Por Marcelo Kunrath Silva, sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
As comunidades territorializadas, entendidas como coletividades formadas por populações que apresentam uma identificação com um território delimitado, são espaços sociais que tradicionalmente tiveram grande importância nos processos de organização popular. A partir das relações estruturantes da vida comunitária (familiares, de vizinhança, de pertencimento religioso, de trabalho, de identificação étnico-racial etc.), se constroem laços sociais, identidades, grupos, lideranças, recursos e interesses compartilhados nos quais se baseia o associativismo popular.
Historicamente, no entanto, o mundo associativo comunitário – expresso nas associações de moradores, comunidades religiosas, grupos de auxílio mútuo, grupos culturais, entre outros – tendeu a ser concebido como um associativismo de “segunda categoria” por parcela significativa de ativistas e organizações políticas de esquerda. A ênfase na cooperação e não no conflito, a ausência de uma identificação baseada em referentes ideológicos classistas, a atuação direcionada para a resolução de problemas cotidianos, a inserção em relações políticas personalistas e clientelistas, entre outros aspectos que tendem a caracterizar o associativismo comunitário, produziram uma interpretação que via tal associativismo como atrasado, despolitizado e, no limite, voltado muito mais à reprodução da ordem social do que à transformação da mesma.
Uma ruptura com essa interpretação negativa pode ser observada entre o final dos anos 1970 e início dos anos 1980, conformando um período que Doimo (1995) denominou de “a vez do popular”. A partir da convergência de vários processos (fechamento das organizações tradicionais da esquerda, derrota da luta armada contra a Ditadura, críticas da experiência soviética, a “opção preferencial pelos pobres” do Concílio Vaticano II etc.), esse período observou uma valorização inédita dos setores populares e suas práticas associativas comunitárias. Esse associativismo passa a ser reinterpretado positivamente, enquanto um espaço privilegiado para a construção de processos organizativos com efetivo enraizamento popular, algo que tradicionalmente faltou às organizações políticas de esquerda. Tal reinterpretação se expressa claramente no caso das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica, que passam a ser valorizadas e se tornam espaços estratégicos para a atuação política de importantes segmentos da esquerda.
A articulação entre as práticas associativas comunitárias dos setores populares e o ativismo de militantes de esquerda está na origem de grande parte dos movimentos sociais populares que foram construídos, no campo e na cidade, no período da redemocratização brasileira, assim como da sua principal expressão política, o Partido dos Trabalhadores.
Tal articulação só foi possível em função da existência de uma matriz discursiva (Sader, 1988) que traduzia a interpretação crítica e politizadora da esquerda em um enquadramento religioso da vida social fundado na leitura dos ensinamentos bíblicos a partir da Teologia da Libertação. Foi essa matriz discursiva que tornou compreensível e desejável o engajamento militante orientado à transformação social para uma parcela da população brasileira, cuja visão de mundo tende a se estruturar a partir da cosmologia cristã.
Diversos processos produziram mudanças ao longo dos anos 1980 e 2000 que tensionaram e, em muitos casos, romperam aquela articulação inédita produzida no processo de redemocratização. Primeiramente, destaca-se o fortalecimento da ala conservadora da Igreja Católica com o papado de João Paulo II (1978-2005). Essa mudança política fragilizou significativamente o campo político-religioso orientado pela Teologia da Libertação, que constituía um suporte (cultural e material) fundamental aos processos organizativos comunitários dos setores populares.
Em segundo lugar, em função da própria redemocratização do país, observa-se nesse período uma crescente importância das relações com governos, instituições participativas e políticas públicas para as organizações de movimentos sociais (OMSs) e organizações não governamentais (ONGs). Isso levou a um direcionamento de parte significativa das ações e dos recursos destas organizações para processos de institucionalização, profissionalização e especialização voltados à ampliação da eficácia das mesmas no campo institucional e na mediação entre populações e políticas públicas. Essa atuação das organizações sociais foi fundamental para a construção e efetivação de diversas políticas, especialmente a partir do início da Presidência de Lula, em 2003. No entanto, fragilizou o processo político-organizativo e o enraizamento societário de parcelas importantes do mundo associativo do país.
