Os desafios na busca por representatividade dos povos indígenas na política institucional do Brasil

O número de candidatos indígenas alcançou um novo recorde em 2024, totalizando 2.561 concorrentes, maior número desde 2016

Por Andressa Franco

O aumento da representatividade indígena nas eleições brasileiras reflete uma mudança gradual, mas significativa, no cenário político do país. De acordo com levantamento feito pelo Globo, com informações do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 2020, o Brasil elegeu 237 pessoas autodeclaradas indígenas para os cargos de vereador, vice-prefeito e prefeito, um salto de 28% em relação à eleição anterior. Este ano, o número de candidatos indígenas alcançou um novo recorde, totalizando 2.561 concorrentes, o maior desde 2016.

Embora ainda correspondam a apenas 0,5% do total de candidatos, esse crescimento de 15,5% em comparação a 2020 evidencia uma maior mobilização de lideranças indígenas e uma pressão crescente por maior representatividade política.

Para Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), esse crescimento nada mais é que um reflexo de campanhas e formação política organizadas pelo movimento indígena. Mas, o próprio cenário político promovido pelos tomadores de decisão do país é visto por ele como um fator chave.

“Dou ênfase aqui ao Congresso Nacional, que fez um despertar para o movimento indígena da necessidade de ocuparmos esses espaços. Hoje, as principais ameaças aos direitos dos povos indígenas estão diretamente relacionadas ao legislativo”, frisa.

Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) – Imagem: Tuane Fernandes

Outro fator a ser considerado, é o crescimento da visibilidade da temática indígena no contexto da política nacional. Para José Augusto Sampaio, o Guga, que é conselheiro diretor da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí), há poucas décadas essa temática era tida como pouco relevante politicamente, inclusive por grupos à esquerda.

“Isso vem mudando rapidamente, para o bem e para o mal”, constata. Isso porque, ainda que segmentos progressistas estejam mais conscientes de que defender os direitos indígenas é defender interesses nacionais relevantes para todos e todas, setores como o agronegócio e mineradoras, também “estão muito conscientes de que precisam atacar os indígenas para implantar o seu projeto de ‘desenvolvimento’ concentrador de riqueza e predatório”.

De acordo com dados do relatório anual do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) sobre violências contra os povos indígenas no Brasil, o ano de 2023 foi marcado pela persistência da violência e poucos avanços na demarcação de terras. Houve aumento na morte de crianças indígenas, nas mortes por desassistência à saúde, além de assassinatos, ameaças, violência sexual e dos próprios conflitos territoriais.

O cenário só torna a busca por estratégias de incidir na sociedade e no Estado ainda mais urgente, entre elas a disputa por cargos políticos. Essa é a análise do secretário adjunto do Cimi, Luís Fernández. “A participação dos povos indígenas nos processos eleitorais é fundamental para transformar as formas de representatividade política no país e as dinâmicas de reprodução do poder em mãos de elites econômicas.”

Ana Pataxó, moradora da aldeia  Coroa Vermelha e que representa o Instituto Coletivo Arewá no Grupo de Referência (GR) da Plataforma dos Movimentos Sociais por Outro Sistema Político, lembra que apesar do aumento no número de candidaturas, poucos conseguem ocupar de fato o espaço. Ainda assim, afirma, essa representação contribui diretamente para os direitos indígenas.

“A luta é diária, é resistir para existir, é lutar pelo planeta inteiro e ainda ser retirado de suas terras. A terra está gritando por socorro e os povos originários vem mostrando que a preservação do nosso lar, do nosso território também é sagrado”, defende Ana Pataxó, que também é licenciada em pedagogia e Conselheira de Saúde Indígena. 

Ana Pataxó, moradora da aldeia  Coroa Vermelha e que representa o Instituto Coletivo Arewá no Grupo de Referência (GR) da Plataforma dos Movimentos Sociais por Outro Sistema Político – Imagem: Arquivo Pessoal

Olhando os dados coletados pelo Cimi, Dinamam Tuxá concorda que o cenário ainda não é dos melhores e demonstra preocupação com os grupos armados que têm atentado contra a vida e os territórios dos povos indígenas. “A preocupação é conscientizar nossos parentes para que priorizem candidaturas indígenas e aliados das nossas causas. Porque nos preocupa o avanço das bancadas de ideologia anti-indígena, nos espaços de poder.”

Nesse sentido, Guga defende que a participação política dos indígenas diz respeito sobretudo ao crescimento do entendimento de como as pautas dos povos originários impactam os projetos de país como um todo. Isso porque, nas últimas décadas, o Brasil se “desindustrializou” e se tornou mais do que nunca um exportador de commodities agroindustriais que devastam territórios e recursos, como soja, carne de boi e celulose. Trata-se de um modelo predatório, que precisa derrubar florestas e queimar cerrado para avançar.

“Quem reage a esse modelo dominado politicamente por uma elite predatória, baseada no agronegócio e na mineração, não é mais o operariado industrial. Mas quem tem território a defender: indígenas, quilombolas, vazanteiros, geraizeiros, agricultores familiares. É desse enfrentamento que os indígenas estão falando”, analisa Guga.

Respeito à autodeclaração coletiva

Em 2021, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) fixou critérios complementares para a autodeclaração indígena junto ao órgão sob a justificativa de dar segurança jurídica ao processo de heteroidentificação. No entanto, o Ministério Público Federal (MPF) considerou a medida inconstitucional dias depois e recomendou a revogação da resolução.

