Dennis Gonçalves, sociólogo, militante da Consulta Popular e da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político
Os últimos dez dias apontaram para a possibilidade de uma importante mudança na conjuntura política brasileira. Sem dúvida, os acontecimentos destes colocaram o governo Bolsonaro no seu pior momento até agora. Pelo menos três fatores merecem ser citados, convergindo para criar a situação de defensiva para o governo:
1) A realização de massivos atos de rua, puxados pela Campanha Fora Bolsonaro com o slogan “vacina no braço, comida no prato”, no dia 19 de junho. Desde o início do governo – e em especial após o início da pandemia – o recurso às ruas foi algo manejado majoritariamente pela extrema-direita, em defesa do presidente e contra as instituições da democracia liberal. Esta quase hegemonia servia para alimentar a narrativa bolsonarista de que o presidente estaria equilibrando-se entre, de um lado, a “vontade do povo” e, de outro, as amarras colocadas pela manutenção da governabilidade neste Estado. A solução, como o próprio Bolsonaro deixou claro, seria demolir as instituições contrárias e abrir caminho para a implantação do projeto da extrema-direita, travestido de vontade popular. Com a retomada das mobilizações pela esquerda, primeiro no dia 29 de maio, mas, principalmente, no 19J, o bolsonarismo foi despido deste manto e viu-se pequeno. Quebrando a quase hegemonia que detinha dos atos de rua, retirou-se dele a possibilidade de se apresentar como expressão dos interesses populares.
2) A confirmação de que Lula estará nas urnas em 2022, dada pela conclusão no STF do julgamento de suspeição do ex-juiz Sérgio Moro. Este fato foi coroado pela divulgação de uma pesquisa do Ipec apontando a vantagem avassaladora do ex-presidente nas intenções de voto, ainda no primeiro turno. A perspectiva de derrota eleitoral que se avizinha coloca o bolsonarismo ainda mais na defensiva. E sinaliza para setores de direita que a renovação da aposta em Bolsonaro para derrotar a esquerda nas urnas pode acabar com os burros n’água. Não é menor, a este propósito, que o presidente sequer tenha uma legenda – e muito menos um arco sólido e significativo de alianças partidárias – para disputar em 2022. Neste momento, parece muito arriscado apostar que 2022 pode repetir, contra Lula, a campanha de 2018: com foco nas redes sociais, sem estrutura partidária, com pouco tempo de propaganda eleitoral e com Bolsonaro possivelmente se recusando a participar dos debates entre candidatos, ainda que se pese a vantagem que tem qualquer candidato de situação. Tampouco estes setores demonstraram algum entusiasmo com a solução bolsonarista de questionar as próprias urnas, seja como forma de preparar o terreno para não aceitar o seu resultado ou mesmo (numa possibilidade ainda mais remota) de criar um embaraço de ordem operativa que acabasse forçando o adiamento das eleições. Foi rejeitada tanto pelo grau de insegurança que esta proposta geraria, quanto pela necessidade que ela implicaria de conservar o monopólio da ruas, que a extrema-direita não mais detém. Cada vez mais, aos que desejam a chamada “terceira via”, parece mais plausível deslocar Bolsonaro da disputa do que Lula.
3) O caso Covaxin e o depoimento dos irmãos Miranda na CPI da Covid. A este respeito, convenhamos que adicionar o crime de prevaricação à longa lista de motivos que serão apresentados no superpedido de impeachment no dia 30, não é lá grande coisa. Principalmente se considerarmos o monstruoso genocídio que vem sendo patrocinado por este governo face à pandemia. Contudo, os desdobramentos deste caso abrem uma nova frente de luta em um campo no qual não é preciso introduzir novos termos ao debate público: é corrupto. É evidente que as práticas espúrias da família Bolsonaro já estão elucidadas, há muito tempo, para quem quiser ver. Mas, as declarações que apareceram na imprensa e na CPI – e as que ainda não apareceram –, tem se mostrado especialmente difíceis de isolar, para o presidente. Atingem em cheio um importante deputado da base governista na Câmara e um general ajudante de ordens do capitão, que ele fez questão de manter por perto como sinal de apoio ao trabalho feito.
