RE 494601: o reconhecimento do racismo religioso?

Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino[1]

Winnie Bueno[2]

 

Além de declarar a constitucionalidade do abate religioso de animais, o STF tangenciou a questão da violência contra as religiões de matriz africana como uma das facetas do racismo estrutural

“É como voto. Saravá!” A saudação, vigorosamente respondida pelas(os) afro-religiosas(os) presentes no plenário do STF, encerrou o pronunciamento do Min. Roberto Barroso na última quinta-feira. Com ela se arrematou a tese de repercussão geral do Recurso Extraordinário 494601: “É constitucional a Lei de Proteção Animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana”. Seguindo o entendimento do Min. Fachin[3] pela total improcedência, a Corte Constitucional rejeitou os argumentos do Ministério Público do Rio Grande do Sul, colocando fim a uma controvérsia de mais de quinze anos que ameaçava as expressões religiosas das tradições de matriz africana.

Celebrada como uma conquista pelo povo de santo e pelo movimento negro em todo o país – cuja mobilização e advocacy tiveram papel central no deslinde do caso, frisado inclusive pelas(os) ministras(os) -, a decisão tem potencial para dar um passo em tema de alta voltagem no cenário político brasileiro: o racismo religioso. Há anos vem se reivindicando o conceito que, no lugar de sua congênere liberal – a “intolerência religiosa” – demarca “a gravidade e, sobretudo a especificidade da experiência de uma violência perpetrada contra as religiões de matriz africana, que tem no racismo o seu sustentáculo de legitimação e ação destruidora”, posto que as agressões por elas sofridas “não se circunscrevem a um caráter puramente religioso, mas a uma dinâmica civilizatória repleta de valores, saberes, filosofias, cosmogonias, em suma, modos de viver e existir negroafricano amalgamados nas comunidades de terreiro”[4].

“Se a interpretação da lei não fosse preconceituosa, não haveria necessidade da exceção (…) aqueles que sustentaram a necessidade de vedação à crueldade e maus tratos aos animais como se isso fizesse parte da sacralização erraram de longe, bastava ter ido uma vez a um terreiro de candomblé e assistido ao seu ritual” (Alexandre de Moares)

Muito embora o termo racismo, com todas as letras e, portanto, em todas as suas implicações jurídicas, não tenha sido expressamente utilizado pelas(os) ministras(os), é certo que ao menos algumas(uns) delas(es) enfatizaram aspectos como a estigmatização histórica e o preconceito racial  como legitimadores de especial proteção. Para algumas(uns), inclusive, ficou registrado que foi a própria aplicação discriminatória da Lei Estadual 11.915/03 no Rio Grande do Sul que motivou a exceção em favor das confissões afro-brasileiras. Como bem lembrou, em seu voto, o Min. Alexandre de Moraes, “se a interpretação da lei não fosse preconceituosa, não haveria necessidade da exceção”. Longe de ferir o princípio da laicidade, portanto, tal proteção o concretizaria, buscando colocar em pé de igualdade de direitos tradições que convivem em condições estruturalmente desiguais.

“A proteção deve ser ainda mais forte, como exige o texto constitucional, para o caso da cultura afro-brasileira, não porque seja um primus inter pares, mas porque sua estigmatização, fruto de um preconceito estrutural – como, aliás, já reconheceu esta Corte (ADC 41, Rel. Min. Roberto Barroso, Pleno, DJe 16.08.2017) –, está a merecer especial atenção do Estado.” (Luiz Edson Fachin)

O voto do Min. Fachin chegou a evocar o precedente da Ação Declaratória de Constitucionalidade 41, que teve por objeto as cotas raciais no serviço público federal e que, em sua fundamentação, chama atenção para “a necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade brasileira”. Filia-se, assim, a uma linhagem de casos que, passando pela ADCT 186 (reserva de vagas nas universidades públicas) e a ADI 3239 (direito ao território das comunidades quilombolas), aborda diretamente o racismo, seus efeitos de longa duração e a importância da ação afirmativa estatal em seu combate público.

