O porão está no alto

 

Roberto Amaral

Ameaça de guerra, dominação interna e submissão externa: na nova doutrina de lesa-pátria, o pior não pode ser descartado

O Exército brasileiro, coerente com sua história, capturou o poder civil, sobre o qual sempre exerceu preeminência, e ao mesmo tempo foi capturado pela estratégia militar dos EUA, que, ainda sob o comando de Donald Trump, pode chegar a tudo. A ‘guerra comercial’ com a China pode ser o primeiro momento de um conflito estratégico, e novas intervenções e ocupações estão na ordem do dia, desta feita olhando para a América do Sul e apontando para a Venezuela e para a Amazônia, pela qual os militares brasileiros sempre entoaram preocupação e promessas de defesa.

O que aponta no horizonte é a ameaça de uma guerra que não nos interessa, trazendo para nossa vizinhança o conflito mundial em curso. Ameaça-nos a dilaceração do Continente, o retrocesso da integração regional trabalhada pelo Brasil desde Rio Branco, e hoje esquecida por um Itamaraty que desonra sua melhor história.

A recente realização de operações militares conjuntas, brasileiras e estadunidenses, na fronteira amazônica, é um ensaio do que pode vir a ocorrer. A oferta de nosso território para sediar uma base militar do império, por confirmar-se, é apenas uma preparação de terreno para nos envolver numa guerra pela hegemonia mundial. Nela, nosso papel será o de ‘capitão do mato’: cuidar da ‘segurança’ do Continente para que a grande potência possa se dedicar aos adversários que inventou e teme.

Não duvidemos: o pior é uma possibilidade que jamais deve ser descartada.

O general Villas Bôas conhece como ninguém o significado e as consequências dessa política, pois foi titular do Comando Militar da Amazônia, até ser chamado pela ex-presidente Dilma Rousseff para chefiar o Exército. Causa espécie que essas movimentações tenham sido levadas a cabo sob seu comando. Para quem, há pouco, sustentava um projeto de desenvolvimento soberano, é igualmente de se estranhar o silêncio em face do desmantelamento do Estado, da privatização selvagem de empresas estratégicas para nossa autonomia e a liquidação de instituições tão caras às antigas gerações militares como a Petrobras e a Eletrobrás.

Nessa linha de lesa-pátria o novo regime renunciou ao programa espacial brasileiro, está entregando aos EUA a base de Alcântara e se desfazendo da Embraer, conquista dos que sonharam em romper com a dependência externa.

O antigo projeto de industrialização e desenvolvimento induzidos pelo Estado foi substituído por um ultraliberalismo arcaico que acena com o aumento da pobreza e das desigualdades sociais, rebaixando o país no concerto internacional.

Atrás da nova doutrina, que conjuga dominação interna e submissão externa – para além do que sonhou a Escola Superior de Guerra em seus piores momentos – está um grupo de oficiais-generais que, como arte de conquista do poder, retoma as ideias e práticas do general Sílvio Frota, representante do porão das Forças Armadas que, em 1977, em nome de celerados identificados como “linha dura” militar, buscou impedir a abertura arquitetada por Ernesto Geisel. O general insurreto foi defenestrado pelo general presidente. Villas Bôas, Augusto Heleno e demais colegas do Estado Maior do novo regime estão longe de Geisel e o capitão presidente (saído da tropa pelas portas dos fundos) é um grotesco pastiche de Trump. Como caricatura, acentua seus aspectos mais negativos.

Bolsonaro não é o sujeito dessa História em construção, mas o instrumento de um projeto até aqui bem sucedido de conquista do poder. Sua candidatura foi sustentada por uma operação urdida nos intestinos e na cúpula das Forças Armadas lideradas pelo Exército, desde os idos que precederam ao impeachment. O Brasil de então se encontrava com a experiência do golpe de Estado sem fratura constitucional para espanto dos juristas presos aos formalismos. Os militares retornaram sem necessidade de por nas ruas seus tanques virgens de guerra. Desta feita, e mais uma vez, dispensam os intermediários, como Café Filho e José Sarney.

A tal operação o cientista político Manuel Domingos Neto chama de “golpe militar travestido”.

