que, quanto menor o número de deputados eleitos em um distrito, maiores as chances de que se caminhe para um sistema bipartidário.
A maioria daqueles que defendem o voto distrital no Brasil está defendendo que seja eleito um deputado por distrito. Isso é rigorosamente a mesma coisa que defender o fim de nosso multipartidarismo. Um lema empiricamente verdadeiro para essa campanha em favor do voto distrital poderia ser “voto distrital já, dois partidos já”. Um sistema político com somente dois partidos efetivos é menos permeável às demandas dos jovens desempregados (negros e não negros) da periferia das grandes cidades. Não estou afirmando que no sistema multipartidário tais demandas sejam plenamente atendidas, mas certamente esses grupos têm mais oportunidades de estarem representados (o voto é proporcional) ou mesmo de simplesmente serem ouvidos.
Em países que adotam o sistema eleitoral proporcional, aqueles que ficam na oposição também têm alguma voz junto ao governo. Isso é o mesmo que afirmar que, quando o sistema eleitoral proporcional é adotado, o poder é menos concentrado e, quando o voto distrital é a regra, o poder é mais concentrado. Por exemplo, nos países que adotam o sistema proporcional, as comissões das câmaras dos deputados são compostas por parlamentares tanto do governo quanto da oposição: Brasil, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Alemanha, Holanda, Noruega, Espanha, Suécia e Suíça. Porém, nos países que adotam o voto distrital, a oposição não tem assentos nas comissões legislativas: Canadá, Estados Unidos, Austrália, França e Grã-Bretanha. Assim, outros lemas da campanha a favor do voto distrital poderiam ser “voto distrital já, poder concentrado já” ou, sendo mais direto, “voto distrital já, oposição fora das comissões legislativas já”.
Pode ser que alguém tenha estranhado eu ter colocado a Alemanha na lista dos países que adotam a representação proporcional. O estranhamento, se houve, deve-se tão somente à falta de informação acerca do sistema germânico. Os alemães o denominam sistema “proporcional personalizado”. Na literatura científica especializada, o sistema alemão tem o nome de “mixed member proportional representation”. Aliás, a Alemanha não teria hoje um partido verde se o sistema eleitoral do país fosse o distrital. O sistema alemão é proporcional porque a força e o tamanho dos partidos, justamente o que é o mais importante na política, são definidos pelo sistema eleitoral proporcional. Depois de definida a força dos partidos, as cadeiras no parlamento são distribuídas: em torno de metade dos deputados é eleita no distrito e a outra metade pela lista fechada apresentada pelos partidos na votação proporcional. O fato de o sistema alemão ser denominado no Brasil de “distrital misto” induz ao erro, repito, porque se trata de sistema proporcional no que há de mais importante. Cabe, portanto, o esclarecimento: quem hoje defende o distrital misto alemão está, na verdade, defendendo o sistema proporcional personalizado.
Na Grã-Bretanha, na França e nos Estados Unidos dos distúrbios urbanos, a oposição, portanto, não teve como participar das comissões legislativas. Isso significou mais uma porta fechada para que os arruaceiros e baderneiros pudessem ter sido ouvidos antes que tivessem pensando em ir às ruas para roubar e incendiar. Isso não é obra do acaso, é obra e graça do voto distrital. Se a oposição não tem representação formal nas comissões legislativas, é assim que funciona o poder legislativo quando o voto é distrital, então a oposição terá menos chances de influenciar o processo legislativo de maneira institucional.
O sistema eleitoral distrital favorece a participação de uma pequena elite política, tanto à esquerda quanto à direita, mais engajada. Aliás, isso ficou claro no meu último artigo nesta coluna, que mostrou como o voto distrital e seu irmão siamês, o “gerrymandering”, podem ser responsabilizados pelo impasse no Congresso americano. Quando o sistema eleitoral é proporcional, essa mesma pequena elite mais participativa está lá e é representada, mas sua força fica diluída pela representação daquilo que Fernando Henrique sabiamente denominou de “a voz rouca das ruas”. Na eleição proporcional, todos os votos, sem exceção, entram nos cálculos que levam os partidos a elegerem seus parlamentares. Vale a pena insistir nesse ponto: no sistema eleitoral proporcional todos os votos são contados e têm peso na força de cada partido. Isso não acontece no sistema distrital. Ainda que um partido tenha muitos votos – é o caso do Partido Liberal britânico -, essa votação é desperdiçada, esses votos são jogados no lixo, porque o número de cadeiras não será proporcional aos seus votos. Será bem menor, será ínfimo, não fará desse partido uma terceira força de verdade, não o fará um partido efetivo.
