Voto Facultativo: remédio para quais males?

Rafael da Silva[1]

Quando estamos em uma conjuntura de crise, onde se buscam remédios institucionais para resolvê-la, surgem vozes demandando uma reforma política. Talvez, o único consenso existente entre essas vozes seja sua premência, de resto, quando analisamos a substancialidade das propostas, encontramos sugestões que apontam para todos os pontos cardeais, colaterais e subcolaterais. Algumas delas causam barulho, mas quando se tenta quantificar seus efeitos, constata-se que esse barulho é por nada, produzindo, muitas vezes, efeitos extremamente deletérios. Dentre algumas destas propostas barulhentas, conforme qualificadas acima, está o fim do Voto Obrigatório, ou, a mesma coisa, a adoção do Voto Facultativo. O propósito deste texto é discutir esse suposto “remédio”.

 Seguindo sugestão de Cícero Araújo (2006), os argumentos em torno desse assunto podem ser divididos em duas grandes dimensões:

  1. Dos Princípios: cuja centralidade está na ideia de um direito e, portanto, cabe ao cidadão a prerrogativa de usufruí-lo ou não;
  2. Da Consequêncialista: centrada nos efeitos práticos de uma determinada medida já implementada, ou que poderá ser adotada.

Pois bem, o objetivo aqui é me deter na dimensão consequêncialista, porém, não me furtarei em apresentar alguns aspectos importantes da outra dimensão, por onde começo minha exposição. Quando falamos dos argumentos principialistas, pró e contra, refiro-me às razões que giram em torno das ideias de: direitos, liberdades individuais, e as responsabilidades públicas, ou deveres cívicos. Os favoráveis ao voto facultativo alegam que, sendo um direito, não deve ser obrigatório, pois, fere na alma a própria ideia de direito, que faculta seu exercício. Além disso, transformar um direito em obrigação restringe o campo das liberdades individuais, afinal, tenho que ter liberdade de não votar. Esse argumento revela um egoísmo deletério implícito, que ataca os princípios da res pública (coisa pública), já que desconsidera que a vida coletiva é construída, também, por obrigações, por responsabilidades. É razoável concluirmos que esse argumento, seguindo sua lógica, nos leve a aceitar que, o ato de vender o voto seja legítimo. Afinal, ele pertence única e exclusivamente ao eleitor, sendo ele livre para usá-lo como bem entender, inclusive vendendo-o, sendo uma decisão de estrito foro íntimo (Araújo, 2006).

Porém, o que não é razoável é que queiramos construir uma res pública apenas com essa visão privatista, negligenciando o outro lado da moeda, que diz respeito aos deveres para com a dimensão pública da vida em coletividade. Portanto, todos(as) devem ser partícipes da construção de um país melhor, e responsáveis pelos rumos políticos dessa coletividade. Como bem lembrou Renato Janine Ribeiro (2003), nas liberdades públicas, coincidem o direito e o dever, conforme nos ensinaram os antigos romanos, centenas de séculos atrás. Marenco dos Santos (2015) também vai por este caminho, enfatizando que os direitos não são resultados de geração espontânea, suas conquistas requereram custos, e sua manutenção também. A democracia é um bem público que impõe custos (materiais e simbólicos) a sua provisão, e esses custos devem ser, minimamente, socializados com toda a cidadania. Afinal, para termos acesso a certos direitos como segurança, saúde e educação de qualidade, somos obrigados a pagar impostos, ou alguém considera possível exigir tais direitos e, concomitantemente, que os impostos sejam facultativos? Apesar da pergunta ser retórica, a resposta é um sonoro NÃO.

Assim, aquilo que era uma antinomia (Direito X Dever), por esse outro prisma, o da coletividade, das liberdades públicas, do dever cívico, torna-se compatível.

