Pela primeira vez, candidatos puderam indicar sua orientação sexual ao fazer o registro na Justiça Eleitoral

Ativistas comentam desafios para uma candidatura LGBTQIA+ ser eleita, e quais propostas são esperadas pela comunidade dentro das competência municipais


Por Andressa Franco

Pela primeira vez, candidatos puderam indicar sua orientação sexual ao fazer o registro na Justiça Eleitoral. São 3.406 postulantes às cadeiras de prefeitura, vice-prefeitura e vereança LGBTQIA+ nas eleições municipais de 2024.

A busca por representação nos espaços da política institucional é também a busca pelo olhar do poder público às demandas e especificidades desse grupo, que ainda luta por direitos básicos, como atendimento respeitoso na saúde pública, direito ao trabalho e até mesmo à vida. Só em 2023, ocorreram 230 mortes violentas de pessoas LGBTQIA+ no Brasil, segundo o Dossiê de LGBTIfobia Letal, produzido pelo Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+. Dessas mortes, 184 foram assassinatos, sendo 142 (61,7%) de mulheres transexuais e travestis. 

Para Alciana Paulino, coordenadora de eleições da Vote LGBT, organização que integra a Plataforma dos Movimentos Sociais por Outro Sistema Político, o levantamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é um marco histórico a ser celebrado, já que o trabalho de colher esses dados têm sido desempenhado pela sociedade civil organizada. 

Mas ela lembra que o cadastro feito pelo TSE questionava se o respondente gostaria que aquela informação fosse compartilhada ou não. 

“Isso gera alguns descompassos em relação ao número de candidaturas oficiais LGBTQIA+. Nós do Vote LGBT trabalhamos apenas com os dados das pessoas que optaram para que essa informação fosse pública. A informação que o TSE disponibilizou no seu site contabiliza pessoas que pediram para que não fosse.”

Alciana Paulino, coordenadora de eleições da Vote LGBT – Imagem: Arquivo Pessoal

Dessa forma, no mapeamento do Vote LGBT, foram contabilizadas 3.037 candidaturas (com 245 candidaturas que não se declararam ao TSE, apenas ao VoteLGBT). São 94 disputando prefeituras (sendo 53 como vices); em 28 dos 29 partidos políticos, com 51% disputando em partidos de esquerda; em todos os estados (disputando as eleições em 1 a cada 4 municípios do país); 60% são negros; e 52% são mulheres.

Violência política é desafio para as candidaturas

Todas essas candidaturas terão diversos desafios pela frente, para que de fato consigam se eleger no dia 6 de outubro. Para Alciana, um dos principais é a violência política. “Quando você concorre a um cargo eletivo, você está muito exposto. Toda a LGBTfobia que acontece na nossa vida cotidiana é multiplicada. Isso afasta muitas pessoas da possibilidade dessa visibilidade”, lamenta.

Essa realidade é tão incisiva, que a organização está treinando uma inteligência artificial para reconhecer a violência política LGBTfóbica, e assim gerar dados sobre tipos, regularidade, entre outras informações. O quadro leva a outro desafio para essas candidaturas: a própria saúde mental.

“Torço muito por elas, mas elas têm que ser muito fortes”, reconhece Heliana Hemetério, conselheira nacional de saúde representante da Rede Nacional de Lésbicas e Bissexuais Negras Feministas (Candaces) e integrante da Plataforma dos Movimentos Sociais por Outro Sistema Político. A ativista celebra o número de candidaturas LGBTQIA+, mas expressa preocupação em relação aos embates que precisam ser feitos muitas vezes dentro de suas próprias legendas, para que tenham recursos, e se tornem competitivas. “Os partidos demonstram a sociedade. A esquerda é progressista até uma página.”

Quem complementa a análise é Jovanna Cardoso, fundadora do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (Fonatrans), organização que também integra a Plataforma. 

“Os partidos e políticos infelizmente utilizam desse mecanismo de nos procurar no período eleitoral para carregar sua bandeira, distribuir seu santinho, e às vezes até convidam para uma candidatura tímida, mas sem participar sequer da verba do partido para fazer campanha”, critica.

Jovanna Cardoso, fundadora do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (Fonatrans) – Imagem: Arquivo Pessoal

Ela observa que falta apoio dos partidos até mesmo para parlamentares LGBTQIA+, especialmente mulheres trans negras, já eleitas. “A maioria das nossas vereadoras trans não estão conseguindo legislar por conta do patriarcado e não têm o apoio dos seus partidos onde estão eleitas e empossadas.”

Como as políticas municipais atravessam a população LGBTQIA+

As eleições municipais são consideradas as mais próximas da realidade da população. Saúde pública, educação municipal, transporte, assistência social, infraestrutura são algumas das áreas que permeiam as competências dos cargos que estão em disputa, e que têm impacto direto no bem-estar e na qualidade de vida da comunidade.

