Retomando o debate das relações dos evangélicos com o governo: posições equivocadas de setores progressistas

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Por Romi Bencke*

Artigo publicado originalmente no Observatório Evangélico


No mês de fevereiro deste ano, circulou nos grupos de whatsapp, uma carta divulgada pela pastora Lusmarina Campos Garcia.

A carta foi dirigida ao presidente Lula e à presidente do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffman e enviada em cópia para a deputada federal Benedita da Silva, para a ex-presidente Dilma Rousseff, para o ex-ministro chefe da secretaria geral da Presidência da República e atual secretário de Economia Solidária Gilberto Carvalho, para o ministro Wellington Dias e para a advogada Carol Proner.

 Lusmarina, ou Lus, como a chamamos, é uma pessoa corajosa, bastante coerente com a fé cristã e, consequentemente, com a democracia. Destaco que para Lusmarina a democracia não é retórica, mas um sistema político que precisa ser permanentemente defendido e aprofundado, uma vez que, enquanto houver racismo, misoginia, desigualdades, iniquidades, exclusivismos religiosos e culturas de privilégios, estaremos vivendo em sociedades parcialmente democráticas.

Em sua carta Lusmarina fez algumas ponderações em relação às preocupações do atual governo Lula e do Partido dos Trabalhadores com respeito aos “evangélicos”. Escrevo evangélicos entre aspas uma vez que, nos dias de hoje, seu significado está em suspensão. Quem são os evangélicos? Depende. Para alguns, os evangélicos (no masculino mesmo) são os grandes responsáveis pelo avanço da extrema-direita brasileira; já, para outros, são parte significativa da população preta e pobre das periferias, muitas vezes, tuteladas por pastores.

Em sua carta, Lusmarina externalizou seu desconforto em relação “às ações do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome que, no dia 27/11/2023, estabeleceu um protocolo de intenções com 27 segmentos de igrejas evangélicas e, no dia 14/12/2023, encontrou-se com lideranças evangélicas”. Lusmarina se expressou suas preocupações de forma muito honesta e franca, algo que fazemos quando nos dirigimos a quem consideramos companheiras. Foi por esta razão que ela direcionou sua carta às pessoas acima referidas.

Outras pessoas evangélicas, inseridas em movimentos sociais, ficaram surpresas com o protocolo de intenções, mas, ao contrário de Lusmarina, não externalizaram publicamente suas indagações. As perguntas feitas em torno desta decisão política do governo são: como se deu a escolha das igrejas e por que outras ficaram de fora? Questionamos também a ausência de transparência nos critérios de seleção do conjunto de igrejas. Por que somente igrejas e não outras tradições de fé, considerando que as periferias são plurais? Por fim, a estranheza se deu também porque entendemos que, desde a perspectiva laica do Estado brasileiro, não deveria haver relações de privilégios entre o Estado e um determinado segmento religioso, seja qual for.

Lusmarina aproveita a carta para fazer um conjunto de ponderações em relação à atual conjuntura religiosa no Brasil, com o qual concordamos. Não irei retomar todo o conteúdo da carta. Quem não leu e quiser conhecê-la, pode acessar o link: https://www.brasil247.com/blog/carta-a-lula-e-gleisi?ref=observatorioevangelico.org

Apesar da carta ter recebido amplo apoio de evangélicos, católicos e da esquerda política, quero me ater aqui a algumas reações furiosas de indivíduos de um certo setor do evangelismo atual, chamado de “evangélicos progressistas”. Utilizo o artigo masculino de modo proposital. Soube, inclusive, que em um encontro onde a carta foi impressa e compartilhada largamente entre as pessoas presentes, houve ordem de suspensão da distribuição. Lembremos que, a democracia é o regime do dissenso e a submissão não é a resposta de pessoas livres. De qualquer modo, o episódio serve para mostrar que há um setor que entende que se pode ser evangélico e de esquerda, desde que não haja debates e crítica. A crítica e o debate aberto são características muito caras à esquerda e aos movimentos sociais desde a época da Revolução Francesa contra o poder monárquico.  