Não convém, evidentemente, subestimar a capacidade de resistência do bolsonarismo. Ele certamente irá lançar mão de todos os meios possíveis para se conservar no poder, passando por um aprofundamento da relação com o centrão, repaginação de programas sociais, demonstração de compromisso com a agenda liberal, tentativas de retomar as ruas e até a mobilização dos setores armados que o apoiam. Ainda assim, após os últimos dias a queda do presidente se apresentou como um cenário possível. Uma boa imagem é dizer que foram abertas as portas do impeachment; e o que parecia impossível, tornou-se factível. A própria afirmação “Bolsonaro vai cair” passou a ser divulgada nos materiais de convocação para o próximo ato, dia 03. Se o factível vai tornar-se fato ainda é algo que dependerá do desenvolvimento conjuntural e de como estes e outros fatores irão alimentar a mobilização social, representada nos atos que virão. Mas a própria situação em que essa afirmação pode ser feita é algo que merece destaque.
Com isso, deve-se reconhecer a enorme importância da esquerda nesta conjuntura. Com a extrema-direita acuada e na defensiva, a esquerda dispõe ainda de uma boa liberdade de ação. Vale dizer que essa posição é fruto de processos que tem sido paciente e laboriosamente construídos pela esquerda no último período. A capacidade de resistência de suas organizações e a persistente busca por unidade nas frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, até o momento em que se pôde propor a retomada das mobilizações de rua por meio da Campanha Fora Bolsonaro; a resiliência do ex-presidente Lula e a manutenção, mesmo em condições adversas, da Campanha Lula Livre; e a habilidade da movimentação no Congresso, demarcando claramente o campo da oposição e conduzindo à construção da CPI, com a composição que tem. Estas iniciativas puderam se conectar com os eventos, sentimentos e contextos que surgiram na conjuntura, que sem dúvida teria se desenrolado de outra forma tivesse a esquerda adotado uma postura mais retraída.
Neste momento, é importante que a esquerda conserve o protagonismo e sua identidade nas ruas. É comum encontrarmos a afirmação de que o grito pelo impeachment é mais amplo do que a esquerda, até mesmo de que trata-se de uma cruzada da “civilização” contra a barbárie. Está correto isso na medida em que não se pode travar a luta política sem relações com outros setores. Como um processo de impeachment necessariamente tem que polarizar o conjunto das forças do espectro político em dois campos opostos, trata-se de aglutinar a maior força no nosso campo. Contudo, é preciso lembrar persistentemente que, desde o início, quem se colocou de forma decidida pela “civilização” e contra a barbárie foram justamente as organizações de esquerda.
Acontece que a esquerda, impulsionando os atos de rua pela Campanha Fora Bolsonaro, tem algo a dizer sobre esta civilização que vêm defender. E não pode esconder a rica diversidade de lutas e bandeiras que a constituem. É preciso seguir afirmando, nas ruas, que é contra Bolsonaro sim, contra o genocídio, o negacionismo e contra o autoritarismo; mas que é, também, em defesa da valorização das mulheres, das negras e negros, das pessoas LGBTQIA+, dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, do meio ambiente, das trabalhadoras e trabalhadores, dos direitos humanos e dos serviços públicos sem ingerência privada. A sociedade que a esquerda vai para a rua defender é humana, justa e solidária, radicalmente diferente do que temos hoje, e é justamente por assumirem esta concepção que sempre se mantiveram no campo contrário ao projeto bolsonarista. De outro lado, setores que desejam a continuidade da agenda liberal, de redução do “custo Brasil” (leia-se, retirada de direitos e desmonte dos serviços públicos), mas que passaram a ver o atual governo como empecilho, adorariam que o impeachment viesse nos braços de protestos apócrifos, “do povo contra Bolsonaro”.
A tensão entre a ampliação do leque de alianças e a conservação de princípios programáticos e valores próprios foi sempre presente na história política da esquerda. No contexto atual, são elementos que precisam ser bem equacionados a cada nova ação proposta. Pensando nas ruas, nos atos convocados, deve-se levar em conta uma discussão com mais intencionalidade sobre de que forma o atual ciclo de mobilizações terá sua sombra projetada na conjuntura futura. Esta é uma discussão válida ainda que o objetivo imediato do impeachment não seja atingido. Um ciclo de mobilizações massivas conduzido pela esquerda tem que chamar atenção para um projeto político (não sectário) defendido por ela. Isso será feito dando visibilidade às organizações – movimentos sociais, sindicatos, associações, partidos, etc –, aos espaços de composição que constrói – como a própria Campanha Fora Bolsonaro, a Frente Brasil Popular, Frente Povo Sem Medo e a Coalizão Negra por Direitos – e às bandeiras que defende. Além disso, é preciso que este projeto seja apresentado de forma mais sistemática, na capacidade de os atos exporem essa diversidade, nos meios de comunicação de que a Campanha dispõe e na intersecção das organizações com a política institucional.
Após o pântano em que o Brasil foi colocado com o golpe de 2016, é preciso que as ruas venham reafirmar: a esperança segue sendo pela esquerda.