“É no município que residimos e enfrentamos todas as problemáticas de uma sociedade preconceituosa, onde os impostos são pagos por todos, mas os direitos só vêm para alguns. Então prefeitos e vereadores precisam escutar a sociedade com suas pluralidades para construir políticas públicas de inclusão e reparação”, pontua Jovanna.

Mas se esses direitos básicos muitas vezes não chegam para a população em geral, como chegar com as devidas especificidades demandadas pela população LGBTQIA+?

Essa é a inquietação de Aisha Gabriella, travesti multiartista, arte-educadora e militante do movimento estudantil e por moradia. Natural de Porto Velho (RO), a jovem de 21 anos vive hoje em Florianópolis (SC), onde cursa história na Universidade do Estado de Santa Catarina  (UDESC)..

Para ela, a primeira ação dos prefeitos e vereadores de fato interessados em mudar essa realidade, é humanizar e enxergar a comunidade LGBTQIA+ como cidadãos e participantes ativos da sociedade civil.

“Se não enxergam a gente assim, a política pública não vai chegar na gente. Mal chega na população em geral. Imagine para nós que vamos pretender essa política de forma direcionada, pensando uma saúde que respeite corpos trans, uma educação trans inclusiva”, avalia.

Aisha Gabriella, travesti multiartista, arte-educadora e militante do movimento estudantil e por moradia – Imagem: Arquivo Pessoal

Estar atentos a onde está a população LGBTQIA+ é o segundo ponto de atenção destacado pela estudante. 

“Onde estão as travestis pretas? Relegadas à prostituição. Que tipo de política é possível para que elas saiam dessa situação social de vulnerabilidade?”, continua Aisha, que defende que o maior desafio enfrentado por essa população ao viver a cidade é o direito à vida e o direito ao trabalho. “Cidades que não nos permitem o direito ao trabalho, indiretamente nos tiram o direito à vida e à cidade, porque daí a gente é subalternizada e jogada para o local da prostituição.”

Para superar esse panorama, Alciana acredita que é importante começar pela criação de espaços permanentes de atenção às comunidades LGBTQIA+. Como a criação não apenas de conselhos municipais voltados à temática, mas também de uma Secretaria pelo executivo municipal.

No que se refere aos conselhos, ressalta ainda a importância da presença de pessoas LGBTQIA+ nos demais conselhos da cidade, tendo em vista que as necessidades dessa população atravessam todos os serviços públicos prestados pelas prefeituras.

Para acessar serviços de saúde na sua cidade, por exemplo, Aisha precisa fazer um deslocamento de horas. “Eu acesso o médico somente no centro da cidade, onde fica o ambulatório trans. Mas temos um transporte precarizado, com um valor de passagem absurdo, e que vai tomar muito tempo do meu dia”, relata.

Alciana chama atenção para o mesmo desafio. “Conheço uma moça que viaja 200km para ter acesso a hormonioterapia. Sua cidade não poderia oferecer isso?”, questiona.

O constrangimento que quem faz parte da comunidade LGBTQIA+ enfrenta quando finalmente acessa esses serviços é uma preocupação citada também por Heliana Hemetério.

“Quando eu falo de interlocução entre as secretarias, a primeira coisa a fazer é uma formação de fato. Os profissionais da saúde pública precisam entender como atender essa população, sem trazer crenças pessoais para um atendimento público. Na educação a mesma coisa”, ressalta a conselheira. 

Heliana Hemetério, conselheira nacional de saúde representante da Rede Nacional de Lésbicas e Bissexuais Negras Feministas (Candaces) e integrante da Plataforma dos Movimentos Sociais por Outro Sistema Político

Heliana também critica a pouca atenção para políticas de combate à violência contra essa população, especialmente contra as pessoas trans, maiores vítimas de assassinato no Brasil, país que mais mata pessoas trans no mundo. O mesmo vale para garantir a devida investigação e apuração desses casos. 

Nessa esteira de políticas caras à população LGBTQIA+, Aisha comenta que gostaria de ver nos programas de governo e nas prioridades dos parlamentares municipais a criação de campanhas por respeito ao nome social; casas de acolhimento; e espaços de cultura voltados para a comunidade. Campanhas de combate ao HIV e Aids é outra iniciativa bem-vinda. “Não só para a comunidade LGBTIA+, mas a gente sabe que por, principalmente trans travestis, estarem relegadas ao lugar da prostituição, estão mais expostas a ISTs”, pondera.

Com base nos dados da Justiça Eleitoral e do Vote LGBT, já se sabe quantas candidaturas LGBTQIA+ buscam combater a sub-representação política em 2024. Para os eleitores da comunidade, o consenso é claro: o primeiro passo deve ser o reconhecimento.