Talvez alguns leitores e leitoras estranhem o motivo de eu querer recuperar algo de quase três meses atrás. No mundo midiático atual, assunto passado não tem valor; ninguém mais lembra. É justamente por essa instantaneidade do que se escreve e se publica nas mídias sociais que me atrevo a retomar o tema e trazê-lo à pauta novamente; a carta pode ter passado, mas o assunto continua relevante. Então, li e ouvi profusamente as reações à “carta da pastora Lusmarina” como ficou conhecida. Dentre tudo o que li e ouvi, um dos textos escritos foi publicado neste Observatório Evangélico. Refleti sobre o texto da referida reação várias vezes, considerei e reconsiderei, inclusive para não ser injusta. Mas, passados três meses posso dizer que minhas impressões iniciais se confirmaram. O texto ao qual me refiro não foi apenas deselegante, para dizer o mínimo, mas revelador de um profundo desconhecimento e preconceito em relação a pelo menos duas igrejas do protestantismo histórico, e à pastora Lusmarina.

Falo do artigo publicado em 14 de fevereiro, assinado por Alexandre Gonçalves, que é pastor da Igreja de Deus  e colunista do The Intercept Brasil. Também é um dos líderes do grupo Cristãos Trabalhistas, ligado ao PDT. Foi ordenado em 1994, tendo sido antes missionário atuando em Cuba com implantação de grupos caseiros e, posteriormente, em comunidades carentes do Rio de Janeiro[1]. Bacharel em teologia e direito e licenciado em letras, sua paixão é a teologia prática. Especializado em implantação de igrejas pelo SEMISUD em Quito, aprendeu os princípios do que chama de “teologia do pobre”. Além de pastor, é servidor público e diretor parlamentar do Sindicato dos Policiais e Servidores da Polícia Rodoviária Federal em Santa Catarina (SINPRF-SC)[2].  

Transcrevo o curriculum do Pastor Alexandre, porque esta é uma característica bem típica de muitos pastores evangélicos progressistas, um currículo vistoso. Ao contrário de Lusmarina que em sua modéstia, se apresenta como teóloga e pastora luterana, doutora em direito e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRJ.

O pastor Alexandre, sem conhecer Lusmarina, de cara resumiu a carta como “cobrança de fatura”. Ele não mede esforços para desqualificar e deslegitimar as preocupações de Lusmarina, escritas depois de longas reflexões e conversas com colegas que, como ela, partilham análises semelhantes. Não sei quem é o pastor Alexandre, além do seu currículo apresentado no Observatório Evangélico, mas a impressão imediata é a de que seu texto apresentou uma falácia elementar da lógica de argumentação. Trata-se do argumento ad hominem que consiste em atacar a pessoa ou algum aspecto da pessoa que está elaborando o argumento ao invés de considerar o argumento em si. 

 Primeiro, Lusmarina não precisa cobrar fatura de ninguém, até porque, para quem a conhece, sabe que uma das características de sua personalidade é a gratuidade e generosidade desinteressada. Lusmarina tem um antigo compromisso com as agendas historicamente marginalizadas. Lá nos anos 80, ajudava a organizar as Romarias da Terra e, posteriormente, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), no Estado do Rio de Janeiro. Na década de 90, quando a pandemia do HIV/AIDS ceifava vidas e muitas igrejas evangélicas chamavam a AIDS de “peste gay” expulsando pessoas soropositivas de suas comunidades, Lusmarina foi uma das religiosas protagonistas, que a partir de textos teológicos e de liturgias inclusivas, produzidas com Ernesto Cardoso no contexto do Instituto de Estudos da Religião e publicadas no Boletim da Rede de Liturgia do Conselho Latino-americano de Igrejas (CLAI) e na revista Tempo e Presença de KOINONIA, levantou o debate sobre igrejas e AIDs, perguntando até onde vai, realmente, o discurso de acolhida e amor. Ela acompanhou pastoralmente lideranças cristãs que foram infectadas pelo vírus e que tiveram, como primeira morte, sua expulsão da igreja.

