“O PT vai ter de se reinventar sem Lula”

 

Encontrámo-nos no Café PPD, perto da Praça da República, poucos dias depois de o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter sido preso. Não era um piscar de olhos de Jean Tible à política portuguesa pós-25 de Abril, mesmo para um politólogo com raízes maternas em São João da Madeira como ele. O cientista político explica-nos que a sigla deste café situado no Centro Histórico de São Paulo que pertence a uns amigos significa Por um Punhado de Dólares e é apenas uma referência cinematográfica (ao western spaghetti de Sergio Leone).

De fato, não precisamos de acrescentar mais complexidade à política brasileira, porque a que a actualidade empresta já é suficiente para a conversa com este politólogo da Universidade de São Paulo, especialmente desde a prisão de Lula. Mesmo assim, o ex-presidente continua a liderar as intenções de voto para as eleições presidenciais marcadas para Outubro. A entrevista foi actualizada com os resultados da sondagem do Instituto Datafolha, publicada no domingo passado no jornal Folha de São Paulo, que continua a dar a Lula 31% das intenções de voto, apesar de ter descido um pouco e que já contém cenários sem o ex-presidente.

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É a corrida eleitoral e o momento político vistos por um académico engajado, como o próprio se define. “Eu não vivo fora da sociedade. Não é nenhum segredo que sou do PT e que estou envolvido com a candidatura de Guilherme Boulos (Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).” Ou seja, as eleições vistas pela perspectiva dos que foram a São Bernardo do Campo apoiar Lula e procuram uma alternativa diferente para governar à esquerda, mesmo que tenha que ser a médio prazo.

O que é que vai acontecer ao Partido dos Trabalhadores (PT) depois de Lula?

O Lula sempre foi maior do que o PT. Para pensar o futuro do PT, a gente tem que passar pela figura do Lula. Na minha opinião, o Lula vai ficar encarcerado pelo menos esse ano todo, porque este é um processe para o tirar da disputa eleitoral. O PT vai ter de se reinventar depois de Lula. Claro que o Lula ainda vai ser uma figura activa preso ou em liberdade nos próximos anos.

Lula é símbolo do quê?

Lula é símbolo do Brasil de baixo, da democratização do país como combate à desigualdade. Ele é a figura dominante da política brasileira nos últimos 30 anos, seja para se opor a ele, seja para apoiá-lo.

Até quando é que Lula vai ser candidato?

Acho que agora não vai ser mais candidato.

Mas ainda não disse que não era.

Não. Eu entendo a estratégia do PT: deixar o Lula como candidato é protegê-lo, que enfrenta esses processos judiciais num contexto de excepção.

É uma estratégia de defesa?

Sim, é uma estratégia de defesa. Há muitos meses que está muito evidente que o Lula não vai poder ser candidato. Se teve um golpe em 2016, o impeachment de Dilma [Rousseff], não tem porquê achar que em 2018 o Lula vai poder ser candidato. Se fosse candidato ganhava a eleição. Tem um encadeamento muito lógico e muito implacável.

A questão do processo dele tem muitas falhas e eu não estou convencido com as provas apresentadas. Muitos juristas também não estão. Então, é para tirar realmente essa figura do jogo político imediato. Ele está acossado pelo judiciário, por várias outras instituições, destruído na mídia, mas mesmo assim continua a figura política mais popular.

Qual é o significado que dá à última sondagem do Instituto Datafolha, nomeadamente à descida de Lula?

Primeiro que a eleição é extremamente incerta, ninguém pode prever nada.

Mas o Lula mesmo preso mantém a dianteira com mais do dobro dos demais candidatos [31%]. Um facto contundente não é ele ter perdido alguns pontos, é que a rejeição dele [aqueles que nunca votariam nele], vista numa série histórica, tem baixado de forma regular. Já esteve quase nos 60% [2016] e hoje está nos 36%. Na verdade, tirando o Lula do cenário, o primeiro colocado na pesquisa é “não sei”, não é Jair Bolsonaro [17%] ou Marina Silva [15%], que estão em empate técnico, justamente porque estão tirando um candidato preferido da população [a rejeição de Bolsonaro é de 31% e a de Marina Silva 22%].

Sem Lula na disputa, a eleição fica extremamente aberta. Tem uma candidatura de extrema-direita consolidada, porque Bolsonaro não cresce já há um tempo e deve ter um tecto.

O que é que a sondagem mostra em relação à estratégia do PT centrada no Lula?

Ao apoiar o Lula, o PT está a fazer uma escolha que não é eleitoral. Isso é interessante, porque o partido está a ser prejudicado por essa estratégia de defesa do Lula. Isso prejudica uma candidatura do PT, mas esta é uma estratégia mais de médio-longo curso.

Aqui em São Paulo, logo a seguir à prisão, não houve grandes protestos. Surpreendeu-o essa tranquilidade?

Não. Desde que se começou a aproximar o período do impeachment, desde o início de 2015, ocorreram muitos protestos no país. De alguma forma em 2013, com os protestos de Junho, abre-se um novo período político no país, porque todo o mundo passa a protestar mais, direita ou esquerda, para simplificar.