Passemos agora para os argumentos consequêncialistas. Um deles, ao defender o voto facultativo, afirma que, em sua vigência, a qualidade do voto seria melhor, por duas razões:

  1. Só aqueles eleitores mais interessados, informados, com maior envolvimento com a política votariam, fazendo melhores escolhas[2]. Apesar de sedutor, esse argumento elitista é eivado de preconceitos e pressupostos nada factuais (por quais razões a escolha eleitoral de um indivíduo escolarizado, rico etc…., é sempre boa? É boa para quem? E o que é uma boa decisão?).
  2. A outra razão é que, o eleitor que venderia o seu voto, por indiferença, ou qualquer outro motivo, quando da vigência da obrigatoriedade, não o venderia caso fosse facultativo, pois não estaria disposto a sair do sossego do seu lar em um domingo. Pois bem, além de não haver evidências, portanto, de que o voto facultativo evitaria seu comércio, proponho uma reflexão de cunho racionalista. No contexto de voto obrigatório, o peso de um voto é 1/N (onde N é o total de eleitores aptos para votar). No caso das eleições presidenciais de 2018, o cálculo ficaria o seguinte: 1÷147.306.275 (total de eleitores nesse pleito). Logo, o peso de um único voto, para a definição do presidente da república, foi de 0,0000007%. Caso seja facultativo, esse N reduzirá[3], conferindo maior peso individual para cada voto. Com isso, oferece-se incentivos maiores para o eleitor que queira vender seu voto, e para o candidato que queira comprar, afinal, agora, um voto é mais decisivo que outrora, quando da obrigatoriedade.

Mas, o argumento que possui robustez empírica é aquele que afirma que,

[…] o voto obrigatório pode se constituir em único instrumento capaz de fazer parte expressiva da população de um país a estabelecer algum tipo de contato, ainda que efêmero, com o mundo da política. Sobretudo em nações como a nossa, com curta experiência democrática, baixos níveis de interesse por política e persistente desigualdade social, a obrigação do comparecimento continua desempenhando papel fundamental na redução das assimetrias na representação (RIBEIRO, 2013, p. 46).

Mas, a primeira constatação a ser feita é acerca do efeito da obrigatoriedade do voto no comparecimento eleitoral. Ribeiro, Borba e Silva (2015) fizeram testes estatísticos que indicaram que a existência da obrigatoriedade do voto traz um incremento na afluência às urnas. Em uma extensa análise comparativa para a América Latina, em minha tese de doutorado (SILVA, 2016) busquei saber quais fatores levam as pessoas a se absterem. Um dos fatores que se mostrou mais presente nas análises, foi o “Voto Obrigatório”. Ou seja, havendo a obrigatoriedade, há uma redução nas abstenções e, por consequência direta, um aumento no comparecimento. Birch (2009) foi além em seus estudos, mostrando que a obrigatoriedade com sanções para os faltosos produz efeitos de afluência maiores que a simples obrigatoriedade sem punições. Ou seja, a primeira conclusão tirada aqui, e que se coaduna com outros estudos internacionais não mencionados, é que a obrigatoriedade importa para o comparecimento em eleições.

            Rumando para outro aspecto deste debate, havendo voto facultativo, quem seriam os eleitores que utilizariam dessa prerrogativa para não comparecer às urnas? Pegando a realidade estadunidense como exemplo, os estudos mostram que os eleitores que lá se abstém, são negros, pobres, de outras minorias, ou seja, eleitores que mais necessitam do auxílio estatal, das políticas públicas. Considerando o fato de que na sociedade brasileira vigora uma brutal desigualdade, não precisamos de muito esforço para supor quem seriam os eleitores que se absteriam, caso houvesse voto facultativo. Partimos agora do campo das suposições, para o campo dos fatos.

            Em outro estudo que fiz sobre o assunto (Silva, 2018), busquei mapear o perfil dos eleitores que se abstiveram no pleito de 2010 e aqueles que se absteriam, em um contexto futuro e hipotético, no caso de haver voto facultativo[4]. Usando uma técnica estatística, busquei aferir o peso dos fatores que, segundo uma literatura especializada, são determinantes para a ocorrência de dois fenômenos: abstenção (comportamento efetivado no primeiro turno da eleição de 2010) e abstenção hipotética (em um possível contexto de voto facultativo). Os fatores selecionados para os testes estatísticos foram os mesmos: perfil demográfico (sexo, escolaridade e idade), comportamentais (assiste telejornal, acompanhou as eleições e os debates eleitorais e compareceu no pleito nacional anterior ao de 2010) e atitudinais (avaliação das instituições política, da democracia etc…).