O tema é intrincado. Acontece que a autodeclaração entre os indígenas não acontece da mesma forma como a autodeclaração de cor e raça para pessoas negras, que é individual, e baseada na heteroidentificação, mas de forma coletiva. “Proteger direitos indígenas e dar segurança jurídica estavam muitíssimo longe dos interesses da Funai de Bolsonaro. A intenção foi dificultar e burocratizar o acesso dos indígenas a esses direitos”, argumenta Guga, que é antropólogo e concorda com o entendimento do MPF.

José Augusto Sampaio, o Guga, que é conselheiro diretor da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí) – Imagem: Reprodução Anaí

Na mesma linha, Luís Fernández alerta que a medida da Funai pretendia deixar fora da declaração como indígenas milhares de pessoas pelo fato de não residirem em territórios homologados, bem como devolver ao Estado e aos não-indígenas o poder de declarar quem é ou não indígena. O que classifica como absurdo e inconstitucional.

A revogação, apoiada pelos ativistas, respeita a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, e que acolhe o direito à autodeclaração coletiva. Trata-se de um princípio fundamental, pois reconhece que são os próprios povos indígenas que determinam, de acordo com suas tradições, quem pertence ao seu grupo.

“Quem tem o poder de se autodeclarar são coletividades, não pessoas. Nas universidades, a autodeclaração do estudante vem acompanhada da declaração coletiva. É a comunidade indígena que tem o poder de dizer quem são seus membros, segundo seus critérios, que são variáveis. Isso é a principal defesa contra as fraudes”, exemplifica Guga.

No caso das candidaturas, no Brasil, os tribunais eleitorais não exigem atestado específico da comunidade para candidatos que se autodeclaram indígenas. O processo é baseado na autodeclaração no momento do registro da candidatura. Vale lembrar ainda que não há uma cota específica para candidaturas indígenas nos fundos partidários no Brasil, como existe para candidaturas de mulheres e pessoas negras.

Para Ana Pataxó, o tema precisa ser discutido dentro e fora das comunidades e com muito cuidado. A ativista relata que indígenas têm sido “obrigados” a comprovar sua identidade até mesmo para o próprio povo, enquanto muitos não indígenas “são apadrinhados e ocupam espaços de privilégios.”

Nos casos de pessoas que não integram uma comunidade, mas passam a se entender enquanto indígenas, Eline Pankararu, ativista indígena e graduanda em ciências sociais na Universidade Federal da Bahia (UFBA), defende que é natural que haja um aumento de pessoas tentando resgatar suas origens indígenas. Dado o apagamento de registro de muitas aldeias no passado, além das tantas formas de negação de identidade impostas ao longo da história.

Mas a jovem também já viu candidatos se autodeclararem indígenas apenas para conquistar votos dessa população. “É um cenário que está acontecendo agora na aldeia Pankararu: candidatos que nunca andaram pela aldeia estão em cima de palanques dizendo ser indígena e atacando caciques e lideranças que não os reconhecem”, denuncia. Ainda que se trate deste segundo caso, Guga acredita que o impacto político é escasso. 

“Não nos consta ‘fraudes’ nas autodeclarações e, quando estas acontecem, são os próprios povos e comunidades indígenas os que apontam ou demonstram eventuais desajustes”, acrescenta Luís Fernández.

Luís Fernández, secretário adjunto do Cimi – Imagem: Cimi/Reprodução

Apesar da delicadeza do assunto, e da importância da autodeclaração, Eline acredita que o tema precisa avançar, especialmente devido a tentativas de fraudes em outros contextos que não o eleitoral, a exemplo das cotas nas universidades e em concursos públicos. “As fraudes são recorrentes e ainda não vi um bom critério para lidar. Ainda está em processo de construção, de entender como podemos abranger indígenas de contexto urbano, e frear os [falso] autodeclarados”, pondera.

Dinamam Tuxá, que também é advogado, vê o debate como um tema a ser enfrentado pelo movimento indígena. “Ainda não fizemos um estudo sobre os autodeclarados. É necessário ampla discussão. Mas pelo menos nesse momento tem que ser pauta das instituições para analisar caso a caso, identificar as fraudes e tomar as medidas cabíveis.”

Quem tem tinta na caneta?

Se chegar aos espaços de poder já se coloca como um grande desafio para as candidaturas indígenas, fazer com que esses cargos se reflitam efetivamente em tomadas de decisão é outro dilema. 

“Nem sempre estar em um espaço de gestão política significa poder de decisão. Esse é um dos elementos complexos da política institucional burguesa que representa a forma do Estado como a conhecemos hoje e que é filho do processo de colonização”, aponta Luís Fernández. 

Como a representação indígena na política institucional pode trazer impacto concreto nessa conjuntura? Para o secretário adjunto do Cimi, a única forma possível é que a presença dos povos indígenas no governo signifique uma capacidade de articulação política com o governo em seu conjunto e uma capacidade operacional. O que perpassa pela disponibilidade de recursos e pela autonomia política.

Na sua avaliação, o horizonte político dos povos indígenas não se limita à participação em um determinado momento histórico nas instâncias de governo de um Estado, mesmo que isso possa ser uma mediação estratégica para alguns avanços.

“É fundamental que os povos indígenas mantenham, independentemente de sua participação institucional no governo, a capacidade política e de rebeldia de suas próprias formas de organização política, de forma autônoma. O horizonte ético e político dos povos indígenas aponta para outras lógicas de organização social”, finaliza.