A figura nominal do presidente da República – o capitão que se empenha em trazer para o presente o passado mais sombrio da ditadura– é condicionada por um coletivo governante, este o verdadeiro centro do poder. Bolsonaro (que Geisel identificara como “mau militar”) foi fundamental para a manobra, mas pode ser descartado segundo as necessidades do novo regime. E a depender, também, de como se comportará.

A chave-mestra de todo esse processo tem nome e sobrenome: Eduardo Dias da Costa Villas Bôas, com sua lamentável reviravolta ideológica.

Ainda no governo Dilma Rousseff, ao qual serviu com exemplar lealdade, Vilas Bôas foi música para os ouvidos de democratas desavisados, ao solfejar que a ditadura não havia feito bem nem ao Brasil nem à Corporação. Uma pura verdade. Foram de sua lavra declarações animadoras, como a de que civis e militares haviam sido impelidos pela Guerra Fria “que não era nossa”, dividindo um país carente de unidade.

Nada a ver, portanto, com as articulações em torno da candidatura do capitão propagandista da violência bestial. Nada a ver com sua comprometedora omissão em face da indisciplina de oficiais clamando por intervenção militar. Nada a ver com a reativação das comemorações em torno da ‘intentona comunista’ e com o cerco ao STF ao exigir a denegação de habeas corpus que poderia dar liberdade ao ex-presidente Lula, operação decisiva para a eleição de Jair Bolsonaro.

E nada a ver com seu lamentável discurso na transmissão do cargo de comandante do Exército, postando-se como um Sílvio Frota (para quem Geisel era um esquerdista que traía a “revolução”) ou um redivivo Pena Boto, aquele grotesco almirante que via comunistas comendo criancinhas em todas as esquinas do país, inclusive nas casernas.

Dirigindo-se ao capitão-presidente, Villas Bôas ditou:

“O senhor traz a necessária renovação e a liberação das amarras ideológicas que sequestraram o livre pensar, embotaram o discernimento e induziram a um pensamento único nefasto (…)”.

Ora, general, a ausência do livre pensar e a vigência do pensamento único, no Brasil de hoje, só existem nas escolas militares e a média do pensamento da caserna e de seus comandantes é seu atestado!

Villas Bôas arremata, ainda, no discurso lido por um locutor, com a versão tropical do America First de Trump, assumindo seu novo mentor ideológico.

Dias antes, na solenidade de posse do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e dirigindo-se ao comandante Villas Bôas, o capitão Messias proclamara sem rebuços:

“O que já conversamos morrerá entre nós. Mas o senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui . Muito obrigado mais uma vez”.

A decifração do segredo será matéria para os historiadores, mas o papel do general e da corporação por ele liderada ganhou o selo de autenticidade colado pelo seu principal beneficiário.

Nessas circunstâncias, parece estranha (na melhor das hipóteses, inusual) a nomeação de Villas Bôas, gravemente enfermo, para o cargo de assessor especial do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), no Palácio do Planalto. Apenas para ficar, vigilante, a um passo do gabinete do capitão? Muito menos deve ser ato de mera gratidão do presidente pelo papel do comandante do Exército, na linha da distribuição de benesses como, por exemplo, aquela com a qual Bolsonaro agradeceu à inestimável colaboração do juiz e hoje ministro Sérgio Moro.

O fato objetivo é que vivemos os primeiros dias do novo regime, de caráter militar, regido por militares com a cabeça estacionada no pior de 1964, aparentemente convencidos de que o Ocidente, pretensamente sob ameaça, tem nos EUA sua guarda e sua proteção. Retornam ao ambiente ideológico da Guerra Fria. Os jornais mostram que a caça às bruxas já começou.

Esquisitices e trombadas à parte, artifícios de despistamento, o novo regime se alimenta em projeto de poder de longo prazo; seus diretores conhecem os erros da ditadura escancarada e supõem saber evitar os erros do lulismo, como o fracasso de sua aliança com a Avenida Paulista.

Opor-se a ele exige dos progressistas e democratas de todo matiz – e das esquerdas sobretudo –, noções claras de tática e estratégia, lucidez para evitar o autoengano, capacidade de distinguir o acessório d fundamental… em suma: capacidade de se re-inventar.

Roberto Amaral

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