A Face Fundamentalista do Brasil

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A origem da palavra fundamentalismo, tal como compreendemos nos dias atuais, data do século XIX, nos EUA. Desde então, passamos a associar a palavra à noção de dogmatismo, à baixa ou nula flexibilidade e tolerância a tudo que não se enquadra nos cânones, na Verdade Absoluta. O Brasil criou uma aura de tolerância, tendo na miscigenação e no sincretismo as provas apresentadas ao mundo. Na verdade, nosso passado é recheado de páginas de intolerância, principalmente com a cultura negra. O Estado brasileiro perseguiu a capoeira e religiões africanas. Mas, mesmo assim, para forjarmos nossa identidade social esquecemos estas páginas de nossa história.

 

Eis que, no final do primeiro turno das eleições presidenciais, pelas portas dos fundos, ressurge o Brasil fundamentalista. E pelas mãos das igrejas. Das duas vertentes cristãs, católicos e protestantes. Não toda igreja, é verdade. Mas suas correntes fundamentalistas, carismáticas. Os fundamentalistas cristãos vêm se revelando o agrupamento mais organizado das igrejas católicas e protestante brasileiras. Superaram os católicos vinculados à teologia da libertação e os protestantes tradicionais (luteranos, presbiterianos, anglicanos, batistas e metodistas), mais abertos às mudanças e hábitos culturais, mais tolerantes e reflexivos.  Contudo, pelos protestantes, algumas igrejas pentecostais e neo-pentecostais avançaram, pouco a pouco, sobre o mundo da política e pela formação de fiéis mais afeitos a pregações engajadas e emocionais. O movimento pentecostal se formou no início do século 20, em Los Angeles, nos Estados Unidos. Seus adeptos crêem na manifestação do Espírito Santo por meio de sinais como curas milagrosas, profecias e visões e o dom de falar em línguas estranhas enquanto rezam. Algo similar às crenças dos carismáticos católicos. No Brasil, o pentecostalismo teve diferentes fases. Uma das primeiras Igrejas, surgida no início do século 20, foi a Assembléia de Deus (igreja à qual Marina Silva está vinculada), que reúne o maior número de adeptos dessa tendência. As décadas de 1970 e 1980 marcam o advento do neo-pentecostalismo, à qual pertencem a Igreja Universal do Reino de Deus, a Sara em Nossa Terra e a Renascer em Cristo, que defendem modelos empresariais de gestão, um amplo uso da mídia e pregam a chamada Teologia da Prosperidade, segundo a qual sinais de riqueza exterior são indicativos do amor divino.

 

Os evangélicos eram 4,8 milhões de brasileiros, em 1970. Dez anos depois, eram 7,9 milhões. Em 1991 já eram 13,7 milhões. E em 2000 chegaram aos 26 milhões.

 

Já os católicos carismáticos surgiram nos Estados Unidos em meados dos anos 1960. Reforçam a experiência pessoal com Deus, mística, não racional. Para se ter uma noção da lógica e origem desta corrente no interior da igreja católica, vale reproduzir a experiência de Ralph Keiner e sua esposa, em 1967, citada como essência do início do movimento de renovação carismática. Numa reunião envolvendo poucas pessoas, os Keiner começam a suplicar recebessem o “Batismo no Espírito Santo“. Ralph recebe o suposto dom de línguas (fenômeno chamado no meio acadêmico de glossolalia). Em 4 de março do mesmo ano um grupo de estudantes se reúne para pedir a imposição de mãos para receber o Espírito Santo. Há registros de manifestações emocionais agudas, lembrando alguns relatos de histeria coletiva.

 

Os carismáticos católicos apresentam um alto índice de fiéis que defendem o engajamento político. Reagem declaradamente à Teologia da Libertação.

 

A BBC divulgou pesquisa realizada pelo instituto religioso norte-americano Pew Forum on Religion and Public Life em que se projetava que 49% da população de Recife, São Paulo e Porto Alegre se diziam evangélicos ou católicos carismáticos.

 

É esta força política, quase desconhecida dos meios de comunicação e grandes representações e organizações públicas, de massa, que emergiu no final do primeiro turno das eleições presidenciais. Involuntariamente, definiu uma agenda conservadora para o país, algo que os partidos políticos mais à direita não conseguiam produzir desde a eleição de Lula. E colocam em risco toda a agenda pluralista e pautada pela ampliação dos direitos civis que foi plasmada nas articulações populares que confluíram para a Constituinte de 1987.

 

Em parte, esta força conservadora e fundamentalista surge à margem da ausência pedagógica do lulismo. O lulismo desarticou o sistema partidário e se furtou a disputar ideologicamente o país. Ao contrário, procurou avançar a partir de acordos fragmentados e procurou selar um acordo de interesses, um pacto nacional entre empresariado, organizações sindicais e forças partidárias. Esqueceu que o conservadorismo não se organiza apenas em instituições. Trata-se de uma força moral, intolerante.

Ao abdicar da disputa ideológica, o lulismo abriu espaço para o fundamentalismo religioso tupiniquim e se vê em palcos de aranha. Não terá tempo para fazer este debate em pouco mais de três semanas. Para vencer neste segundo turno, terá que aceitar a agenda ultra-conservadora. Se assim for, se consolida como gestor da ordem. Vencerá uma batalha de Pirro.

RUDÁ RICCI é Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, do Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa.

 

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