Lusmarina é uma das pioneiras na elaboração de uma perspectiva acolhedora de pessoas expulsas ou colocadas de castigo por pastores preocupados com a defesa de uma certa moral e ditos bons costumes, que não aceitam a liberdade de escolha e as sexualidades dissidentes. Muitos deles hoje têm se tornado populares na crítica à teologia do domínio, ignorando, talvez intencionalmente, que ela sempre esteve entre nós, evangélicos. Ademais, Lusmarina foi pastora das principais lideranças ecumênicas, luteranas e reformadas mundiais em Genebra, na Suíça. Este breve resgate biográfico revela que, tanto a teologia, quanto a prática pastoral de Lusmarina estão em profunda sintonia, nacional e internacionalmente, com as lutas em favor das pessoas mais vulnerabilizadas.

Recupero a carta de Lusmarina para dizer que as incômodas filhas de Eva confrontam o progressismo de alguns pastores e de certas lideranças que se valem de uma performática progressista para disfarçar a manutenção de um fazer teológico arcaico e patriarcal.

A contradição entre ser pastor e ser progressista já se expressou na fotografia que ilustrou o artigo do pastor Alexandre. Nela, Lusmarina estava em primeiro plano e, em segundo plano, aparecia a imagem de um Jesus triste, de olhos cabisbaixos. É típico da cultura patriarcal expor as imagens das incômodas filhas de Eva que ousam expressar suas sabedorias madalenas. Faz lembrar as práticas da inquisição que acusava e assassinava mulheres dizendo serem “bruxas depravadas”, quando, na verdade, eram mulheres com conhecimento, autonomia e liberdade de pensamento. A interpretação que fiz da imagem foi a de um Jesus descontente com a desobediência de sua discípula.

No entanto, soube que a fotografia fora tirada pelo jornal O Globo quando Lusmarina protagonizou, com o movimento ecumênico do Rio de Janeiro, uma campanha em favor de um terreiro de Duque de Caxias que havia sido queimado por intolerância religiosa. A imagem de fundo é um quadro pintado por Janis Pozzi-Johnson, artista plástica norte-americana, e representa Jesus chorando sobre Jerusalém. Não sei se a foto do jornal O Globo é de domínio público e se houve autorização para a sua publicação, mas sei que não se pediu autorização à pastora Lusmarina para o uso de sua imagem. Algo típico do patriarcado, que naturaliza a exposição das mulheres sem que autorizem, pois se julga dono de nossas imagens e de nossos corpos.

O texto do pastor Alexandre traz inúmeros outros elementos preocupantes. Destaco o que considero como principal e que está relacionado à temática da justiça sexual e reprodutiva de meninas e mulheres e à descriminalização das drogas. Segundo o pastor, 90% das pessoas evangélicas são contrárias a estes temas. É uma colocação rasa e desprovida de dados e de fontes. Em 2023, o Latinobarometro realizou uma pesquisa no Brasil. Os respondentes, precisaram se identificar se, em termos de prática religiosa, se consideravam muito praticantes ou pouco praticantes. Os resultados da pesquisa revelaram que, 59,5% das pessoas que se identificaram como praticantes de uma religião e 67,8% que se consideraram muito praticantes avaliaram que a igualdade entre homens e mulheres é pouco ou nada garantida no Brasil[3].

Alguém pode dizer que os dados acima se referem à igualdade entre mulheres e homens e não sobre o aborto. Pois bem, uma pesquisa realizada, em 2023, pelo Lapop[4] no Brasil, perguntou às pessoas entrevistadas se elas “acreditam que se justifica a interrupção da gravidez, ou seja, um aborto, quando a saúde da mãe está em perigo, 65,8% responderam que sim, se justifica, contra 29,5% que responderam que não se justifica. Olhando estes números por grupo de pertença religiosa, temos que, 79,5% dos protestantes tradicionais, justificam a interrupção da gravidez quando a saúde da mãe está ameaçada. Entre os evangélicos pentecostais, 61, 6% consideram que a interrupção da gravidez é justificável quando a saúde da mãe está em perigo. Portanto, os 90% do pastor Alexandre devem ser uma questão de fé, uma vez que ele não revelou a fonte deste dado.