Em terceiro lugar, destaca-se um processo que mudou radicalmente as comunidades populares entre os anos 1980 e 2000, especialmente nas áreas urbanas: as transformações e o fortalecimento do mundo do crime, particularmente o relacionado ao tráfico de drogas. O crescimento do crime, por um lado, teve efeitos dramáticos em termos de violência, insegurança, ruptura de relações, restrições à circulação e ao convívio, entre outros aspectos, desestruturando parte das relações que fundamentavam a vida comunitária e, por decorrência, afetando negativamente as formas associativas que se baseavam naquelas relações. Por outro lado, o crescimento do crime colocava no centro da agenda comunitária e social um tema que tradicionalmente foi problemático para o campo progressista: a segurança pública. Foi em torno desse tema que se estruturaram discursos e atores políticos conservadores que, ao oferecerem “soluções” ao problema da insegurança cotidiana, conseguiram mobilizar o suporte político-eleitoral de importantes segmentos das comunidades populares.
Uma quarta mudança a ser destacada é a expansão das Igrejas evangélicas nas comunidades populares. Ocupando espaços deixados pela desestruturação parcial do campo religioso progressista e, ainda, pela relativa desconexão entre o mundo associativo e a população, as Igrejas evangélicas vão passar a ter um importante papel nas comunidades. Esse papel transcende o âmbito estrito da religiosidade, uma vez que as Igrejas vão atuar também na estruturação da sociabilidade comunitária, nas ofertas culturais, na geração de oportunidades econômicas, na criação de espaços sociais seguros frente à violência cotidiana. Progressivamente, o enraizamento comunitário das Igrejas passou a se traduzir em capacidade de mobilização eleitoral, constituindo-as como um ator político importante nas relações de poder comunitárias e nas relações das comunidades com atores e instituições externas.
Por fim, mais recentemente, destaca-se a difusão da Internet, especialmente das redes sociais mediadas tecnologicamente, e seus impactos sobre as formas de interação e comunicação cotidianas nos territórios. Na medida em que oportunizam relações que independem de proximidade espacial, as redes sociais mediadas tecnologicamente ampliam de forma significativa as possibilidades de ocorrência de interações, de construção de identificações e de produção de formas associativas entre indivíduos das comunidades populares e indivíduos de outros espaços sociais. Outros referentes identitários, que não têm sua origem nos territórios, passam a estar disponíveis para a identificação e mobilização dos indivíduos.
Essa rápida síntese indica que as condições contextuais nas quais se constroem os processos organizativos comunitários se alteraram radicalmente nas últimas décadas. Mudanças internas e externas aos territórios colocam oportunidades e obstáculos muito distintos daqueles observados no contexto da redemocratização brasileira. A religiosidade, no entanto, parece continuar sendo o elemento estruturante da cosmologia popular. Obviamente, não é a mesma religiosidade dos anos 1970 e 1980. Mas, apesar das diferenças, observa-se a continuidade da forte articulação entre uma perspectiva religiosa (que estrutura a economia moral popular e, a partir dela, a forma como a realidade é interpretada e avaliada) e os posicionamentos e práticas políticas populares. A desconsideração e, pior, a desqualificação desta articulação por parcelas significativas da esquerda laica e intelectualizada tende a ser um obstáculo para a politização do associativismo comunitário em uma perspectiva progressista.
Referências bibliográficas
DOIMO, Ana Maria. A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós-70. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/ANPOCS, 1995.
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
*** Este texto nasce do encontro entre duas iniciativas. Ele foi encomendado pela Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político à Rede de pesquisadores e pesquisadoras Democracia & Participação. Além deste texto, foram produzidos outros. Em todos eles, procura-se sistematizar alguns dos debates que têm circulado na universidade em torno daquele tema. Os textos são curtos e refletem pontos de vistas do (a) autor (a). Por isso são assinados. No horizonte que anima esta experiência está a aposta no aprofundamento do diálogo entre a universidade e os movimentos sociais. Juntos, buscamos enfrentar o desafio de construir uma comunicação significativa na defesa da democracia e da justiça social.