            Em síntese, para o teste da abstenção efetiva nas eleições de 2010, o único fator que se mostrou relevante foi a idade. Os dados mostraram que a abstenção foi maior nos grupos com idade de voto facultativo (16/17 anos e 70 anos ou mais) o que era esperado. Quando analisamos os mesmos fatores para a abstenção hipotética, o que obtivemos de resultado foi que: a participação eleitoral ficaria mais restrita à homens, escolarizados, que já possuem proximidade com a política (acompanham a vida política e as campanhas eleitorais), satisfeitos com a democracia e o funcionamento de suas instituições e que veem efetividade na sua participação na política/eleições. Portanto, considerando estes dados, o comparecimento eleitoral, em uma eventual eleição com voto facultativo no Brasil, dificilmente superaria 50% dos eleitores. Assim, uma legião de cidadãos que precisam da assistência do Estado e de suas políticas estariam ausentes, deixando que uma elite decida por ela. O resultado da urna, nesse contexto, levaria em consideração o que seria bom para esta elite, e não para as camadas mais necessitadas que se absteriam.

            Obviamente, o voto obrigatório não resolve o problema das desigualdades estruturais. Mas o ponto a ser ressaltado é que o voto facultativo pode aumentar essas desigualdades. Vale uma ressalva importante, na atual experiência democrática, com o império do voto obrigatório, vivenciamos políticas de inclusão que, embora longe de promover uma efetiva igualdade social, possibilitaram com que parcelas significativas da população marginalizada tivesse acesso a um mínimo de bem-estar social. A pergunta que não quer calar é: caso tivéssemos voto facultativo, com a exclusão eleitoral dessa parcela significativa do eleitorado, em um país de desigualdades brutais, teríamos a mesma inclusão social? Indo além, teríamos em vigor a atual constituição, uma Constituição Cidadã, que prevê direitos individuais, políticos e sociais, portanto, uma cidadania completa?  Logo, uma reforma política séria, consideraria tais ponderações, de ordem consequencialista, não alterando o status “obrigatório” do voto, e promoveria formas ainda mais efetiva de inclusão e participação política. Resumindo o argumento que defendi nesse texto: o voto facultativo não resolve nada, apenas piora. Por isso, conforme sugestão de um estudioso do assunto (Marenco dos Santos, 2015), seu debate provoca muito barulho por nada.

Referências:

BIRCH, S. Full Participation: A Comparative Study of Compulsory Voting. Manchester: Manchester University Press, 2009.

MARENCO DOS SANTOS, A. Voto Fecultativo: muito barulho por pouco. In: IANONI, M. (Org.). Reforma Política Democrática: temas, atores e desafios. São Paulo: Perseu Abramo, 2015.

POWER, T. J. Compulsory for Whom? Mandatory Voting and Electoral Participation in Brazil,1986-2006. Journal of Politics in Latin America, 1, 1, 2009, p. 97-122.

RIBEIRO, E. Voto compulsório: a desigualdade na participação política. Em Debate, 5(4), 2013, p. 41-48.

RIBEIRO, E. A.; BORBA, J.; SILVA, R. Comparecimento Eleitoral na América Latina: uma análise multi-nível comparada. Rev. Sociol. Polit., 23 (54), 2015, p. 91-108.

SILVA, R. Comportamento eleitoral na América Latina e no Brasil: em busca dos determinantes das abstenções, votos brancos e votos nulos. 192f. Tese (Doutorado em Sociologia Política) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política, Universidade Federal de Santa Catarina, 2016.

SILVA, R. Quem se abstém? Quem se absterá? Eleitores e eleições em contexto de voto obrigatório: uma abordagem do caso brasileiro. XI Encontro anual da Associação Brasileira de Ciência Política. Curitiba, 2018.


[1] Professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM), e-mail: [email protected].

[2] A participação política está condicionada a certos recursos “individuais” (escolaridade/renda, tempo livre etc..) que são distribuídos desigualmente, ainda mais em um contexto como o brasileiro, marcado por uma desigualdade estrutural. Mesmo que votar seja uma das modalidades mais simples de participação política, de baixo custo para o eleitor, a sua realização exige o acionamento de alguns desses recursos. Diante disso, Power (2009) afirma que o comparecimento eleitoral varia segundo recursos/atributos dos eleitores, bem como, a “autoexclusão eleitoral”, em uma situação de voto facultativo, atingirá mais, alguns eleitores, que outros.

[3] Basta pegar o exemplo do Chile, que, no início da década que está se encerrando, instituiu o voto facultativo, e viu o comparecimento eleitoral despencar de 87%, para menos de 50% do eleitorado, chegando a 42% em 2013.

[4] Esse estudo foi feito com base numa pesquisa de opinião pública pós-eleitoral (Estudos Eleitorais Brasileiros – ESEB, 2010).

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