Ora, onde um partido tem muitos votos, mas acaba ficando com poucas cadeiras no parlamento, ou mesmo não elege ninguém no distrito, cria-se o incentivo para que as demandas não sejam vocalizadas pelo parlamento, mas nas ruas ou por outros meios. Eis a lógica dos distúrbios londrinos. Eis o que ocorreu no distrito de Tottenham. Se a proximidade entre o eleito e o eleitor fosse tão grande assim como argumentam os defensores do voto distrital, não teriam acontecido os distúrbios. Eu não quero “blackberry riots” no meu país. Se você também não quer esse tipo de baderna, não precisa esquecer seu BlackBerry. Simplesmente esqueça essa proposta de adoção do voto distrital. É uma proposta que vai contra as evidências empíricas mais elementares.

 
 

O Voto Distrital é Excludente

Quem defende o voto distrital no Brasil defende a exclusão da representação de grande parcela de nosso eleitorado. O voto distrital é clamorosamente excludente. Essa exclusão é a mesma coisa que bipartidarismo. Todos os países que adotam o sistema eleitoral distrital tornam-se países governados por apenas dois partidos que se revezam no poder por meio de maiorias esmagadoras. Ninguém em sã consciência admitirá que a Grã-Bretanha, em toda sua complexidade social e demográfica, seja representada apenas por dois partidos. O mesmo vale para os Estados Unidos. Se esses dois países mudassem seu sistema eleitoral, trocando o voto distrital pelo voto proporcional, eles se tornariam, já nas primeiras eleições legislativas com o novo sistema, países multipartidários. O voto distrital é idêntico a uma camisa de força que limita os movimentos da representação.
Para se obter a maioria dos deputados em uma Câmara eleita por meio do voto distrital, basta que um partido obtenha somente 25% dos votos nacionais. Isso porque é preciso ter 50% de votos em 50% dos distritos, o que resulta nos 25% dos votos nacionais mencionados. Resultado: a maioria governa graças a uma minoria de votos, e a maioria dos votos – 75% – fica de fora do governo. É impossível ser mais excludente. No sistema proporcional, um partido só poderá ter a maioria da Câmara dos Deputados se obtiver 50% dos votos nacionais. É evidente, portanto, que o sistema eleitoral proporcional é infinitamente mais justo do que o distrital. Imagine-se no Brasil, onde todos os eleitores acham que todos os políticos são ladrões, um governo majoritário estabelecido com apenas 25% dos votos. Os eleitores vão dizer: além de ladrões, foram eleitos com a minoria dos votos. Seria a mais completa falta de legitimidade. Surpreende-me o fato de haver defensores desse absurdo no Brasil.
Para entender por que o sistema distrital obriga quem o adota a ter somente dois partidos importantes, vale entender o que acontece na eleição dentro de cada distrito. Em um distrito britânico onde há três candidatos, um conservador, um trabalhista e um liberal-democrata, é comum que o candidato liberal-democrata fique na terceira posição em proporção de votos. Somando-se todos os liberais-democratas que ficaram em terceiro lugar nos mais de 600 distritos britânicos, pode-se obter, por exemplo, que esse partido teve um total nacional de 10% dos votos. Porém, como esses 10% de votos não foram para nenhum candidato que ficou em primeiro lugar, foram desperdiçados, jogados no lixo, esses 10% de votos não elegeram deputado algum. Somente os liberais-democratas que ficaram em primeiro foram eleitos, mas, somando-se a votação nacional de todos os primeiros colocados desse partido, tem-se somente 6%. É por isso que o partido fica com 16% dos votos nacionais e somente 7% das cadeiras do parlamento. Isso jamais ocorre no nosso sistema eleitoral, que é o proporcional.
Foi assim que em 1983 os liberais-democratas britânicos tiveram 25,4% dos votos, mas somente 3,5% das cadeiras, um completo absurdo, uma completa falta de proporcionalidade, uma total injustiça distributiva quando se considera a relação entre votos e cadeiras. Em 1987 foram 22,6% dos votos que resultaram somente em 3,4% de cadeiras; em 1992 ocorreu que 17,8% dos votos foram traduzidos em somente 3,1% de assentos no parlamento. Em 1997 a injustiça foi menor, mas permaneceu: 16,7% dos votos os levaram a obter 7% de cadeiras. Daí para a frente, a situação só fez piorar: em 2001, 18,3% dos votos resultaram em 7,9% de assentos parlamentares; em 2005, 22,1% dos votos conquistaram 9,6% das cadeiras, e em 2010 a situação foi ainda pior, quando 23% dos votos resultaram em somente 8,8% de cadeiras. Todos os lugares que adotam o voto distrital punem cruelmente o terceiro partido. Esqueça quarto partido, ele simplesmente não existe na prática.