O pastor Alexandre tem absoluta convicção de que o povo pobre preto e evangélico das periferias não quer falar sobre aborto e nem sobre a descriminalização das drogas. Como teóloga feminista desconfio e suspeito de afirmações tão categóricas, especialmente porque sabemos que os jovens negros e pobres são presos e assassinados por serem os primeiros suspeitos da polícia de portarem maconha e similares. Da mesma forma, segundo Pesquisa Nacional do Aborto, de 2016, coordenada pela antropóloga Débora Diniz, entre as mulheres que abortam no Brasil, 25% são evangélicas e 56% são católicas[5]. Alguém pode dizer que estes dados já são antigos. Tudo bem, vamos para um caso real, que ficou famoso no Brasil. Trata-se da avó, capixaba, pobre, periférica e evangélica, que ao saber que sua neta engravidara por causa de um abuso sexual, tomou a decisão, apesar de todo o assédio e violência sofrida por parte de líderes evangélicos e católicos, de garantir à neta o direito à interrupção da gravidez e o direito de viver a sua infância. Esta avó, pobre, sem escolaridade, era sábia e usou de sua capacidade de discernimento para poder lutar pelo direito da neta. Pelo visto, o Pastor Alexandre não desconfia que as mulheres pobres e evangélicas periféricas fazem a interrupção de gravidez sem contar para os seus pastores. Elas também sabem ser filhas de Eva do seu próprio modo, no seu próprio tempo e local.  

Em relação à descriminalização das drogas, as pesquisas realmente apontam que 61% das pessoas católicas são contrárias e 22% dos católicos são favoráveis. Entre a população evangélica, 63% é contrária e 18% favorável. No entanto, estes dados não podem servir de argumento para interditar o debate público sobre o assunto. Não esqueça, pastor Alexandre, o Estado é laico!

Ele é ainda mais enfático e se pergunta se temas como aborto e descriminalização das drogas são pautas de esquerda. E responde: “Não, nunca foram ou deveriam ter sido. Essas são pautas liberais, assimiladas pela esquerda norte-americana e importadas pela nossa esquerda moderna e que não dialogam com o povo do Brasil profundo”. Segundo ele, é trabalho de um certo evangelismo progressista encontrar os pontos em que o diálogo é penetrável e que não colidam com a moral do povo, outra expressão vazia.

A “moral do povo” são os valores sociais, muitas vezes, reacionários que vem da ideologia das elites dominantes. Por essa razão, quase 30% da população brasileira (dados da WVS), em uma sociedade em que mais de 50% são mulheres, considera que homens são líderes políticos melhores do que as mulheres e que mais de 30% da população, considera que o exército deve assumir o poder quando o governo é incompetente.  É esta moral que o pastor Alexandre defende?

O progressismo do pastor Alexandre significa “usar os temas indispensáveis à emancipação dos pobres (saúde e educação pública e universal, impostos progressivos, emprego formal, transporte público e etc), que, segundo ele, a adesão é majoritária e dialogar com as lideranças cristãs dos bairros, das pequenas e médias igrejas com a linguagem que o povo entende, sem querer “catequizá-los” com os iluminismos das ideias dos “iluminados” da esquerda cristã academicista.

Novamente o pastor Alexandre ignora os dados da realidade. O povo não é desprovido de opinião e nem de visão sobre o mundo. Uma pesquisa com grupos focais e entrevistas em profundidade da Fundação Perseu Abramo na periferia de São Paulo[6] revela percepções que nos fazem entender a aderência da periferia aos valores neoliberais. Um dos resultados é o entendimento de que o principal inimigo é o Estado e que todos, patrões e empregados, são vítimas do Estado que cobra impostos excessivos. Há também forte desejo de visibilidade e valorização pessoal. Não querem ser vistos como trabalhadores e seu desejo maior é ser ‘alguém na vida’. Há uma sobrevalorização do mercado em detrimento do Estado. 

Além disso, o pastor Alexandre demonstra grande desconhecimento em relação aos trabalhos diaconais da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), que este ano celebra 200 anos de presença em território brasileiro, e da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB), ao afirmar “não me lembro de ver igreja luterana ou anglicana nesses locais mais pobres”.