Simplificando também, porque é acha que não houve protestos tirando os de São Bernardo do Campo, onde o Lula estava no Sindicato dos Metalúrgicos antes de ser preso?

Mas esse foi significativo.

Estava à espera de mais ou menos protestos?

Acho que tem duas dimensões. A população se for consultada não está de acordo com a prisão do Lula, ou estará dividida, mas claro que é uma minoria que se mobiliza. Mas as pessoas que se mobilizaram lá no Sindicato dos Metalúrgicos, e eu estive lá presente, não deixam de ser significativas.

Mas eu não vi protestos em São Paulo.

O centro do protesto era lá, não tinha porque protestar em São Paulo. Agora em Curitiba tem um acampamento permanente. Aqui teve um protesto na Praça da República, talvez com cinco mil pessoas, talvez dez mil. Tem uma insatisfação. A população se pudesse escolher votaria no Lula em Outubro. É muito significativo tendo em vista que a Dilma foi tirada faz pouco tempo, que ele foi julgado e condenado. Você pega o Jornal Nacional [Rede Globo], que é o mais importante jornal de televisão brasileiro, e tem horas de massacre da figura do Lula.

No seu ponto de vista, o processo Lava-Jato e os outros processos contra Lula têm como objectivo neutralizar a esquerda na eleição de Outubro? Não têm como objectivo a luta contra a corrupção no Brasil?

São camadas diferentes. O PT criou um curto-circuito no país, porque se Lula deu autonomia para esses órgãos ao mesmo tempo adoptou as práticas tradicionais da política brasileira.

Então ele é vítima da sua política?

É, de alguma forma sim. Ele é um não-aceite pelo sistema político brasileiro. Quais são os dois factos fortes desse último mês na política brasileira? O assassínio da Marielle Franco, vereadora do Rio, e a prisão do Lula. São questões muito diferentes mas se conectam. O recado é que o sistema político brasileiro não aceita que os que não eram convocados a participar da política, os malnascidos, participem. Esse é o recado muito claro.

A direita vê isso como uma efabulação da esquerda, incluindo a tentativa de não aceitar as consequências de que o PT e o Lula se envolveram num modus vivendi de corrupção que envolve todo o sistema.

Isso é um argumento muito falho. Você só pode condenar alguém com provas. Não pode condenar uma pessoa por haver um apartamento que ele foi visitar uma vez, que ele não aceitou, que ele não é o dono. É uma coisa surreal.

Porque é que a elite, que co-habitou com ele e votou duas vezes nele, agora…

… estão tentando tirar ele desde 2005, com o escândalo do Mensalão. Ele sai da Presidência em 2010, com quase 90% de popularidade, porque fez com que todo o mundo ficasse contente: redistribuiu recursos e poder para os mais pobres sem tocar nos mais ricos. Não teve nenhum enfrentamento.

A derrocada do PT começa quando essa mágica do Lula não era mais possível, quando tinha que começar a tirar de alguém para continuar o processo… A estrutura tributária do Brasil é extremamente injusta.

Foi então quando o Mensalão mostrou que uma forma de funcionar ia colapsar?

A estratégia dos adversários do Lula era deixar ele sangrar. Achavam que o tinham ferido de morte, mas em 2006 ele se reelege com mais força ainda, porque as políticas sociais tinham começado a fazer mais efeito. Ele queria fazer um acordo com todo o mundo, mas o outro lado já queria mesmo destrui-lo.

O ex-presidente vai continuar a apontar Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo, como sucessor? Como é as coisas se vão desenrolar?

Tudo indica que o PT vai manter a candidatura do Lula até Agosto. Então, sendo do PT, o Haddad parece ser um nome forte, mas é possível que o partido tenha que fazer alguma composição com outro partido…

Com o Ciro Gomes? Quais são as possibilidades de uma união da esquerda?

Com o Ciro Gomes [PDT], tem também a Manuela D’Ávila, do PCdoB, o Guilherme Boulos, do PSOL, além do Joaquim Barbosa. Esses partidos estão conversando mais do que conversavam antes e estão unidos em certos resultados bem concretos. O facto de pensarem que o Lula está sendo preso injustamente. Tem também a questão da democracia, porque a gente está falando aqui mas não sabe se vai ter eleição em Outubro.

Porque é que se envolveu na candidatura de Guilherme Boulos, com 1% nas sondagens ou menos?

É muito importante porque talvez seja a primeira vez que a esquerda abraça de verdade a questão indígena [concorre tendo como candidata a vice-presidente a líder indígena Sônia Guajajara]. São os povos originários do Brasil, que existiam antes do país, mas a gente viveu e vive um genocídio. Apesar de tudo são 300 povos, com quase um número equivalente de línguas e perspectivas sobre a vida, o mundo e o cosmos que o país devia celebrar. É importante que uma figura jovem expresse uma voz radical e ao mesmo tempo dialogue com as conquistas do lulismo e as aprofunde.

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