A corrupção e a falta de debate sobre o Brasil que queremos

Enquanto prioriza-se os escândalos, deixamos de lado as questões centrais para o País, como a concentração de renda e o desemprego

A denúncia de corrupção (sistêmica, endêmica) tem sido uma constante da História republicana, bem mais presente que o debate sobre os destinos do país, e muitas vezes repercutindo na vida político-institucional.

Assim, a discussão sobre o ‘projeto Brasil’, sobre que país queremos, é secundarizada, os graves problemas estruturais, econômicos e sociais jogados para debaixo do tapete, ignoradas as questões estratégicas.

Por que as duas ordens de preocupações não são enfrentadas simultaneamente?

O fato objetivo é que, enquanto a prioridade é a magnificação dos escândalos, construindo vítimas, algozes e heróis, ficam de lado as questões centrais do país, aquelas que dizem respeito ao nosso dia-dia e ao futuro, como a recessão, o desemprego e a concentração de renda, e todas as sequelas do subdesenvolvimento do qual não conseguimos nos apartar.

Mesmo a crise das instituições, a crise da magistratura e a crise do Ministério Público, a crise de legitimidade e representatividade dos Poderes, desnudadas com a chamada ‘operação Lava Jato’, cedem lugar ao espetáculo da fogueira de vaidades que aos poucos desmoraliza julgados e julgadores, investigadores e investigados, delatados e delatores, promotores e juízes, todos envolvidos numa só mixórdia.

Dessa pobreza não se livrou, sequer, o Supremo Tribunal Federal, e dela não se livrará enquanto seu padrão, técnico e ético, for pautado pelo inefável ministro Gilmar Mendes, advogado de interesses notórios atuando com a toga de juiz.

A espetacularização da Justiça, de uma Justiça politizada e partidarizada, a transformação de juízes e procuradores e delegados em pop-stars que passam a disputar espaços na mídia, vem ensejando o desrespeito crescente aos ritos processuais.

Em nome de preservar o direito, ameaçado pelos poderosos, a nova ordem jurídica viola o direito, repetindo a ditadura, que, a pretexto de preservar da Constituição e da democracia, rasgou a Carta Magna e extinguiu a democracia.

A corrupção, cuja presença nociva ninguém nega, como ninguém nega a necessidade de reduzi-la à menor proporção possível, mas que não encerra os mais graves problemas brasileiros, é transformada em instrumento político que tende à alienação das massas, enganadas, quando se lhes promete salvar o Brasil tão só erradicando a roubalheira. O golpe de 1964, como sabemos, prometia ‘prender os corruptos’ e terminou por gestar uma série de Malufs.

Antes, o populismo de Jânio Quadros prometeu ‘varrer a bandalheira’, e mais recentemente Collor de Mello anunciou a prisão dos ‘marajás’. Sabemos como terminaram seus governos.

Essa alienação, dirigida, desviando a atenção das questões cruciais da vida nacional, por força do papel dos meios de comunicação de massa e a anomia da universidade, é, porém, o tema que, encantando a mídia, mobiliza a classe-média urbana.

A História registra o risco desse mote, destruindo os valores da política, desmoralizando os instrumentos da democracia representativa, desmoralizando os governos e convencendo a população, e suas lideranças, ‘de que o país está à deriva’, como por várias vezes já registrou o Comandante do Exército, e suas declarações devem ser lidas com muito cuidado depois das ameaças, claras, de seu comandado general Mourão.

Quando se coloca o país em face de um impasse e não se indica a alternativa, que sempre há, se está aprofundando a crise, real, e suscitando saídas ‘heterodoxas’ sempre pleiteadas pelas forças reacionárias, as quais, brandindo loas à democracia, na verdade pleiteiam a emergência de governos autoritários.

Nesses momentos, e vivemos presentemente um deles, as ‘vivandeiras’, como denunciou o próprio ditador Castello Branco, rondam os quartéis em romarias, na expectativa de resolver pela ‘imposição’ militar o que não logram mediante a consulta popular.

A corrupção, sob combate seletivo é apenas aquela que depende dos meandros do poder público, sugerindo, à sociedade, que se trata de fenômeno que envolve apenas políticos e funcionários públicos, mesmo agora quando se flagram grandes empresários envolvidos, como agentes ativos, no processo de corrupção que nos assola desde sempre.

A criminosa sonegação de impostos é tratada como simples instrumento de defesa do capital ante ‘a voracidade fiscal do Estado’, e assim absolvida pelos valores do capitalismo.