É típico de um certo evangelismo autocentrado e com síndrome salvacionista julgar ou, se valer de sua comunidade religiosa como moeda de troca para obter privilégios. Para ampliar o conhecimento do pastor Alexandre, posso afirmar que ambas as igrejas têm um trabalho engajado, tanto nas periferias urbanas, quanto rurais.

Além de escolas, creches, templos, a IECLB atua fortemente, desde os anos 70, na luta contra as barragens e em apoio ao Movimento de Pessoas Atingidas por Barragens (MAB). Da mesma forma, tanto a IECLB, quanto a IEAB estiveram, junto com irmãos e irmãs católicas romanas, nos primórdios do MST, apoiando o seu desenvolvimento já no período da fazenda Anoni. Ambas igrejas seguem fiéis parceiras do MST, incentivando a agroecologia e o direito de todas as pessoas de terem comida saudável na mesa, pois uma cesta básica carregada de agrotóxico e alimentos ultra processados pode até, momentaneamente matar a fome, mas em médio e longo prazos adoece. Defendemos que os alimentos que fazem parte da cesta básica precisam ser comprados de pequenos agricultores locais e das produções coletivas. Desta forma, matamos a fome e incentivamos quem produz comida saudável. Este é o ciclo do direito humano à alimentação. Estas duas igrejas são defensoras históricas da reforma agrária e da função social da terra.

Durante a ditadura militar, em Rondônia, pastores luteranos junto com padres, religiosos e religiosas católicas romanas, foram fiéis defensores de pessoas que lutavam por terra e eram perseguidas por um certo Coronel Curió, falecido há pouco tempo. Aproveito para informar ao pastor Alexandre que no Estado de Rondônia, um dos mais fundamentalistas do Brasil, a IEAB mantém a única casa de acolhida a mulheres em situação de violência, é a Casa Noeli dos Santos. Da mesma forma, ambas as igrejas trabalham e apoiam a luta política dos povos indígenas pelo direito ao território e isso, sem impor as confessionalidades luterana ou anglicana, mas, ao contrário, reforçando o direito destes povos de manterem vivas suas espiritualidades e visões de mundo. Ao realizar o trabalho que tem por objetivo alcançar justiça social, étnica, agrária ou de gênero, a IECLB e a IEAB não fazem proselitismo; a atuação dessas igrejas não visa o seu próprio crescimento, mas o serviço desinteressado que responde ao compromisso com o Evangelho de amor e cuidado pela população mais pobre e vulnerável. Poderia citar outros exemplos, mas paro por aqui, uma vez que é valor para ambas as igrejas fazer o bem sem com isso reivindicar privilégios ou benefícios governamentais.

Pastor Alexandre fala das igrejas evangélicas que estão nas periferias. É verdade que estão, mas temos que nos perguntar: onde foram parar os terreiros e as expressões do catolicismo popular na medida em que estas igrejas cresciam? Por que elas não conseguem conviver com outras expressões de fé? Por que se tornam hostis? Além disso, por que a estética das periferias mudou? Antes se encontravam alusões aos orixás, à religiosidade popular católica e hoje, tudo o que se vê são muros pichados com “Só Jesus salva”, “este território pertence ao senhor Jesus”, “leia a bíblia”, entre outras frases. Por que pessoas praticantes do Candomblé e da Umbanda não podem mais andar com suas contas e vestimentas características por medo de serem ameaçados ou, até mesmo, agredidos fisicamente? Por que os seus lugares de culto são destruídos?

Parece-me que a realidade tende a ser muito mais carregada de nuances do que as certezas do pastor Alexandre. A assim chamada população evangélica é plural, tem sabedoria, muda de opinião quando acessa livremente as informações, e sabe debater.

Parece-me também que certos “pastores progressistas” tendem a projetar toda a sua herança patriarcal em uma categoria vazia chamada “evangélica”. Há muito observo este “progressismo evangélico” (colunistas em grande mídias e comentaristas/influenciadores de youtube) desvirtuar conceitos históricos, dizendo, por exemplo, que há um feminismo de direita; fazem este jogo de palavras para ter “ibope”, mesmo sabendo que, com isso, estão desinformando.