“Também reconheço que a inclusão [na legislação sul-rio-grandense] da referência aos cultos e liturgias das religiões de matriz africana se dá exatamente pela circunstância de haver preconceito na sociedade, contra tudo que se tem na Constituição e nas leis no Brasil. Mas é um pouco mais do que preconceito aos cultos, é em relação a uma origem tragicamente não acabada daqueles que em grande parte são descendentes de linhagens africanas” (Cármem Lúcia)

Além dele, também a Ministra Carmem Lúcia reconheceu que a perseguição (inclusive pelo próprio Estado, via criminalização) das religiões afrobrasileiras responde a dispositivos racistas mais gerais, os quais operam em face de toda a população e da cultura negras, razão pela qual, citando os números estarrecedores de ataques a terreiros no período recente, o Min. Luiz Fux conclamou a Corte a dar um basta na situação.

“Esta questão que hoje é trazida à baila versa exatamente sobre preconceito religioso, o que é mais dramático, um preconceito religioso que cresce a casa cada dia. Nos últimos 6 meses, a imprensa oficial noticia que mais de 200 casos de intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana foram praticados. Mais recentemente foram incendiadas casas que praticavam essas religiões de matriz africana, de sorte que esse julgamento é um momento ímpar, porque é preciso dar um basta a esta situação e este basta virá pela decisão da Suprema Corte deste país” (Luiz Fux)

No que pese os votos dos ministros e ministras demonstrarem um avanço jurídico na compreensão da alimentação sagrada e da importância da garantia do livre exercício religioso, sobretudo no que tange às tradições que possibilitaram a resistência política e a subjetivação dos povos negros na diáspora, vale destacar alguns contornos desse debate que podem dar ensejo a uma agenda mais arrojada para a presença pública das expressões religiosas de matriz africana no Brasil. Historicamente, os ritos informados pela cosmogonia africana, direta ou indiretamente,  foram suprimidos do reconhecimento estatal. Se por uma lado, este reconhecimento significa a consolidação de uma demanda histórica dos povos de terreiro, por outro ainda estão pendentes questões relativas ao direito ao território, à concepção de meio ambiente protegido, à segurança alimentar, às formas tradicionais de atribuição e transmissão patrimonial e à possibilidade mesma de vivenciar esse sagrado a partir de pressupostos outros, pressupostos mais de caráter civilizatório do que de institucionalidade religiosa. Nesse sentido é que, como sugerimos anteriormente, “não estamos diante apenas de uma disputa entre teses jurídicas, mas de uma encruzilhada entre mundos normativos.”[5]

As limitações estatais às expressões religiosas afro-brasileiras estão imbicadas na matriz de cultura e poder que organiza sistemas de dominação colonial. Dessa forma, ao suprimir, subalternizar ou criminalizar as comunidades de terreiro, frustra-se um processo importante de protagonismo dos povos negros que, não raro, acessam por meio da vivência mítica a condição de sujeitos, numa sociedade marcada por sua coisificação. Sob esta ótica, a não recepção do RE 494601 significa um novo olhar institucional, que reconhece inclusive a particularidade dos processos de (inter)subjetivação em/como resistência.

O resultado do julgamento, entretanto, não significa que as tentativas de genocídio e epistemicídio estejam superadas. Assistimos a uma enxurrada de normas federais, estaduais e municipais.  A partir de máscaras constitucionais[6], se confere uma aparente legalidade a dispositivos que, em seu cerne, atingem princípios-chave do Estado Democrático de Direito.

Para além disso, cabe destacar que a decisão do STF repousa numa perspectiva que, em parte, entende a alimentação sagrada a partir da ingestão nutricional humana, o que, conquanto faça parte da liturgia, não é o fim último da vivência no interior dos espaços  afro-religiosos. Mas não se pode olvidar que esta cosmopolítica apresenta uma noção ampliada de pessoa e de agências no mundo, na qual os seres humanos não estão sozinhos nem tem primazia absoluta, conferindo sentidos múltiplos à sacralização animal, em geral silenciados ou demonizados pelo racismo epistêmico. Por isso denunciamos, em outra oportunidade, os riscos de que o discurso da defesa animal se alie à eliminação das tradições religiosas de matriz africana[7], como, de resto, bem se evidenciou, na última semana, em postagens, material publicitário e fake-news buscando mentirosamente associar essas tradições à crueldade contra cachorros, gatos e outros pets.