Esta é, certamente, a raiz explicativa da ausência de qualificação do combate à corrupção, tratada como fenômeno em si, autônomo, causa e efeito em si mesmo.

Não se discutem suas causas, e o embate limita-se ao registro de suas consequências mais vistosas, aquelas que alimentam as manchetes, vendem jornais, garantem audiência.

A manipulação ideológica tem objetivo claro, e se funda em argumento simples: se a corrupção é algo inerente e inafastável da política, a única alternativa é a cassação da política. Esse projeto é semente fértil em terreno adubado pela desmoralização moral e política do Poder Legislativo, o descrédito do Judiciário e a ilegitimidade do governo federal.

Desde os primeiros anos da República, conduzidos pelo debate promovido pelos meios de comunicação, setores militares assumiram como seu dever a moralização dos costumes políticos.

Nos anos 1960, o marechal Juarez Távora, figura proeminente do ‘tenentismo’ e ex-candidato à Presidência da República, percorreu o país comandando o ‘rearmamento moral’, movimento internacional nascido entre militantes protestantes dos EUA, que se diziam chamados por Deus a realizar a ‘ressurreição moral dos povos’.

Essa temática tornou-se muito cara a partir do ‘Tenentismo’, que, vindo à tona em 1922 com o ‘Levante do Forte de Copacabana’, chegaria, vivo em seus fundamentos, até o golpe de 1º de abril de 1964, cujo programa se resumia a cassar os comunistas e pôr os corruptos na cadeia.

Antes de 1964, o projeto messiânico de salvação nacional mediante o combate à corrupção (a que eram reduzidos todos os problemas nacionais) seria a justificativa das rebeliões de 1924 (revolta de São Paulo), 1925 (Coluna Prestes) e 1930 (‘revolução’ liderada por Getúlio Vargas), os golpes de Estado de 1954 (deposição de Vargas, acusado de corrupção), 1955 (tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitscheck), 1961 (tentativa de impedir a posse de João Goulart, herdeiro politico de Vargas, e imposição do Parlamentarismo).

Todos esses movimentos, mais reativos do que propositivos, estavam voltados messianicamente à ‘salvação moral’ do país. Só a higidez moral e o patriotismo dos militares poderia salvar o país, dizia-se, e por isso sua intervenção na vida civil foi ora solicitada por setores da sociedade, ora estimulada por forças políticas e empresariais, sem escada para alçar-se ao poder.

Ao discurso moralista do tenentismo, ainda hoje majoritário nas Forças Armadas, associou-se, com a Guerra Fria, um novo personagem à cena política, mobilizando de fora para dentro os militares: o anticomunismo. A tarefa dos conservadores é facilitada pela memória do desastre de 1935.

O anticomunismo caboclo passa a identificar como tal qualquer política popular, qualquer discurso desenvolvimentista, qualquer ensaio nacionalista, qualquer pleito de desenvolvimento autônomo, qualquer ensaio estatizante. Ora, essas seriam as bandeiras das forças populares e trabalhistas na ‘República de 46’ (1946-1964).

O varguismo torna-se o inimigo número um, seu enfrentamento reúne todas as forças conservadoras e termina conquistando as Forças Armadas, o que explica as deposições de Getúlio Vargas e de João Goulart (1964).

Era o encontro catalizador do moralismo com o anticomunismo que será o leitmotiv da preeminência da força militar sobre o poder civil.

O que indicava, para os militares e para os civis associados, a presença dos comunistas no governo Jango, era o pleito das ‘Reformas de base’, um conjunto de propostas que timidamente propunham o fortalecimento do capitalismo: reforma agrária, extensão da legislação social ao campo, distribuição de renda, reforma do ensino, alfabetização, política habitacional etc.

Por ironia, muitas destas políticas seriam adotadas, ainda que com óbvia variação de viés, pelo regime anticomunista dos militares, nacionalista após Castello Branco, estatizante a partir de Costa e Silva e operador de uma política externa independente a partir, principalmente, de Ernesto Geisel.

O lulismo, contra quem se assentam todas as baterias, atacado por todas as vias como ‘promotor e cúmplice da corrupção’, tem, independentemente de seus gostos, suas raízes ideológicas no trabalhismo varguista e no nacionalismo, no compromisso com o desenvolvimento, na defesa dos salários dos trabalhadores e no exercício de uma política externa independente.

Eis como se explica sua eleição como o ‘inimigo publico número1’ do establishment , e, por isso, a decisão da Casa Grande de extirpa-lo, seja por que meio for, já que fica cada vez mais claro que, pelo voto, não pode ser derrotado.

Roberto Amaral

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