Pastor Alexandre defende a agenda moral rígida em nome dos evangélicos da periferia, mesmo que estas agendas matem, diariamente, especialmente mulheres, jovens e crianças também evangélicas na guerra insana do tráfico de drogas, e jovens evangélicos em conflito com suas sexualidades, pelo suicídio.

Lusmarina é uma incômoda filha de Eva porque ousa questionar o patriarcado evangélico fundamentalista e progressista. Isso ficou comprovado, mais uma vez, quando participou, em 2018, na audiência pública do STF sobre a ADPF 442, que propôs a descriminalização do aborto até a 12ª semana. À época ela representou o ISER, mas falou por todas nós, filhas incômodas de Eva que, como Lusmarina, avaliamos ser um equívoco do atual governo privilegiar um segmento religioso sob o argumento de que é o único que está nas periferias junto com os pobres. Nós também estamos! Nós: luteranos, anglicanos, batistas, metodistas, congregacionais, presbiterianos, católicos, candomblecistas, espíritas, umbandistas e tantos outros. Nós estamos com os pobres e nós acreditamos que o direito das pessoas pobres é deixar de ser pobre e poder viver com dignidade em casas confortáveis e com comida boa na mesa. Também acreditamos que pessoas pobres, evangélicas ou não, têm o direito de pensar livremente. Queremos transformar espadas em arados e lanças em foices, para que nunca mais haja guerras e nem patriarcados disfarçados de progressismo que matem mulheres e corpos dissidentes.

Como incômodas filhas de Eva acreditamos que nenhuma pessoa que escolhe fazer parte de uma igreja deve ficar sob a tutela teológica de um pastor, seja ele progressista ou não.  Reivindicamos a herança protestante do “sacerdócio universal” de todas as pessoas que acreditam. A fé nos autoriza a pensar por nós mesmas.

Entendemos a opção do governo Lula por dialogar e apoiar as pequenas igrejas evangélicas. Sabemos que nesta opção há uma tentativa de enfrentar a baixa aprovação atual do governo entre parte dos evangélicos. No entanto, esta aproximação com as pequenas igrejas não pode estabelecer relações de privilégio, pois isso atenta contra a laicidade do Estado e significa renunciar ao diálogo aberto e franco com grupos religiosos variados que também estão nas periferias combatendo a fome, o racismo e as misoginias nossas de cada dia.


[1] Aqui insiro uma nota de rodapé. Morei em Cuba e sei que muitos projetos de implantação de igrejas tinham como um dos objetivos desestabilizar o governo cubano, não sei se este foi o caso. Muitos destes projetos receberam fartos recursos de igrejas norte-americanas apoiadoras do bloqueio imposto pelos EUA. À época eu tinha forte relação com o Centro Memorial Martin Luther King Junior e com a Igreja Episcopal Anglicana de Cuba, ambas as organizações se inspiravam nas comunidades eclesiais de base brasileiras para realizar seu trabalho popular e eram apoiadas pelo movimento Pastores por la Paz, que reunia representações de igrejas norte americanas que denunciavam o bloqueio do governo americano contra Cuba.

[2] Esta apresentação está no Observatório Evangélico.

[3] https://www.latinobarometro.org/lat.jsp

[4] http://datasets.americasbarometer.org

[5] Pesquisa Nacional do Aborto, de 2016, coordenada pela antropóloga Débora Diniz, mostra que, das mulheres que abortam no Brasil, 25% são evangélicas e 56% são católicas. … Leia mais em https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/o-aborto-e-as-mulheres-evangelicas/. O conteúdo de CartaCapital está protegido pela legislação brasileira sobre direito autoral. Essa defesa é necessária para manter o jornalismo corajoso e transparente de CartaCapital vivo e acessível a todos

[6] https://fpabramo.org.br/publicacoes/publicacao/percepcoes-e-valores-politicos-nas-periferias-de-sao-paulo/


*Romi Bencke é pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, graduada em Teologia pelas Faculdades EST (São Leopoldo), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF. Em 2013 recebeu o prêmio de Direitos Humanos na categoria Promoção e Respeito à Diversidade Religiosa. Atualmente ocupa a função de secretária geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) e integra o grupo coordenador do Fórum Ecumênico ACT Brasil.