Nunca é demais repisar: a sacralização animal e o abate ritual funcionam na lógica da preservação do equilíbrio cosmológico, equilíbrio este que obviamente perpassa pela forma com que interpelamos a vida e a morte. A morte, para os pressupostos civilizatórios de matriz africana, não significa um fim, distanciando-se de sua acepção ocidental hegemônica branca. O animal ofertado ao orixá, inclusive, adquire uma subjetividade que não é esboçada nem mesmo por aqueles que se arvoram seus defensores num paradigma convencional. Ele se torna um ser único, sagrado, conectado a um mundo onde o seu eu se desprende da desumanização/objetificação. Noutras palavras: torna-se um ser em si mesmo. Não se sacrifica, ao contrário, sujeita-se.

Pautamos aqui essas questões para frisar que, diferente do que prega o senso comum, o racismo religioso não reside apenas no desconhecimento, antes está inscrito num modo limitado e limitador da branquitude de compreender outros modos de consciência e existência. Mais do que análise de votos, este é um convite para a disputa social rumo ao enfrentamento da sujeição daquelas e daquelas que historicamente são excluídos do lugar da humanidade, um lugar de privilégio.

Dar um basta ao racismo religioso, assim, é, primeiramente, alargar os contornos desse debate. Ficam as provocações: é estratégico apostar na institucionalidade – e, em especial, no sistema de justiça para a afirmação de nossas subjetividades? O julgamento do RE 494601 representa, efetivamente, o reconhecimento judicial do racismo religioso como uma das facetas do racismo estrutural? E mais, o da participação do Poder Público nele, com a consequente instauração de mecanismos e políticas para a transformação desse estado de coisas inconstitucional? Parte da resposta dependerá de como o Min. Fachin, responsável pela redação definitiva do acórdão, aparará as arestas acima. Ainda, o modo como a decisão será incorporada pelas demais instâncias do Poder Judiciário – cujo racismo institucional tampouco se pode olvidar – e a forma como a sociedade civil dela se apropriará em suas lutas por direitos influenciará, em parte, a fortuna política do caso. O resto, Xangô, orixá de justiça a quem o povo de terreiro agradece a vitória, proverá.

 

[1]Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR. Membro do Núcleo Constitucionalismo e Democracia e da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde – RENAFRO. Coorganizador do livro “Direitos dos Povos de Terreiro” (EDUNEB, 2018).

[2]Iyalorisa, Mestranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Bolsista CAPES PROEX na modalidade taxas escolares e Assessora Técnica do Conselho Estadual do Povo de Terreiro do Rio Grande do Sul.

[3] Entendimento parcialmente divergente do Ministro Relator do caso, Marco Aurélio Mello, que condicionava o abate religioso ao consumo humano da carne: “Dou parcial provimento ao recurso extraordinário, conferindo à Lei nº 11.915/2003 do Estado do Rio Grande do Sul interpretação conforme à Constituição Federal, para assentar a constitucionalidade do sacrifício de animais em ritos religiosos de qualquer natureza, vedada a prática de maus-tratos no ritual e condicionado o abate ao consumo da carne.”

[4] DEUS, Lucas Obalera de. Por uma perspectiva afrorreligiosa: estratégias de enfretamento ao racismo religioso. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2019, p. 15. Disponível em: https://br.boell.org/sites/default/files/caderno_religiao_e_politica_lucas_de_deus_boll_brasil_.pdf

[5] CHUEIRI, Vera K.; HOSHINO, Thiago A. P. Nos altares da autoridade: o STF entre o compromisso e a jurispatia. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/nos-altares-da-autoridade-o-stf-entre-compromisso-e-jurispatia-06082018

[6] DIPPEL, Horst. História do Constitucionalismo Moderno. Novas Perspectivas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2007.

[7] BUENO, Winnie. O discurso da defesa animal é um forte aliado na eliminação das tradições religiosas de matriz africana. Disponível: http://www.justificando.com/2017/01/06/o-discurso-da-defesa-animal-e-um-forte-aliado-na-eliminacao-das-tradicoes-religiosas-de-matriz-africana/

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