A consequência prática imediata desse processo é que o eleitor médio percebe que o sistema pune o terceiro partido e assim ele passa a praticar o voto útil, escolhendo preferencialmente candidatos trabalhistas ou conservadores, que são os únicos partidos que realmente têm condições de obter a maioria parlamentar. Ou seja, além de todos os defeitos do voto distrital que venho mostrando nesta coluna, ele tem um defeito adicional perverso: estimula o voto útil. Esse fenômeno foi mostrado a primeira vez por Maurice Duverger nos anos 1950.
Se o Brasil adotar o voto distrital, sobreviverão apenas três partidos, que provavelmente serão o PT, o PMDB e o PSDB. Os demais serão liquidados, extintos, aniquilados. Se alguém tiver dúvidas quanto a essa afirmação, dê-se ao trabalho de ver a composição da Câmara dos Deputados dos países que adotam o voto distrital.
O sistema distrital pune o terceiro partido e premia o partido mais votado. É um sistema perverso, porque fabrica artificialmente a maioria. Não se trata de mágica, é um resultado real e concreto de um sistema que distorce a representação. Mais uma vez o melhor exemplo para demonstrar esse fenômeno é a Grã-Bretanha.
Em 1983, Margaret Thatcher foi eleita primeira-ministra pela segunda vez, com seu partido obtendo 42,4% dos votos. O impressionante é que o Partido Conservador conquistou nada menos do que 61% das cadeiras do Parlamento, praticamente 20% a mais do que sua votação. Em 1987 a desproporção também ficou muito próxima disso: com somente 42,3%, obteve-se 57,9% dos assentos. Em 2001 foi a vez dessa injustiça distributiva favorecer o Partido Trabalhista: foram 40,7% de votos que resultaram na conquista de 62,5% das cadeiras. Em 2005, foram 35,2% de votos para o partido de Tony Blair, e eles conquistaram 55,2% de cadeiras. Isso seria intolerável no Brasil.
O voto distrital elimina o multipartidarismo, aniquila todos os partidos menos três, pune o terceiro partido tornando-o um nanico sem poder de influência nas decisões governamentais, incentiva o voto útil, e por fim cria uma maioria artificial dando mais cadeiras do que votos para o partido mais votado. No voto distrital o vencedor leva tudo (“the winner takes all”).
A nossa Câmara dos Deputados tem 513 representantes e o partido mais votado, o PT, ficou com 80 cadeiras. No voto distrital o PT teria ficado provavelmente com 280 cadeiras, isto é, mais do que 50% dos assentos. Hoje o primeiro-secretário da Câmara é o deputado Eduardo Gomes, do PSDB do Tocantins, um parlamentar da oposição. Isso jamais ocorreria se o PT tivesse 280 cadeiras. Ao contrário, toda a mesa da Câmara seria composta por deputados petistas. No sistema distrital, a maioria simplesmente manda e ocupa todos os espaços. Em todos os países com voto distrital, a mesa da câmara é 100% controlada pelo partido que tem a maioria, e o mesmo acontece para todas as comissões legislativas. Funciona novamente aqui o princípio do vencedor leva tudo.
Margaret Thatcher extinguiu em 1986 o Greater London Council, que era a prefeitura da grande Londres, porque seu ocupante à época, Ken Livingstone, era um duro opositor. É impensável esse tipo de medida no Brasil. É impossível que Dilma, insatisfeita com a oposição que lhe fizessem o prefeito de São Paulo ou do Rio, simplesmente extinguisse uma dessas prefeituras. Aliás, como nosso sistema é predominantemente conciliatório, é muito difícil que prefeitos de cidades importantes façam oposição ao presidente.
Nós brasileiros temos preconceito contra nós mesmos. O sistema proporcional que adotamos resulta na existência de um grande partido de centro, o PMDB. O sistema distrital americano resulta na existência de somente dois partidos, Republicano e Democrata. Se formos pensar fora da caixinha, fora do tradicional, veremos que a relação custo-benefício do PMDB é bem mais favorável do que a simples existência de dois partidos como democratas e republicanos. No último mês vimos os prejuízos (de bilhões e bilhões de dólares) causados pelo sistema americano ao seu próprio país e ao mundo. Um sistema que, graças ao voto distrital, não incentiva o consenso, mas somente o conflito. O PMDB, ao contrário, confere total governabilidade ao Brasil.
Aliás, ainda no terreno da comparação, desde 1928 somente os presidentes peronistas cumprem integralmente o mandato na Argentina. Todos os radicais eleitos não tiverem esse destino. Isso aconteceu porque não existe um PMDB na Argentina. É possível que nós brasileiros tenhamos um excelente sistema eleitoral, embora não saibamos disso ou não reconheçamos esse fato. Em suma, não há motivos razoáveis para adotarmos o excludente voto distrital.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de “A Cabeça do Brasileiro” e “O Dedo na Ferida: Menos Imposto, Mais Consumo”. E-mail: [email protected] www.twitter.com/albertocalmeida

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